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O banco privado francês Natixis se utilizou do legado teórico de Karl Marx e chegou a seguinte conclusão: "a leitura marxista da crise é mesmo a boa".
O estudo divulgado pelo banco contém limitações e até equívocos, como responsabilizar os países emergentes pela crise, mas isso não anula o fato, que é importante, de que uma instituição privada não só reconhece os méritos do marxismo como o considera ferramenta válida na análise da sociedade atual.
O original encontra-se no site do Natixis:
http://cib.natixis.com/flushdoc.aspx?id=51136
Abaixo segue o estudo traduzido para o português, extraído do link:
http://resistir.info/crise/patrick_artus_06jan10.html
Banco privado publica "Uma leitura marxista da crise" (sic)
por Patrick Artus, responsável do banco Natixis
A nossa interpretação da crise é como se segue:
=> há um excesso mundial de capacidade de produção, devido essencialmente à globalização e ao investimento muito importante nos países emergentes;
=> o excesso de capacidade deveria normalmente fazer baixar a lucratividade das empresas; em reacção a esta evolução, as empresas tentaram reduzir os salários, de onde, em muitos países, o recuo da parte dos salários no PIB, que amplifica a insuficiência da procura em relação à capacidade; elas tentam também tornarem-se líderes na sua actividade para beneficiar de margens de oligopólio;
=> o excesso de capacidade de produção leva os Estados a conduzirem políticas não cooperativas visando acrescer a taxa nacional de utilização das capacidades; estímulo do crédito pelas políticas monetárias muito expansionistas (de onde as bolhas especulativas sobre os preços dos activos, o excesso de endividamento e as crises); sub-avaliação da taxa de câmbio nos países emergentes.
Trata-se efectivamente de uma leitura marxista (mas conforme aos factos) da crise: super-acumulação de capital (pela "euforia" dos empresários) de onde baixa tendencial da taxa de lucro; reacção das empresas a esta baixa da taxa de lucro pela compressão dos salários, do capital, a concentração e a obtenção de rendas, de onde sub-consumo; reacção que não pode se eficaz a longo prazo, dos Estados pela desenvolvimento do crédito e das actividades especulativas, como substitutos (paliativos) à insuficiência da produção; pelo recurso ao comércio exterior.
No arranque da crise: excesso mundial de capacidade de produção
O excesso mundial de capacidade de produção surge com a globalização:
=> os países emergentes têm taxas de investimento muito elevadas e um investimento em forte crescimento; isto é particularmente verdadeiro na China;
=> ao mesmo tempo, as taxas de investimento não foram reduzidas até à crise nos países da OCDE.
O mundo está portanto, desde o fim dos anos 1990, em situação de excesso de oferta de bens e de serviços, o que corresponde à alta da taxa de investimento mundial e explica a ausência de inflação.
Reacção das empresas ao excesso de capacidade: baixa dos salários, concentração
O excesso de capacidade deveria normalmente fazer baixar a lucratividade do capital das empresas, devido simultaneamente à abundância de capital e à perda do pricing power.
Para evitar esta evolução, as empresas:
=> comprimem os salários, o que explica a deformação bastante geral da repartição dos rendimentos em detrimento dos assalariados;
=> concentram-se, a fim de obter rendas de oligopólio (monopólio). Os grandes grupos concentram-se nas suas especialidades de base, de modo a tornarem-se líderes mundiais, e vendem as actividades que não correspondem a este core business.
Deste comportamento das empresas normalmente resultaria a fraqueza da procura das famílias, uma vez que os salários são fracos e as margens de lucro elevadas. Antes da crise, a procura das famílias é fraca apenas na China, no Japão e na Alemanha, devido à reacção dos Estados que vamos agora examinar e que evita esta fraqueza nos outros países.
A partir da crise, a travagem do endividamento faz cair a procura das famílias por toda a parte.
Reação dos Estados: estimulação do crédito, sub-avaliação das taxas de câmbio
Os Estados estão confrontados:
=> com a situação de excesso de capacidade de produção;
=> com a compressão dos salários executada pelas empresas.
Há portanto em simultâneo excesso de oferta de bens e serviço e insuficiência da procura de bens. Confrontados com esta situação, os Estados executam políticas não cooperativas de sustentação da procura, a fim de tentar evitar a sub-utilização das capacidades de produção e o desemprego.
Estas políticas tomam a forma:
=> antes da crise, políticas monetárias expansionistas nos países da OCDE visando estimular a procura interna pela estimulação do crédito. Isto conduziu à progressão muito forte do endividamento nos Estados Unidos , no Reino Unido, na zona euro fora da Alemanha, com taxas de juro baixas em relação às taxas de crescimento. A partir da crise, nos países da OCDE, a estimulação da procura é realizada a partir dos défices públicos;
=> nos países emergentes, o governos tentam corrigir a sub-utilização das capacidades estimulando as exportações pela sub-avaliação real das suas divisas. Há assim manutenção desta sub-avaliação real graças à acumulação de reservas de câmbio em dólares nos países emergentes, o que permite satisfatoriamente a estes países ganhar partes de mercado com a exportação.
Interpretamos portanto as políticas de sustentação do crédito nas políticas da OCDE e de sub-avaliação das taxas de câmbio nos países emergentes como políticas não cooperativas de resposta ao excesso de capacidade mundial de produção e de baixa dos salários pelas empresas, visando fortalecer a taxa de utilização das capacidades do país em detrimentos dos outros países.
Estas políticas interagem para gerar um enorme crescimento da liquidez mundial, que está na origem das crises que ela fez surgir:
=> bolhas (acções, imobiliário) que a seguir explodiram;
=> o excesso de endividamento que desencadeou em 2007-2008 a última crise começando a corrigir-se.
Síntese: a leitura marxista da crise é mesmo a boa
Pode-se portanto fazer uma leitura convincente da crise recente, conforme o esquema abaixo.
A "euforia" dos empresários (sobretudo dos países emergentes) conduz à super-acumulação de capital; esta implicaria a baixa tendencial da taxa de lucro se as empresas não reagirem comprimindo os salários e tentando obter rendas, de onde a situação de sub-consumo. Igualmente, os agentes económicos empenham-se em actividades especulativas instigadas pelo crédito, que são paliativos à insuficiência da produção e que desaguam sobre crises.
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