quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A pensão vitalícia de Mises

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Em 1922, no livro "Socialism: An Economic and Sociological Analysis", o intelectual liberal mais festejado da atualidade, Ludwig von Mises, atacou duramente a seguridade social, e suas políticas de seguro-saúde tido como "uma instituição que tende a estimular a doença" e de pensões:

"O sustento passou a ser um direito que a pessoa pode impor por força de lei. O beneficiário não sofre qualquer tipo de difamação por conta de seu status social. Ele torna-se um pensionista do estado assim como o rei ou seus ministros. Também não há dúvidas de que ele passa a ter o direito de ver aquilo que ele recebe como sendo o equivalente de suas próprias contribuições (como se ele fosse o recebedor de uma anuidade de seguro, como qualquer pessoa que tenha feito um contrato de seguro)." [1]

No seu livro de memórias (Memoirs), Mises faz referência ao fato de um de seus mestres, Eugen von Böhm-Bawerk, ter rejeitado uma pensão do serviço público após a sua aposentadoria:
"Böhm was a professor in Innsbruck. He grew weary of this position; the intellectual desert of this university, the city, and the province of Tirol became unbearable for him. He preferred employment in Vienna’s ministry of finance. He was offered a gainful pension when he finally retired from government service, but this he rejected and requested a professorship at the
University of Vienna." (p.31) [2]

A postura de Mises, porém, após trinta anos de trabalho, passam bem longe dos seus escritos contra a seguridade social e do exemplo do seu mestre Böhm-Bawerk. Ele não só não rejeita a pensão vitalícia como ainda reclama da precariedade da mesma:
"After thirty years of service, my position with the Handelskammer entitled me to retire with a lifetime pension of nearly 15,000 shillings per year. Every Handelskammer official received double credit for two and a half years of war service. In addition, I received credit for three years of prewar service. Since a service year that had begun was counted as a full year, I had earned the right to enter into retirement on October 1, 1932. I had always awaited the coming of this date with mixed feelings. On the one hand, I wanted to shed the obligations of my office in order to dedicate myself fully to scientific work. On the other hand, I had to admit that the pension promised to me seemed downright precarious in light of the general uncertainty of conditions." (p.113) [3]

O "beneficiário" Mises não só não se ruborizou nem um pouquinho com o "sustento" legal como se achou com todo o direito de reivindicá-lo:
"Next to me there were only two officials in the Handelskammer who were in the position to fight for its preservation: Dr. Wilhelm Becker in Vienna, and Dr. Wilhelm Taucher in Graz, whose second job was that of an assistant professor at the University of Graz. In the fall of 1937 and during the first weeks of 1938 he was a member of Schuschnigg’s cabinet. Both men found cause for concern in my entering into retirement and induced me to take up the Handelskammer’s cause and defend our pension claims. At stake here were only our own personal interests. The internal struggle for Austria had come to an end with the banking crisis having made banks, and thereby big industry, directly dependent on the central bank." (p.114) [4]


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[1] A seguridade social compulsória
http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=364

[2, 3, 4] MISES, Ludwig von. Memoirs. 1940.
http://mises.org/books/memoirs_mises.pdf
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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Inglaterra aprova lei que permite a censura da internet

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O fato é relevante, aconteceu em abril deste ano, mas passou despercebido pela grande mídia brasileira. A Inglaterra, proclamada "terra da liberdade", aprovou uma "Lei da Economia Digital" que beneficia as grandes corporações, prejudica os pequenos e permite a censura da internet dos cidadãos ingleses.

Abaixo reproduzo o artigo de Cory Doctorow (ativista digital, escritor de ficção científica e coeditor do blog Boing Boing), publicado no The Guardian em abril, que dá uma ideia do que representa esta lei.


Lei da Economia digital: uma declaração de Guerra

Cory Doctorow

(Do Guardian) Com a aprovação de afogadilho da Lei de Economia Digital (Digital Economy Act) este mês, a disputa em torno do copyright entra em uma nova fase. Antes da lei ser aprovada, os copyfighters atuavam sob a suposição de era possível um acordo de paz entre o rolo compressor dos gigantes da indústria do entretenimento e a sociedade civil.

Agora que a BPI (British Recorded Industry Music, associação de gravadoras da Inglaterra) e seus chapas ganharam a melhor lei que o dinheiro pode comprar – uma lei que cria um ambiente de censura sem precendentes na web britânica, uma lei que possibilita cortar conexões de famílias inteiras somente por um diz-que da indústria de entretenimento, uma lei que silencia conexões abertas de redes Wi-Fi e impede pessoas de tocar seu próprio negócio normalmente com o argumento de que ele poderia causas danos ao negócio deles - o jogo mudou.

Eu aderi ao copyfight a partir de um ponto de vista muito pessoal. Como autor, queria dispor de um conjunto de regras justas de direito autoral que servissem de base para minhas negociações com grandes editoras, estúdios cinematográficos e instituições similares. Tinha receio de que a expansão de direitos autorais – em duração e abrangência – prejudicasse minha capacidade de criar livremente. Afinal, os autores são os mais ativos reusuários do copyright, cada um de nós é uma fábrica de remix e um arquivo-de-uma-pessoa-só de referências que nos inspiram e influenciam.

Também me preocupava a possibilidade de o controle de empresas dominantes sobre o novo sistema de distribuição de conteúdo online ampliar artificialmente sua capacidade de sufocar os autores. Este abraço de jiboia acontece porque praticamente todo gigante da mídia nos oferece os mesmos e péssimos termos de contrato e não existem concorrentes mais generosos para levar nosso trabalho ao público.

Essas coisas ainda me preocupam, claro. Participei da criação de uma empresa de sucesso -- o Boing Boing, um site super lido – que se beneficia muito do fato de não dever fidelidade a nenhum distribuidor para poder chegar a seus leitores (em contraste a isso, a velha edição impressa do Boing Boing quebrou quando seu principal distribuidor, devendo-nos uma pequena fortuna, entrou em falência, em posse de centenas de dólares em material impresso que nunca conseguimos recuperar). Meus romances entraram nas listas de mais vendidos porque foram distribuídos gratuitamente em meu site ao mesmo tempo em que eram vendidos em grandes livrarias por editoras como a Macmillan, a HarperCollins e a Random House.

Toda minha vida gira em torno da economia digital: administrando empresas que crescem ao copiar e que exploram os atributos poderosos da rede para obter melhor retorno sobre seu investimento.

O Parlamento nos deu uma banana (e também a todas as pequenas/médias empresas) ao aceitar ceder maiores lucros para a economia analógica representada pelos selos e estúdios.

Neste momento, no entanto, meu saldo bancário é a menor das minhas preocupações. A disposição da indústria de entretenimento de usar sua base parlamentar para impor a censura e punição arbitrária a cata de alguns centavos extra é tão corrompida e terrível que me faz temer pelos fundamentos da democracia e da sociedade civil.

Nos Estados Unidos, a MPAA e a RIAA (equivalentes americanas da MPA e da BPI) acabam de apresentar propostas à czar da Propriedade Intelectual Americana, Victoria Espinel, deixando claro seu propósito de repressão IP. Querem que instalemos em nossos computadores softwares de vigilância (spywares) que deletem conteúdo identificado como infratores de direitos autorais. Querem nossas redes censuradas por firewalls de alcance nacional (Bono do U2 Bono também defendeu isso em um editorial do New York Times, assumindo que se os chineses podem controlar informações trocadas por dissidentes com softwares de censura, nossos governos podem usar tecnologia semelhante para manter as infrações de copyright sob controle). Eles querem revista alfandegária de laptops, media players e thumb-drives em cada fronteira.

Querem assediar países em desenvolvimento para que transfiram recursos de iniciativas sociais para a proteção do copyright. E querem, em casa, que a proteção ao copyright seja levada a cabo, de graça, pelo Departamento de Segurança Nacional.

Elementos dessa agenda também aparecem (ou melhor, são dissimulados) no Anti-Counterfeiting Trade Agreement (Acta), um tratado em elaboração por um clube de amigos de países ricos. Eles viraram as costas às Nações Unidas para poder negociar em segredo, sem ter que enfrentar jornalistas ou grupos de defesa de interesses públicos. Eles próprios admitem que pretendem impor esse tratado aos países em desenvolvimento como condição para o comércio internacional. Nos Estados Unidos, a administração Obama anunciou sua intenção de aprovar o Acta sem debatê-lo no Congresso.

Não sou tecnotriunfalista a ponto de acreditar que uma internet livre e aberta vai resolver nossos problemas socioeconômicos. Mas sou tecnopessimista o bastante para acreditar que incorporar a vigilância, o controle e a censura no próprio tecido de nossas redes, equipamentos e leis é o caminho certo para um inferno ditatorial.

Chekhov escreveu que se há uma arma sobre a lareira no primeiro ato ela certamente vai disparar no ato três. A briga cega da indústria de entretenimento pelos seus objetivos estreitos tem o potencial de redesenhar nossas tecnologias para transformá-las em ferramenta e justificativa para a opressão.

Extraído de:
http://www.arede.inf.br/inclusao/component/content/article/106-acontece/2836-lei-da-economia-digital-britanica-e-uma-declaracao-de-guerra-escreve-cory-doctorow
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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O desgaste da democracia representativa moderna

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Este ano haverá eleições no Brasil. Não são poucas as pessoas que estão enojadas da política devido aos desmandos dos seus supostos representantes. Provavelmente se o voto fosse facultativo a presença do eleitor no dia da eleição não seria elevada. O sentimento, que não é gratuito, é o de que independente de quem vencer a eleição a realidade político-social do país permanecerá inalterada.
Veremos, a seguir, os motivos que têm levado a crise de credibilidade da democracia representativa moderna, que é um fenômeno que se alastra pelo mundo.


A História da democracia moderna


a) Uma democracia dos ricos para os ricos

No embate dos ascendentes capitalistas contra a nobreza feudal a democracia representativa foi pensada como uma fórmula política a qual tinha a capacidade de moderar o poder dos reis e da nobreza ao mesmo tempo em que permitia a inserção política da classe burguesa e a consequente legitimação, via o controle do aparelho de Estado, do seu modelo de sociedade.

Como haviam setores da nobreza que estavam se convertendo em capitalistas tal arranjo político se viu viabilizado na Inglaterra a partir da segunda metade do século XVII. Aqui cabe salientar que apesar do giro de setores da nobreza tal processo não se deu sem conflitos. Basta lembrar da figura de Guilherme III de Orange que sai da Holanda, a pedido de parte da nobreza inglesa, para derrubar o Rei Jaime II da Inglaterra, em um episódio que ficou conhecido como "Revolução Gloriosa", mas que mais se assemelha a um golpe de Estado.

O sistema político inglês oriundo da "Revolução Gloriosa" não aboliu nem o rei e nem a nobreza, conforme podemos verificar até os dias de hoje, mas possibilitou a legitimação política e o aprofundamento do capitalismo no país. O seu arranjo político se transformou em modelo para pensadores ligados a burguesia em outros países da época. No entanto as particularidades nacionais não permitiram que tal arranjo se desenvolve-se em todos os países, como atestaram na sequência os casos da França e dos Estados Unidos.

Apesar das particularidades locais uma coisa era comum na democracia representativa moderna pensada pela burguesia: a exclusão das classes subalternas!
Estas não só não tinham direitos políticos como seria detestável pensar na possibilidade de conceder tais direitos a elas.

Inicialmente a exclusão é justificada por uma suposta incapacidade das classes subalternas. Na França, o liberal Benjamin Constant, compara a massa trabalhadora às crianças e aos estrangeiros:
“Não quero cometer nenhum injustiça contra a classe laboriosa (...). Mas as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a trabalhos diários não são nem mais esclarecidas do que as crianças, nem mais interessados do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens” (cit. in Antônio Ozaí da Silva, 2006). [1]

O inglês John Locke, pai do liberalismo, já havia, antes de Constant, comparado os trabalhadores braçais aos índios: "um trabalhador manual [...] não é capaz de raciocinar melhor do que um indígena" (cit. in Losurdo, 2004, p.47), por isso sua distância com relação aos homens das classes altas é "maior do que aquela entre alguns homens e alguns animais" (idem, p.46), sendo assim, tais indivíduos não passariam de "bestas de carga puxada para frente e para trás pelo mercado, numa trilha restrita e num caminho sujo" (idem, p.46).

Nos Estados Unidos os "Pais Fundadores" também apresentam desprezo pelas massas pauperizadas. Se Gouverneur Morris assimila os trabalhadores às "crianças" (idem, p.23), Hamilton os vê como os mais "depravados morais" da sociedade:
"a vantagem está do lado dos ricos. Provavelmente, seus vícios são mais vantajosos para a prosperidade do Estado do que aqueles dos carentes. E, entre os primeiros, existe menor depravação moral". (idem, p.102)

Vale ressaltar que tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos governados exclusivamente pelos "vícios vantajosos dos ricos" os níveis de corrupção, ou seja, de "depravação moral", eram elevados. Mas logo se percebe que por trás da alardeada "incapacidade das massas" esconde-se o medo da "invasão da propriedade". De repente as "crianças" aparecem "esclarecidas" e "interessadas" para o mesmo Benjamin Constant:
"Observem que o escopo necessário dos não-proprietários é chegar à propriedade: eles empregarão para este escopo todos os meios que lhes forem dados. Se à liberdade de ofício e de trabalho (...), que lhes é devida, acrescentarem-se os direitos políticos, que não lhes são devidos, estes direitos nas mãos da maioria servirão infalivelmente para invadir a propriedade." (idem, p.38)

A mesma preocupação surge nos Estados Unidos e é na Inglaterra que James Madison, um dos "Pais Fundadores", busca o remédio para as massas indesejadas:
"Na Inglaterra, atualmente, se as eleições fossem abertas a todas as classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais segura. Logo seria introduzida uma lei agrária." (idem, p.23-24)

Nota-se que a tão temida "invasão da propriedade" não se trata de um ato físico de invasão propriamente dito. Até porque para tal ação não é necessário possuir direitos políticos reconhecidos. É tido como "invasão da propriedade", pelas classes dominantes, qualquer direito social conquistado pelas classes subalternas. Uma lei agrária ou redução na jornada de trabalho já constituiria uma "invasão da propriedade".

Estamos, portanto, diante de uma democracia elaborada pela e para uma determinada classe da sociedade, qual seja, a burguesia! Uma democracia dos ricos para os ricos.
Os belos cânticos sobre o "povo", a "participação popular", etc; encontrados nos escritos e discursos de vários políticos e pensadores burgueses desse período não faziam referência as classes subalternas, mas a burguesia. Era ela o "povo" que "participava" da política.

b) A inserção das classes subalternas

As condições políticas, econômicas e sociais advindas da formação societária construída pela burguesia levou as classes subalternas a mobilizações cada vez mais intensas - em especial no século XIX - por melhores condições de trabalho, salários e participação política.

Imprensada pela classe subalterna a burguesia se viu obrigada a fazer concessões. Mas como conceder o direito de voto para a classe que representa a maioria dos membros da sociedade sem afetar a sua dominação? Como evitar que o voto dos trabalhadores resultasse em um governo que de fato os representassem? Foram as questões com as quais se debruçou a burguesia. O liberal inglês, John Stuart Mill, expressa de forma cristalina esta preocupação:
"(...) a grande maioria dos votantes de quase todos os países, e com certeza também do nosso, se comporia de trabalhadores manuais; e o duplo perigo, o de um nível demasiado baixo de inteligência política e o de uma legislação de classe, continuaria a subsistir em medida considerável" (cit. in Losurdo, 2004, p.32)

Assim algumas fórmulas foram pensadas e aplicadas para reduzir o efeito "perigoso" do voto da classe que representa a maioria da sociedade. Na Inglaterra do século XIX, o próprio Mill, pensou em votos que tivessem pesos diferenciados de acordo com o setor da sociedade do qual o indivíduo fazia parte. Assim o voto dos pobres valia menos que o dos ricos. Este foi o "voto plural", que vigorou no país até 1948 e que foi assim justificado por Mill:
"Um empregador é mais inteligente do que um operário, por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos [...]. Um banqueiro, um comerciante serão provavelmente mais inteligentes do que um lojista, porque têm interesses mais amplos e mais complexos a seguir [...]. Nestas condições, poder-se-iam atribuir dois ou três votos a toda pessoa que exercesse uma destas funções de maior relevo" (idem, p.35-36)

Sistemas de votação também foram elaborados. Nos Estados Unidos perdura até os dias de hoje um sistema eleitoral que além de escolher o Presidente da República de forma indireta (os eleitores votam em delegados e não no candidato a Casa Branca), ainda rejeita a proporcionalidade, criando um funil intransponível que favorece apenas dois partidos que estão comprometidos com a ordem burguesa e as suas guerras imperialistas. Na maioria dos Estados quem recebe a maior votação leva todos os delegados. Por exemplo, se em um determinado Estado o candidato do Partido A obtém 60% dos delegados e o candidato do Partido B obtém 40%, o candidato A levará todos os delegados como se tivesse obtido 100% dos votos.

O sistema de votação indireto dos Estados Unidos possibilita ainda que um candidato adentre a Casa Branca sem obter a maioria dos votos. O caso mais recente, e conhecido, é de George W. Bush em 2000. Mas em 1824, Andrew Jackson acabou derrotado na Câmara dos Representantes depois de obter 41,35% dos votos populares contra 30,92% do eleito John Quincy Adams. É que caso um candidato não obtivesse a maioria absoluta dos votos a eleição terminava nas mãos da Câmara dos Representantes. [2]

A fórmula do sistema americano foi vista como segura e eficaz contra a influência das classes subalternas pelo liberal francês Alexis de Tocqueville, que visitou os Estados Unidos no século XIX:
"Não tenho dificuldades para admiti-lo; vejo na ação do duplo grau o único meio para pôr o uso da liberdade política ao alcance de todas as classes do povo." (cit. in Losurdo, 2004, p.19)

O sistema de votação distrital inglês, criado no século XIX, funciona de forma similar não sendo por acaso que por lá também haja apenas três partidos competitivos e todos igualmente comprometidos com a ordem pré-estabelecida. Esse sistema além de favorecer a formação de "caciques" locais ainda possui a distorção de permitir que sejam formadas maiorias parlamentares com votações baixas. [3] Alguns países que haviam adotado esse sistema o abandonaram ao longo do tempo.
Logo, quando a Inglaterra suprime o voto plural as instituições e as regras do jogo já estavam estabelecidas e com a balança favorável às classes dominantes. Os eleitores, por sua vez, se viram diante de um jogo de cartas marcadas.

Outro mecanismo criado para garantir a hegemonia das classes dominantes foi a cláusula de barreira, implementada sobretudo em países da Europa Ocidental, como a Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. O objetivo era barrar os "subversivos".
O caráter antidemocrático desse mecanismo fica evidente quando se constata que o regime militar brasileiro se interessou por tal cláusula chegando a propor um índice de desempenho de 10% na Constituição de 1967. [4]
Além da Alemanha, possuem cláusula de barreira:
Albânia, Argentina, Armênia, Áustria, Bulgária, Coréia do Sul, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Filipinas, França, Grécia, Geórgia, Holanda, Hungria, Israel, Lituânia, Macedônia, México, Moçambique, Moldávia, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, República Tcheca, Romênia, Rússia, Suécia, Tailândia, Taiwan, Turquia e Ucrânia. [5]

Ainda deve-se ressaltar o financiamento privado das campanhas eleitorais que deixa os candidatos previamente comprometidos com o poder econômico que os financia. Nos Estados Unidos não há sequer horário eleitoral gratuito e as propagandas eleitorais dos candidatos são propagandas como qualquer outra e como tais pagas pelos próprios partidos que, por sua vez, arrecadam recursos junto aos empresários. Em uma economia extremamente competitiva, onde as empresas prezam pela austeridade, seria ingênuo acreditar que os milhões despejados nos candidatos pelos empresários fossem sinônimo de amor a democracia. Tratam-se de investimentos futuros, que são pagos pelos políticos através de leis, acordos e recursos públicos, após serem eleitos.

Outro elemento importante, que não deve ser negligenciado nesse processo, é o controle exercido pelas classes dominantes sobre os meios de propagação de informações e opiniões que influenciam a chamada opinião pública: a mídia.

Uma boa sintetização desse quadro foi feita pelo físico alemão, Albert Einstein, em 1949:
"O capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competência entre os capitalistas, e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho alentam a formação de unidades maiores de produção em detrimento das menores. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado cujo enorme poder não pode ser controlado efetivamente nem sequer por uma sociedade política democraticamente organizada. Isto é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados pelos partidos políticos, em grande medida financiados ou de alguma maneira influenciados por capitalistas privados que, por todos efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A conseqüência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses dos grupos não privilegiados da população. Por outra parte, nas condições atuais os capitalistas privados controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa escrita, rádio, educação). É então extremamente difícil, e por certo impossível na maioria dos casos, que cada cidadão possa chegar às conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos." [6]

c) O caso brasileiro

Embora a História do Brasil contenha, tanto na política como em outras áreas, algumas particularidades, o seu sistema político atual é inspirado na tradição da democracia representativa moderna, aquela criada pelos e para os ricos.

A Constituição da "República dos Estados Unidos do Brasil", de 1891, não tinha em comum apenas o nome do país localizado ao Norte da América. Buscava inspiração nesse país para o seu sistema eleitoral. No capítulo sobre a eleição do Presidente era assegurado que se "nenhum dos votados houver alcançado maioria absoluta, o Congresso elegerá, por maioria dos votos presentes, um, dentre os que tiverem alcançado as duas votações mais elevadas na eleição direta." [7]
Observando o caso citado anteriormente sobre as eleições de 1824 percebe-se que se trata de uma cópia escancarada do modelo estado-unidense!

Além de alguns momentos de regimes ditatoriais também não faltou por aqui a exclusão das massas do processo eleitoral nos momentos mais "democráticos":
"O primeiro recenseamento no Brasil, em 1872, indicava uma população de quase dez milhões de habitantes, mas, em 1889, eram somente 200 mil os eleitores. A primeira eleição presidencial verdadeiramente disputada entre nós, em 1910, em que porfiaram Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, contou com apenas 700 mil eleitores, 3% da população, e somente na escolha dos constituintes de 1945 é que, pela primeira vez, os eleitores representaram mais de 10% do contingente populacional." (Jaime Barreiros Neto, 2009) [8]

Se por um lado as grandes mobilizações sociais deram fim a ditadura militar nos anos 80 e conseguiu arrancar ganhos inéditos para as classes subalternas do país, por outro, a situação não fugiu completamente das mãos da classe dominante nativa que pôde articular a transição democrática no país. Não por acaso o primeiro presidente não militar foi eleito indiretamente por um colégio eleitoral, além de seu vice, José Sarney, ter tido relações estreitas com o regime autoritário.

No atual sistema político brasileiro se por um lado temos um horário eleitoral gratuito, por outro temos tempos injustamente distribuídos para os diferentes candidatos, o que praticamente inviabiliza que alguns partidos apresentem um programa aos eleitores, enquanto outros dispoem de tempo robusto para tocar jingles marketeiros que dizem coisa alguma com nada.

Se na teoria o voto de um humilde trabalhador tem o mesmo valor que o de um grande banqueiro, na prática os milhões despejados nas campanhas dos políticos por este último garante que as decisões dos governos lhes favoreçam, como ocorreu na nova Lei de Falências que colocou os bancos na frente dos trabalhadores na fila pelo recebimento dos créditos das empresas.

Se não temos uma cláusula de barreira, como alguns países, e o nosso sistema não possui um funil como a Inglaterra e os Estados Unidos, por outro lado não podemos falar de uma proporcionalidade absoluta. O chamado "quociente eleitoral" não deixa de ser uma cláusula excludente uma vez que permite que candidatos com votações elevadas fiquem de fora das instituições representativas, ao passo que outros com menor votação entrem.

A crise da democracia representativa moderna

Como vimos, a democracia representativa moderna foi criada pelos ricos para os ricos, e estes fizeram de tudo para evitar que ela se tornasse "o governo do povo, para o povo", quando tiveram que abrir espaço para as classes subalternas. Porém, no discurso, ela continua se apresentando como "o governo do povo, para o povo". A crescente percepção da contradição entre o que ela é na prática e como ela se apresenta, está na raiz da crise de credibilidade da democracia representativa moderna.

O seu desgaste aos olhos das massas é um fenômeno mundial. Nos países onde vigora o voto facultativo os níveis de participação da população geralmente são baixos. Nas eleições regionais francesas deste ano, por exemplo, a abstenção chegou a 52% [9]. Para a prefeitura de Londres em 2008 apenas 45% dos eleitores compareceram. Em 2004, 37% votaram. [10] No ano passado as eleições alemãs registraram abstenção recorde. [11] O mesmo se deu nas eleições italianas deste ano. [12]
O quadro é ainda mais grave quando se trata das eleições para o Parlamento Europeu. No ano passado apenas 43,01% dos eleitores europeus compareceram às urnas. Em 2004 foram 45,4%. [13] Em 1999 a abstenção foi de 53%. 75% na Grã-Bretanha. [14]

Nos Estados Unidos a situação não difere muito da Europa. Embora as últimas duas eleições para a Casa Branca tenham registrado um aumento da participação dos eleitores (devido a crise econômica, 2008; e a questão das guerras, 2004), os índices não são tão elevados comparando-se com a Europa. [15]
Quando a eleição é para o Congresso a abstenção é ainda maior:
"Nestas, entre 1958 e 1970 só participou uma média de 44% do eleitorado, taxa que desceu para 36% entre 1974 e 1986. Nas eleições de 1990 apenas 1/3 do eleitorado se deu ao trabalho de votar, subindo a proporção em 1994, quando votaram 38% dos eleitores potenciais. Esta taxa repetiu-se praticamente em 2002, com uma participação de 39% do eleitorado. Em resumo, a democracia representativa tem mobilizado apenas entre 1/3 e 2/3 dos eleitores norte-americanos." (João Bernardo, 2009) [16]

As democracias representativas modernas estão marcadas pela "desconfiança e o desinteresse" da população, conforme sugere o título do artigo de João Bernardo de 2009. Isso explica a forte abstenção nos países onde o voto é facultativo.
Nas eleições italianas citadas anteriormente, em uma cidade da Calábria, "apenas 2,8 do eleitorado votou em protesto, porque se "sentem abandonados pelas instituições e pelos políticos". [17]

A percepção de que os partidos majoritários dos regimes não poderão alterar a situação tem se feito presente em muitos eleitores. Nas eleições inglesas deste ano, por exemplo, um grupo de manifestantes analisava desta forma o quadro partidário do país:
"É preciso votar em outros candidatos, de outros partidos. Todos os três o conservador David Cameron, o trabalhista Gordon Brown e o liberal-democrata Nick Clegg são cúmplices do genocídio em que se transformaram essas guerras todas" (...) "Todos são a favor de levar as guerras até o fim. Precisamos encontrar alternativas para retornar à paz". [18]

Mas com tal estrutura montada para reproduzir a ordem seria suficiente apenas votar em outros candidatos, como sugerem esses ingleses inconformados? É o que veremos na sequência.

Há saída?

As decisões políticas afetam a vida de todos os membros de uma sociedade. Por isso a política não pode ser ignorada. Mas o que fazer diante de um cenário montado para reproduzir uma sociedade injusta?

Analisando a construção da atual estrutura política constatamos que as classes dominantes rejeitaram até onde puderam a inserção política das classes subalternas. Assim a primeira conclusão a ser extraída é a de que devemos SIM participar da política!

Mas para que participar de um jogo de cartas marcadas? Se o voto é esterilizado?

Participar da política não se resume a apenas exercer o direito de voto. Pode-se participar da política organizando-se nos bairros, nas escolas, nas associações, nos locais de trabalho, participando de atos, passeatas, etc. Foi dessa forma que as classes subalternas conquistaram a maioria dos seus direitos. A organização e a mobilização, desde baixo, constitui uma das armas mais potentes que possuímos. Essa deve ser a segunda conclusão a ser assimilada.

Mas a participação e a mobilização desde baixo só terão o efeito desejado, qual seja, de transformar a "democracia dos ricos" na "democracia do povo" se ela tiver como fim a transformação sócio-econômica da sociedade. Não basta ficar organizado e mobilizado, desde baixo, em uma guerra de guerrilhas permanente. E a perspectiva do poder político central não pode ser abandonada.

Assim a organização e mobilização popular deve ser voltada para a transformação de toda a estrutura política-econômica-social. Até porque se tais estruturas, como vimos, foram montadas para reproduzir o atual quadro de desigualdades e injustiças, não será simplesmente adentrando nessas estruturas que o seu funcionamento será alterado.

Algumas lideranças populares, por incompreensão ou oportunismo, difundem a ideia de que o voto e a inserção de políticos ligados às classes subalternas nas estruturas montadas para manter as coisas como estão, são suficientes para se efetuar mudanças profundas. É uma falsa ilusão! Ainda que um partido ligado a classe trabalhadora rejeita-se prostituir-se, conseguisse ultrapassar todas as barreiras impostas e chegasse ao poder, sem a organização e a mobilização social ele seria facilmente golpeado pelas classes dominantes.

A conclusão final não pode ser outra senão a de que será através da organização e da mobilização social desde baixo que as mudanças profundas serão efetuadas e que a "democracia do povo" será realizada. Não é um caminho fácil. Mas é o único possível.

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[1] Antônio Ozaí da Silva. Eleições, Tocqueville e a “tirania da maioria”. Revista Espaço Acadêmico nº 67, dezembro de 2006:
http://www.espacoacademico.com.br/067/67ozai.htm

[2] John Quincy Adams
http://pt.wikilingue.com/es/John_Quincy_Adams

[3] Sobre isso faz referência Cármen Lúcia Antunes Rocha:
"A artificialidade dos distritos a serem criados, os recortes artificiais, influenciam negativamente esse sistema e, além disso, é sempre citado o exemplo do sistema distrital uninominal da Inglaterra, quando pode chegar ao poder e manter bom governo, com maioria de cadeiras parlamentares, o partido que não obteve a maioria de votos em determinada eleição. Mais ainda, as minorias praticamente são eliminadas no sistema distrital, e isso compromete mortalmente o princípio da Democracia representativa. O voto distrital restringe o campo de opções do eleitor, porque quem não está registrado no distrito não pode nele ser votado. Tem-se acentuado que o sistema eleitoral distrital, ainda, fortalece o caciquismo e que os políticos tratarão, no plano nacional, dos problemas locais, e não dos problemas nacionais, que lhes devem merecer atenção e decisão."
O Processo Eleitoral como Instrumento para a Democracia. Maceió, 27 de março de 1998.
http://www.tre-sc.gov.br/site/fileadmin/arquivos/biblioteca/doutrinas/carmen.htm

[4] Ana Claudia Santano. A QUESTÃO DA CLÁUSULA DE BARREIRA DENTRO DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO. RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v.13, 2006:
http://www.tre-sc.gov.br/site/institucional/publicacoes/artigos-doutrinarios-publicados-na-resenha-eleitoral/resenhas/v-13-2006/doutrina/a-questao-da-clausula-de-barreira-dentro-do-sistema-partidario-brasileiro/index.html

[5] Antônio Augusto Mayer dos Santos. Rev. do TRE/RS, Porto Alegre, v.14, n.29, jul./dez. 2009. (p.10)
http://www.tre-rs.gov.br/upload/18/revista_29_TRE_RS.pdf
José Antônio Giusti Tavares. PARECER SOBRE CLÁUSULA DE EXCLUSÃO SUPERIOR A 5% DOS VOTOS. Porto Alegre, 10 de novembro de 2006. POLIS - Pesquisa e Assessoria em Instituições Políticas e Governo. (p.12)
http://www.conjur.com.br/dl/Parecer_MS3555.pdf

[6] Albert Einstein. Por Que Socialismo. 1949:
http://www.marxists.org/portugues/einstein/1949/05/socialismo.htm

[7] Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891:
http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Brazil/brazil1891.html

[8] Histórico do processo eleitoral brasileiro e retrospectiva das eleições (05/2009):
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=12872

[9] Eleições regionais em França: vitória socialista; abstenção recorde (14/03/2010):
http://www.ionline.pt/conteudo/51069-eleicoes-regionais-em-franca-vitoria-socialista-abstencao-recorde
Triunfo da abstenção nas regionais faz manchete da imprensa francesa (15/03/2010):
http://pt.euronews.net/2010/03/15/triunfo-da-abstencao-nas-regionais-faz-manchete-da-imprensa-francesa/

[10] Resultado das eleições em Londres só deve sair à 0h local (02/05/2008):
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u398013.shtml

[11] Alemães votam, mas participação eleitoral atinge baixa histórica (27/09/2009):
http://www.dw-world.de/dw/article/0,,4727916,00.html

[12] Eleições regionais na Itália terminaram com forte abstenção (29/03/2010):
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1549097-5602,00.html

[13] Eleições europeias batem recorde de abstenção, diz Parlamento (07/06/09):
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1186153-5602,00-ELEICOES+EUROPEIAS+BATEM+RECORDE+DE+ABSTENCAO+DIZ+PARLAMENTO.html

[14] J.CARLOS DE ASSIS. A Europa e nós (14/06/1999):
http://www.monitormercantil.com.br/mostranoticia.php?id=224

[15] João Bernardo. Entre a desconfiança e o desinteresse: A abstenção eleitoral nas democracias. (13/03/2009):
"Nas eleições presidenciais a percentagem da população em idade de votar que se apresenta às urnas desceu gradualmente de cerca de 65% em 1960 para cerca de 55% em 1984. Nas eleições presidenciais de 1996 menos de metade do eleitorado votou; nunca a abstenção fora tão elevada neste tipo de eleições. A situação não se modificou substancialmente nas eleições presidenciais seguintes, pois em 2000 a taxa de participação foi apenas de 51%. Todavia, nas eleições presidenciais de 2004 foi já 61% do eleitorado a votar, uma tendência que se tornou mais acentuada em Novembro de 2008, quando votou 63% do eleitorado, a menor taxa de abstenção desde 1960."
http://passapalavra.info/?p=1579

[16] Idem 15.

[17] Idem 12.

[18] Em Londres, eleição se parece apenas a um dia como os outros (06/05/2010):
http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI4417805-EI15569,00-Em+Londres+eleicao+se+parece+apenas+a+um+dia+como+os+outros.html
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LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Editora UFRJ / Editora UNESP. Rio de Janeiro, 2004.
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domingo, 5 de setembro de 2010

Lula ataca a redução da jornada de trabalho

Fazendo coro com as classes dominantes, o Presidente Lula atacou mais uma bandeira histórica de luta dos trabalhadores, a redução da jornada de trabalho:


"(...) Eu estou achando muito engraçado no Brasil, daqui a pouco as pessoas querem ganhar sem trabalhar. Agora virou mania, todo mundo quer trabalhar 30 horas."

- Presidente Lula, sobre a greve dos peritos do INSS


Só faltou dizer que a redução ia trazer o caos à economia do país e que prejudicaria os próprios trabalhadores como dizem, desde o século XVIII, os empresários (lembrando que nesse período a jornada chegava a até 16 horas por dia).

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Lula critica greve de peritos do INSS e diz que redução de jornada "virou mania"
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/791700-lula-critica-greve-de-peritos-do-inss-e-diz-que-reducao-de-jornada-virou-mania.shtml
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