O primeiro mês do ano de
2014 começa com uma série de movimentos sociais e sindicais que
apontam para a continuidade e o aprofundamento das lutas no país,
que já vinham se avolumando antes de 2013 mas que tiveram o ápice
nas famosas jornadas de junho do referido ano e que podem
superar tais jornadas no ano que se inicia.
Além dos já esperados
protestos que questionam a Copa do Mundo, que ocorreram em várias
cidades do país, greves e paralisações ocorrem nesse momento nos
Correios, na educação estadual do Rio Grande do Norte, municipal de
Belém e Jacundá no Pará e na saúde de Porto Alegre. Em Curitiba
professores municipais e rodoviários também podem declarar greve
nos próximos dias.
Mas os olhos do país
inteiro têm se voltado para a greve dos rodoviários de Porto
Alegre. O próprio Governo Dilma pediu um relatório da mesma [1]
possivelmente temendo que um “efeito Porto Alegre” se alastre
novamente a exemplo do que ocorreu na questão das passagens de
ônibus no ano passado.
E não é para menos: a
greve que já dura uma semana tem enfrentado corajosamente
empresários, governo, justiça, grande mídia e a direção pelega e
traidora do seu próprio sindicato.
A rebelião de base
protagonizada pela categoria deixou o andar de cima atordoado,
conforme atestam as declarações do Prefeito José Fortunati (PDT),
e escancarou que os poderes constituídos – como o Judiciário –
atuam na defesa dos lucros dos empresários, não dos trabalhadores.
O movimento dos
rodoviários - que busca melhorias salariais, de condições de
trabalho e manutenção de benefícios que os empresários querem
retirar - começou no final do ano passado com as chamadas “operações
tartarugas” até a deflagração da atual greve devido a
intransigência das empresas.
No primeiro dia da greve,
segunda-feira (27/01), 30% da frota de ônibus circulou. Em uma
tentativa de jogar a população contra os rodoviários o Prefeito
chegou a dizer que havia uma “lua de mel” [2] entre empresários
e trabalhadores com o objetivo de aumentar o preço das passagens de
ônibus. Logo em seguida tentou um acordo com os ônibus da região
metropolitana para atender a população da capital, medida a qual
teve de recuar, após a ameaça de recolhimento dos 30% que estavam
operando por parte dos trabalhadores.
A Prefeitura ingressou
então na justiça para pedir que 70% da frota circulasse nos
horários de pico e 50% nos demais horários. A justiça determinou
70% nos horários de pico, 30% nos demais horários e multa de R$ 50
mil por dia ao sindicato em caso de descumprimento. [3] Como no verão
já circula 70% da frota tal sentença acabaria por tornar a greve
impotente.
Assim, na manhã de
quarta-feira, pressionados pelas empresas, vários ônibus voltaram a
circular, principalmente do consórcio Unibus, mas logo tiveram de
ser recolhidos após serem apedrejados. A partir daí nenhum ônibus
mais circulou nas ruas de Porto Alegre!
Foi o momento da grande
mídia, a RBS principalmente, que já tinha endossado a tese do
Prefeito Fortunati de que havia uma “lua de mel” entre
trabalhadores e empregados [4], demonstrar claramente de que lado
estava.
O jornalista Paulo
Sant'ana tem se destacado como um verdadeiro pitbull dos empresários
de ônibus. Desde o primeiro dia da greve ele não só não tem
abordado outro assunto como vem pedindo pela prisão dos rodoviários:
“(…) Vão chantagear na cadeia!” [5]
Em um desses apelos pelo
encarceramento dos grevistas, Sant'Ana emite uma preocupação que
deve estar rondando as cabeças das classes dominantes:
Eu
mandaria prender estes falsos sindicalistas que detonaram esta greve
imfame.
Porque
se nada for feito contra eles haverá com certeza outros exemplos de
desacato e desobediência que imitarão estes. E Porto Alegre e o
Brasil virarão num império da desordem. [ibidem*]
Na quinta-feira, ocorreu
uma reunião, mediada pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT), entre
o sindicato dos rodoviários, as empresas, a Prefeitura e o
Ministério do Trabalho. Nela a direção pelega do sindicato filiado
à Força Sindical assinou um acordo, por cima da base, para
desmontar a greve. O acordo previa o retorno ao trabalho já no dia
seguinte, com metade da frota, que já seria de 100% no segundo dia,
cancelando a greve por 12 dias. [6] Ao ler os termos do acordo para
os trabalhadores que estavam concentrados na frente do TRT, indicando
a sua aprovação na assembleia do dia seguinte, os sindicalistas
foram vaiados.
O fato deixava claro que
a greve deflagrada e sustentada não era uma “lua de mel” entre
patrões e empregados mas uma autêntica rebelião da base. E foi
essa base que garantiu no dia seguinte que nenhum ônibus saísse da
garagem, embora a grande mídia, irresponsável ou maliciosamente,
tivesse alardeado que haveriam ônibus circulando na cidade.
Com mais um dia sem
ônibus, o Prefeito Fortunati externou todo o seu desespero e
despreparo, pedindo a repressão da Brigada Militar - e que alguns de
seus membros dirigissem os ônibus [7] – tendo chegado ao ponto de
ameaçar com o pedido de intervenção da Força Nacional [8] ao
passo que fugia de responder sobre a possibilidade de uma nova
licitação para o transporte coletivo [9], o que não ocorre há 25
anos.
Os jornalistas da RBS,
por sua vez, deixavam claro mais uma vez de que lado estavam. Se
Paulo Sant'Ana pedia pela prisão dos grevistas, Rosane de Oliveira,
mais cautelosa, reclamava que a “Greve dos ônibus passou dos
limites”. [10]
Representando outra
instituição pró status quo que vem atuando para desmontar a greve,
a desembargadora Ana Luiza Heineck Kruze, do TRT, que declarou a
ilegalidade da greve e que na reunião de mediação defendeu que a
direção do sindicato atropelasse a sua base, externou preocupação
com um possível efeito do “mau exemplo” da rebeldia dos
rodoviários:
É
preocupante em todos os sentidos. Se chegarmos a um sistema onde nada
é respeitado, estamos diante de um sistema anárquico. Isso não é
bom para ninguém, nem para o próprio sindicato. É um risco para
toda a sociedade. [11]
Nessa sexta-feira agitada
e preocupante para o andar de cima teve ainda um numeroso ato
estudantil em solidariedade à greve dos rodoviários que começou na
frente da Prefeitura, se encontrou com os grevistas na saída da
assembleia que definiu pela continuidade da greve e passou na sede do
Jornal Zero Hora, do Grupo RBS, que foi apedrejada. Estava selada de
vez a aliança dos rodoviários com o movimento estudantil - que já
vinha participando da greve.
No sábado nove ônibus
da empresa VAP, que saíram da garagem, foram apedrejados e tiveram
de ser recolhidos. De acordo com a Empresa Pública de Transporte e
Circulação (EPTC) 45 ônibus foram atacados desde o início da
greve [12]. No mesmo dia o Prefeito Fortunati anunciou que deve sair
em até 30 dias um edital para nova licitação no transporte
coletivo, conforme havia ordenado a justiça [13] – prazo curto que
tem tudo para beneficiar as 12 empresas que controlam o setor na
capital gaúcha.
Mais do que uma pauta
sindical
A rebeldia dos
rodoviários portoalegrenses, que conta com o apoio da maioria da
população [14], ocorre em um contexto de aprofundamento das
contradições sociais e das lutas populares no país. Seu bravo
enfrentamento com as velhas direções sindicais pelegas, os
empresários do transporte, a prefeitura, a justiça e a grande mídia
servem de lição e inspiração para outros trabalhadores e
explorados que, insatisfeitos, podem perceber cada vez mais que a
unidade, a organização e a mobilização podem resistir e derrotar
forças poderosas. Essa lição já é a grande vitória da greve e a
grande preocupação do andar de cima como constatado nas declarações
da desembargadora, do jornalista da grande mídia e pelo interesse do
Governo Dilma em um relatório da greve.
Ela coloca mais uma vez a
questão do transporte coletivo no centro do debate. Mostra que as
medidas anunciadas no ano passado pelos governos não resolveu o
problema pois seu compromisso era com os empresários do setor e não
com o povo e os trabalhadores. Evidencia a perversidade de um modelo
onde uma minoria privilegiada e protegida pelos governos e a justiça
lucra às custas dos baixos salários, dos cortes de benefícios e
das péssimas condições de trabalho de seus empregados e cobrando
caro da população pobre por um transporte sem qualidade.
É preciso ter cuidado
com certas armadilhas apresentadas como panacéias. Novas licitações
não vão resolver o problema. Elas podem ser vencidas pelos mesmos
grupos que já se beneficiam do atual modelo. E mesmo que outros
grupos privados vençam ocorrerá apenas a troca de seis por meia
dúzia.
O problema é o modelo:
está na hora de tratar o transporte coletivo, chamado de público,
como um direito e não uma mercadoria. Já está mais do que evidente
que essa não é a intenção dos empresários e dos governos que os
protegem. Somente a luta popular poderá reverter essa situação.
____________________________________________
[1] Carolina Bahia:
Planalto monitora greve em Porto Alegre (29/01/2014):
[2] Sindicato dos
Rodoviários descarta greve combinada com empresários (28/01/2014):
“Tenho
na minha bagagem inúmeras greves e não vi nenhuma tão estranha
quanto essa. Hoje, na frente da s garagens, só há piquetes na
Carris, não tem ninguém nas outras empresas. Os trabalhadores
normalmente vão para frente das garagens e o que estamos vendo é
uma lua de mel. Isso é muito estranho”. José Fortunati,
Prefeito de Porto Alegre.
[3] Justiça determina
manutenção de 70% da frota de ônibus nos horários de pico
(28/01/2014):
[4] A
capa do Jornal Zero Hora de 28 de janeiro tinha como principal
manchete: “Greve
cordial”:
[5] O caos nos ônibus.
Paulo Sant'Ana, 27/01/2014.
70%
da frota! Paulo Sant'Ana, 28/01/2014.
*
Nas barbas da Justiça. Paulo Sant'Ana, 29/01/2014.
Enfim,
acordo parcial. Paulo Sant'Ana, 30/01/2014.
Bagunça
nos ônibus. Paulo Sant'Ana, 31/01/2014.
[6] Greve dos
rodoviários é suspensa temporariamente após acordo na Justiça
(30/01/2014):
[7] Prefeitura pedirá
apoio a PMs para atuarem como motoristas de ônibus em Porto Alegre
(31/01/2014):
[8] Greve dos
rodoviários: prefeito ameaça recorrer à Força Nacional
(31/01/2014):
[9] “Ao ser
abordado sobre questões relacionadas à licitação do transporte
coletivo, o prefeito respondeu às primeiras questões, abandonanado
a entrevista após a terceira pergunta sobre o tema, deixando os
jornalistas sem respostas.” (ZH, 31/01/2014)
[10] Greve dos ônibus
passou dos limites (31/01/2014):
[11] "Se nada é
respeitado, estamos diante de um sistema anárquico", diz
desembargadora que mediou acordo (31/01/2014):
[12] No sexto dia de
greve, nove ônibus são depredados em Porto Alegre (01/02/2014):
[13] Prefeitura tem 30
dias para iniciar licitação de transporte em Porto Alegre
(30/01/2014):
[14] “No
programa Polêmica, da Rádio Gaúcha, geralmente bastante afinado
com as posições gerais demonstradas pela empresa, há sempre uma
pergunta para os ouvintes, muitas vezes construída de forma bastante
capciosa. Nesta quinta, a questão foi: “Rodoviários de Porto
Alegre contrariam decisão da Justiça e fazem greve geral. Eles tem
razão?”. Mesmo com o questionamento direcionado pela ênfase no
ponto da contrariedade à decisão da Justiça, e mesmo com o recorte
de público de um espaço midiático conservador, o resultado mostrou
a maior parte dos votantes apoiando a greve.” (COBERTURA DA
GREVE DOS RODOVIÁRIOS: CRIMINALIZAÇÃO, NOVAS LEMBRANÇAS E VELHOS
ESQUECIMENTOS. Alexandre Haubrich. Jornalismo B, 31/01/2014.
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