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Observatório
do Caos - Agosto 2, 2012
Entre
março de 1984 e o mesmo mês do ano seguinte, os mineiros de
diversas regiões do Reino Unido sustentaram uma das mais duras
greves do século XX contra o projeto do governo de Margaret Thatcher
de fechar 20 minas de carvão, ceifando 20 mil empregos. O episódio,
que à primeira vista poderia ser compreendido como apenas mais uma
luta de comunidades de trabalhadores pela manutenção de suas fontes
principais de sustento, adquire um significado bastante distinto
quando posto em perspectiva histórica. Para isso, será necessário
recuar alguns anos.
Em meados
da década de 1970, a porção capitalista do mundo enfrentava uma
grave crise econômica, que punha fim aos seus “30 anos gloriosos”
iniciados após a II Guerra Mundial. As taxas de lucro caiam
vertiginosamente, o capital se sobreacumulava, milhares de empregos
eram extintos e muitas empresas faliam. Nesse contexto, dois dos
principais países capitalistas elegeram governos truculentos que,
munidos de um projeto comum de reorganização da economia e reforma
do Estado, atuaram de forma a estancar os efeitos da crise. Para tal,
Ronald Reagan (1981-1989) nos EUA e Thatcher (1979-1990) no Reino
Unido detonaram uma onda de privatizações de serviços e empresas
públicas, reduziram a rede de proteção social e desregulamentaram
a atividade econômica, em especial, o setor financeiro.
Nesse
esforço de desmonte do Estado de Bem-Estar Social erigido nas
décadas anteriores, o ataque aos mineiros ocupava posição
estratégica. Não apenas os mineiros constituíam uma das categorias
mais organizadas da classe trabalhadora britânica, como as minas
nacionalizadas em 1947 simbolizavam o projeto político do Partido
Trabalhista, além de terem sido responsáveis diretos pela queda do
gabinete do Partido Conservador chefiado por Edward Heath através de
sua greve de 1974. Assim, a derrota dos mineiros em 1985, após
dezenas de violentíssimos embates entre grevistas e forças
policiais, representou a queda da última barreira, no Reino Unido, à
implementação do programa neoliberal, que, a partir dali, avançaria
cada vez mais até mundializar-se.
Hoje, a
economia capitalista mundial novamente vê-se à beira do abismo
consubstanciado na crise econômica. Não por acaso, a atual retração
surgiu precisamente pelo esgotamento das soluções elaboradas para
enfrentar a derrocada dos anos 1970. Embora os Estados Unidos e,
principalmente, a Europa estejam, por ora, enfrentando suas
manifestações mais sérias, a crise começa a ter, cada vez mais,
seus impactos sentidos também aqui no Brasil, a despeito da retórica
governamental. Redução do ritmo da produção industrial,
desaceleração da geração de empregos formais, demissões em
determinados ramos da produção, queda vertiginosa das previsões de
crescimento econômico e aumento das taxas de inadimplência são
apenas alguns de seus sintomas mais visíveis.
Nesse
cenário, o governo federal, capitaneado por Dilma Rousseff e pela
aliança PT-PMDB atua como enfermeiro das corporações que enfrentam
maiores dificuldades. Como se não bastasse o fato de a remuneração
dos rentistas proprietários de títulos da dívida pública consumir
a maior parcela do orçamento federal (mais de 47% em 2012), desde o
início do atual governo, em 2011, mais de 100 bilhões de reais já
foram destinados, quase sempre por meio de renúncia fiscal, a
diversos ramos da produção, garantindo a manutenção das taxas de
lucro em patamares satisfatórios. O conjunto dessas medidas, por sua
vez, elimina quaisquer dúvidas a respeito da opção classista do
atual governo federal, que se mantém fielmente ao lado dos
empresários. Eis, portanto, a razão primordial para a propalada
falta de recursos públicos para o atendimento das reivindicações
salariais e outras dos servidores públicos em greve (INCRA, IBGE,
FUNAI, FUNASA, INMETRO, DNIT, Arquivo Nacional, agências
reguladoras, educação básica e superior, Ministérios da Saúde,
Previdência, Transportes, Desenvolvimento Agrário, dentre outros).
Essa
opção, no entanto, precisa ser apresentada sob outra roupagem, para
que se torne palatável para parcelas mais amplas da população
brasileira. É com esse intuito que o governo Dilma passou a propalar
a falácia de que essa maciça transferência de recursos públicos –
oriundos de impostos pagos pela maioria da população – para mãos
privadas teria o objetivo de garantir os empregos dos trabalhadores
da iniciativa privada, que não desfrutam da estabilidade dos
servidores públicos. Felizmente, como qualquer mentira, essa também
tem pernas curtas e não foi muito longe, na medida em que o discurso
oficial foi rapidamente deixado de lado quando o governo precisou
aceitar e justificar a demissão, ao longo do último ano, de mais de
mil trabalhadores da General Motors de São José dos Campos,
justamente em um dos setores mais beneficiados pela redução do IPI
no mesmo período.
Sendo
esse um exemplo particularmente eloquente dentre outros, é preciso
encarar a falácia governamental como o que de fato é: uma tentativa
de dividir a classe trabalhadora, jogando os empregados da iniciativa
privada contra os supostos privilégios dos servidores públicos, ao
mesmo tempo em que o empresariado se apropria de parcelas cada vez
maiores da riqueza nacional. Trata-se de uma ação emergencial,
visando à minimização dos impactos da crise mundial no capital
investido no Brasil, enquanto se busca um redesenho da dinâmica
econômica capitalista mundial capaz de retomar, a nível global, a
trajetória ascendente das taxas de lucro, replicando o feito
alcançado pelo neoliberalismo a partir dos anos 1980.
Assim
como coube aos mineiros levantar uma importante barreira àquele
esforço de reestruturação capitalista, as atuais greves dos
servidores públicos federais devem ser encaradas sob a mesma
perspectiva. Distintamente do que ocorreu com os mineiros do Reino
Unido em 1984-5, no Brasil hoje temos a oportunidade de levantar essa
barreira enquanto não alcançamos o ponto mais baixo da curva
econômica e antes que o projeto de rearticulação capitalista ganhe
contornos mais definidos, o que amplia as possibilidades de
resistência a essa ofensiva. Por outro lado, esperar mais para
levantar as barreiras pode significar enfrentar, no curto prazo, um
cenário muito próximo ao que vivenciam os trabalhadores de
Portugal, Espanha e Grécia, em que a demora no estabelecimento de
uma mobilização unificada efetiva permitiu o avanço de forças
conservadoras e de sucessivos ataques aos direitos trabalhistas e
sociais. É preciso, portanto, que as greves funcionem, como o
fizeram em outros momentos históricos, como movimentos de construção
explícita de projetos amplos de transformação social, e não como
meras portadoras de reivindicações imediatas, ainda que as duas
dimensões estejam intimamente articuladas.
Em parte,
esse papel vem sendo cumprido com louvor. A denúncia da transfusão
de verbas públicas – que poderiam ser empregadas na melhoria dos
serviços oferecidos pelo Estado ao conjunto da classe trabalhadora,
como saúde e educação – para bolsos particulares já traz,
evidentemente, embutida a concepção de que a riqueza socialmente
produzida deve ser socializada, e não apropriada por alguns poucos.
Trata-se de uma bandeira fundamental para iniciarmos esse processo,
mas para que ele se aprofunde, será necessário que as múltiplas
greves concomitantes sejam transformadas no embrião de futuras
greves gerais, pela consolidação de ferramentas organizativas que
apontem para a unificação das ações do conjunto dos trabalhadores
dos setores público e privado. Nesse sentido, a estabilidade não
deve ser encarada como um privilégio, o que só redundará em
divisionismo, mas como um importante instrumento de dinamização da
mobilização da classe trabalhadora como um todo, uma vez que
garante melhores condições de luta para um segmento da classe, cuja
ação combativa poderá criar as condições para levantes das
demais categorias.
A
potencialidade política desse processo de unificação não passa
despercebida pelo governo federal, que atua diuturnamente para
fragmentar as categorias em luta. No caso das greves de trabalhadores
da educação federal, essa tática se expressa claramente no esforço
de desgastar os docentes pela apresentação dos mesmos como
radicais, que deveriam aceitar o plano de carreira proposto pelo
governo, deixando os técnicos-administrativos isolados em seu
movimento paredista, sem que nenhuma proposta tenha sido apresentada
para esses últimos. É precisamente nesse momento que se faz mais
necessária uma ação de sentido oposto, capaz de fazer avançar a
unificação das categorias em greve. Nesse processo, parcela
considerável de responsabilidade recai sobre os ombros dos
sindicatos mais combativos, como o ANDES e o SINASEFE, bem como dos
demais organismos que atuam de acordo com a perspectiva da construção
de um projeto político socialista comum a toda a classe
trabalhadora, como a CSP- CONLUTAS. Igualmente importante será a
superação, em favor da atuação conjunta, dos equívocos que
marcaram ambos os blocos de grupos organizados da esquerda socialista
no CONCLAT de 2010, o qual deveria ter iniciado o salto qualitativo
na unificação da classe trabalhadora. Deixar, uma vez mais, de
avançar na construção da necessária unidade poderá ter
consequências políticas das mais graves já a curto prazo, mas
principalmente numa temporalidade mais dilatada.
Diante
dessas considerações, acredito que colocar em perspectiva histórica
as greves dos servidores federais ora em curso significa, acima de
tudo, enxergar essas greves como greves políticas. Não se trata, no
entanto, de restringir seu caráter político às possíveis
consequências que poderão acarretar para o desenrolar dos processos
eleitorais municipais que ocorrerão em outubro desse ano. Fazer isso
significaria jogar o jogo dos blocos de poder que atualmente disputam
a primazia na gestão do projeto hegemônico das classes dominantes
brasileiras, capitaneados por PT-PMDB e PSDB-DEM. Entender as greves
como políticas em seu sentido radical significa, antes de tudo,
apostar em seu potencial para funcionar como passo inicial da
reunificação da classe trabalhadora em torno de um projeto
societário contrário ao caráter inevitavelmente opressor e
explorador dos trabalhadores e ambientalmente devastador do
capitalismo. Mais concretamente, significa também compreender que
uma derrota dessas greves hoje pode implicar na abertura para uma
derrota de longo prazo, capaz de estender por décadas a ofensiva
contra os direitos de todos os trabalhadores atualmente em curso.
Afinal, quanto mais se aprofundarem as condições geradoras da crise
econômica mundial e quanto mais forem retirados os direitos
duramente conquistados pelos trabalhadores ao longo de décadas de
lutas, mais difícil se tornará reverter o processo de recomposição
capitalista ensaiado pelas classes dominantes e seus guardiães à
frente da máquina estatal. Significa, por fim, entender que a
batalha perdida em 1985 pode ser ganha em 2012 e além; que é
possível construir uma sociedade em que nenhum trabalhador tenha que
passar quase um ano sem receber seu salário por acreditar na justeza
de sua luta política, tal como ocorreu com os mineiros.
Obs.:
Agradeço a Adriano Zão, Demian Melo, Fábio Frizzo, Felipe Demier,
Juliana Lessa, Luana Sidi e Rafael Maul pela discussão das ideias
apresentadas nesse texto, as quais são de minha inteira
responsabilidade.
Extraído
de:
http://observatoriodocaos.wordpress.com/2012/08/02/as-greves-dos-servidores-publicos-federais-em-perspectiva-historica-a-necessaria-retomada-da-disputa-entre-projetos-societarios/
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