segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Os interesses por trás do RRF de Sartori-Temer

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Como boa parte dos crimes perversos e dos atos lesivos realizados contra o povo foi na calada da madrugada do dia 8 de fevereiro que a Assembleia Legislativa aprovou a adesão do Estado do Rio Grande do Sul ao mal chamado “Regime de Recuperação Fiscal (RRF)” do governo Temer [1]. A sessão foi convocada às pressas, logo após a decisão do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, do Tribunal de Justiça, ter sido revista por ele mesmo [2] – antes ele havia aceitado o mandado de segurança impetrado por alguns deputados da oposição impedindo a votação. [3]

Para atingir tal objetivo o governo Sartori empreendeu uma verdadeira guerra que já conta com algumas batalhas, e que ainda não está ganha, como alerta o jornal Zero Hora de Porto Alegre, do Grupo RBS (afiliada da Rede Globo), que tem atuado como uma espécie de Diário Oficial do Piratini:

Pelas normas impostas pela União, os Estados interessados no auxílio precisam ter ao menos 70% de suas receitas correntes líquidas comprometidas com as duas despesas. Entretanto, certidão anual do TCE, que será emitida nos próximos dias, apontará que o comprometimento da receita com pessoal em 2017 atingiu o índice de 54,7%. Mesmo se somados os gastos da dívida com a União, no ano passado, o índice sobe para 58,4%, distante do percentual exigido.” [4]

Esses dados já haviam levado o Tesouro Nacional a negar pedido de pré-adesão solicitado pelo governo gaúcho em novembro [5]. Como a forma atual de cálculo não lhe favorece o Piratini busca mudar a fórmula para fazer os números caberem nos critérios do Planalto [6]. É a velha arte de “torturar os números” até que eles digam o que convém.

Por outro lado, a oposição parlamentar, que apesar de pequena vem se beneficiando das contradições políticas da base governista para impor derrotas ao objetivo do governo desde dezembro, já anunciou que tentará anular judicialmente a sessão que aprovou a adesão do Estado ao RRF, pelo fato de não ter sido apresentado o contrato de adesão com as garantias, critério exigido pelas regras do parlamento. Sim, os deputados aprovaram um projeto que impactará por anos a vida da sociedade gaúcha sem sequer conhecer os termos do contrato!

O que se sabe é que com o RRF de Temer [7], que tem a sua origem no PLP 257/16 de Dilma [8], os servidores públicos ficarão pelo menos 3 anos sem qualquer reajuste (independente da situação econômica do Estado), novos servidores não poderão ser contratados, os serviços públicos serão sucateados e privatizados, haverá aumento de tributos (como o ICMS e até mesmo o fim do desconto no IPVA para bom motorista [9]) e a dívida pública estadual além de explodir (poderá chegar aos R$ 100 bilhões) não poderá mais ser contestada – e assim uma possível investigação do acordo da dívida de 1998, o qual Sartori apoiou como líder do PMDB na Alergs na época, e ainda defende [10], é jogada para debaixo do tapete.

Como se percebe o RRF formaliza o estabelecimento de um ajuste fiscal permanente para o andar de baixo independente do governador e do Estado apresentar crescimento econômico ou não enquanto eleva o endividamento público a patamares insuportáveis e leva a novas privatizações, ampliando os ganhos do capital financeiro e do grande empresariado, também independente da situação econômica do Estado ser de crescimento ou não.

A crise estrutural e social do Rio Grande do Sul se agravará ainda mais com tais medidas. O ajuste fiscal não visa “colocar as contas públicas em ordem”, como cinicamente se diz por aí. Seu objetivo é manter em ordem os lucros do grande capital mesmo que às custas de arrebentar cada vez mais com as contas públicas. É surreal a afirmação de Sartori de que com a aprovação do RRF “a proteção aos menos favorecidos venceu a defesa dos privilégios.” [11]

O empenho do governador em aprovar a adesão ao RRF de Temer possui basicamente dois interesses, não abertamente declarados: um econômico e outro político.

Do ponto de vista econômico, como todo o governo que defende o modo de produção capitalista e tendo em vista a sua crise estrutural, temos o compromisso de Sartori com as medidas de ajustes em benefício do grande capital, que está devidamente representado no seu governo pelo vice-governador, José Paulo Cairoli. Em outro artigo [12] já analisamos a influência do empresariado nas medidas de ajustes do governo gaúcho.

Como já afirmamos anteriormente os planos de ajustes não visam organizar as contas públicas mas manter em ordem os lucros do grande capital. É por isso que desde 2015 o Piratini vem tentando derrubar a exigência de plebiscito popular, previsto na constituição estadual, para privatizar estatais rentáveis.

O Grupo CEEE apresentou lucro líquido de quase 400 milhões em 2016 [13], a Sulgás em torno de 120 milhões [14] e a CRM detém um potencial de 3 bilhões de toneladas de carvão mineral já que o Rio Grande do Sul possui 80% das reservas do mineral do país [15]. Não é difícil entender o interesse do grande capital por essas estatais. E como o compromisso do governo Sartori é com os lucros deste e não com o bom andamento das contas públicas não é difícil entender porque ele está disposto a ingressar até no Supremo Tribunal Federal (STF) para buscar legitimidade para atropelar a constituição estadual e assim garantir a venda dessas empresas sem passar por um crivo popular que certamente lhe derrotaria. [16]

Ainda do ponto de vista econômico é preciso falar um pouco sobre a dívida estadual com a União, ponto central do RRF. De acordo com o Relatório Anual da Dívida, elaborado pelo Tesouro Estadual, esta fechou 2016 na casa dos R$ 57,4 bilhões [17]. As receitas do orçamento público para o mesmo ano foram estimadas em R$ 58,8 bilhões [18], em suma, pouco acima da dívida com a União. Se somarmos o restante da dívida interna e a externa, o total da dívida pública estadual em 2016 foi de R$ 66,2 bilhões [idem 17], superior a toda a arrecadação prevista naquele ano. É maior até mesmo que as receitas de R$ 63,2 bilhões estimadas para o orçamento de 2018. [19]

Com o RRF o governo alega que terá um “alívio financeiro de R$ 11,3 bilhões até 2020” [idem 11] com a suspensão temporária dos pagamentos das parcelas da dívida estadual. Não menciona que as projeções dos seus próprios técnicos indicam um aumento de até R$ 30 bilhões [20] da dívida e que o seu governo tem a intenção de adquirir um novo empréstimo de quase R$ 10 bilhões [21] para, entre outras coisas, financiar PDVs que certamente antecederão as privatizações, já que os passivos sempre são estatizados nesses processos, que, não por acaso, receberam corretamente o nome de privatarias.

Não haverá “tortura numérica” capaz de esconder a explosão da dívida do Rio Grande do Sul com este acordo. Ele enfrenta tanto este problema quanto enfrentava em 1998. Sartori e o PMDB conseguiram a proeza de repetir a história como farsa sem sequer mudar os protagonistas. O problema do endividamento será aprofundado drasticamente e servirá de justificativa para novos planos de ajustes, independente do RRF ainda estar em vigência.

Do ponto de vista político Sartori visa buscar a reeleição e sabe que não pode chegar no pleito com os salários dos servidores atrasados. Com o RRF visa obter uma margem financeira para terminar com os atrasos e até realizar algum projeto. Esse é outro motivo que explica a busca pelo empréstimo de quase R$ 10 bilhões -- mais precisamente R$ 9,8 bilhões.

Sartori quer chegar na campanha eleitoral com o discurso de que “colocou a casa em ordem”. Se isso vai emplacar são outros quinhentos mas é a única possibilidade de reeleição para o governador. É uma tática cujo êxito não deve ser desprezado já que estamos falando de um dos maiores partidos do Estado, com uma estrutura gigantesca, com apoio da grande mídia, dentro de um quadro eleitoral cujos concorrentes viáveis operam na mesma lógica de defesa do capital (portanto nos marcos do ajuste fiscal) e marcado por uma justa desilusão profunda das massas com os políticos e o regime – ainda que haja diferenças, principalmente na profundidade do ajuste, cabe destacar que foram alguns desses elementos que ajudaram na reeleição, em primeiro turno, de José Fortunati para a Prefeitura de Porto Alegre em 2012. Era muito comum ouvir de populares na época que, dado que são todos iguais e que nada mudará, então que se deixasse o Fortunati, até para não ter que ir votar novamente em um segundo turno inútil e estéril.

Assim, o oportunismo eleitoral do PT e do PCdoB -- que vendem a ilusão da redenção nas urnas através dos seus candidatos -- pode terminar sendo surpreendido negativamente. Integrados ao regime ao ponto de Sartori e Temer utilizarem um instrumento de ajuste elaborado pelo governo Dilma, sua tática eleitoral de simples “desgaste” do governo tem sido cúmplice da aprovação dos planos de ajustes do PMDB gaúcho.

Seus dirigentes sindicais atuam para derrotar greves cada vez que a base se rebela e quer travar uma luta consequente, como tem sido no sindicato dos profissionais da educação estadual (CPERS). Seus parlamentares atacam duramente a base dos servidores quando sua mobilização incomoda o normal funcionamento das instituições que aprovam o ajuste como fizeram os deputados Edegar Pretto [22] e Luiz Fernando Mainardi [23] quando professores estaduais bloquearam as entradas da Assembleia Legislativa.

É necessário um novo levante da base para organizar uma grande greve geral dos servidores estaduais já no início do ano para derrotar nas ruas o RRF de Sartori-Temer e qualquer outra medida de ajuste fiscal desses governos, como a contra-reforma da previdência. Um movimento que inclua na aliança a população que depende dos serviços públicos e que tem se deparado com o seu sucateamento e a redução da sua oferta, como as comunidades que estão sofrendo com os fechamentos de escolas.

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[1] Assembleia aprova, na madrugada, adesão do RS ao “Regime de Recuperação Fiscal”. 08/08/2018.

[2] Desembargador volta atrás e autoriza votação do RRF na Assembleia gaúcha. 07/02/2018.

[3] TJ derruba pauta do Plano de Recuperação Fiscal na Assembleia. 06/02/2018.

[4] Dados oficiais podem emperrar adesão do RS ao regime de recuperação fiscal. 10/02/2018.

[5] Tesouro Nacional nega pedido de pré-acordo de recuperação fiscal ao RS. 23/11/2017.

[6] Piratini agenda reunião com TCE para avaliar troca de metodologia de cálculo de gastos com pessoal. 06/01/2018.

[7] LEI COMPLEMENTAR Nº 159, DE 19 DE MAIO DE 2017.

[8] PLP 257/2016. Projeto de Lei Complementar.

[9] RRF prevê fim do desconto no IPVA para bom motorista. 23/11/2017.

[10] Sartori defende acordo da dívida firmado por Britto em 1998: ‘foi vantajoso para o RS’. 09/03/2018.

[11] A mudança venceu o atraso e a responsabilidade venceu o radicalismo, diz Sartori. 08/02/2018.

[12] Pacote de Sartori é receita dos empresários. 28/11/2018.

[13] Grupo CEEE registra lucro líquido de quase R$ 400 milhões em 2016. 29/03/2017.

[14] Lucrativa, Sulgás pode ser privatizada por menos de 1% da dívida com a União. 20/12/2016.

[15] Lucrativas, Sulgás e CRM na lista de vendas do governo gaúcho. 27/07/2015.

[16] Sartori pretende ingressar com ação no STF para garantir venda de estatais. 02/02/2018.

[17] Relatório Anual da Dívida Pública Estadual do RS 2016 - 8ª Edição. Elaborado pela equipe da
Divisão da Dívida Pública (DDIP) do Tesouro do Estado. Porto Alegre, 2017, p.11.

Dívida Pública.

Relatório Anual da Dívida Pública do RS.

[18] Orçamento do RS para 2016 é aprovado na Assembleia Legislativa. 02/12/2015.

[19] AL aprova Orçamento de 2018 do RS, com déficit de R$ 6,9 bilhões. 06/12/2017.

[20] Dívida do Rio Grande do Sul com União pode crescer em até R$ 30 bilhões. 13/03/2017.

[21] Governo gaúcho pretende contratar quase R$ 10 bilhões em empréstimos. 22/11/2017.

[22] Presidente da Assembleia considera inaceitável Cpers bloquear acessos ao Legislativo. 21/11/2017.

[23] Mainardi gravou um vídeo e fez uma postagem em sua rede social atacando os professores mas excluiu ambas publicações após repercussão negativa.



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