Rejane Carolina Hoeveler - 21/02/2014
Em artigo publicado sexta-feira 14, no blog “Conversa Afiada”, do
jornalista Paulo Henrique Amorim, o renomado cientista político
Wanderley Guilherme dos Santos dá sua contribuição à atual ofensiva
conservadora contra aqueles que protestam contra as injustiças sociais
nas condições da limitada democracia vigente no Brasil, dirigido já há
mais de dez anos por um governo, segundo ele, “dos trabalhadores”.
Propagando o ódio a estes supostos “propagadores de ódio”, o professor
Wanderley Guilherme praticamente acusa os intelectuais que se opõem ao
atual estado de coisas no Brasil de serem “mentores do assassinato”,
referindo-se implicitamente à morte do cinegrafista da Band – um caso,
como se sabe, repleto de, digamos, “curiosidades” jurídicas, políticas e
midiáticas.
Intitulado “Os whiteblocs são os assassinos intelectuais”, seu
artigo, no melhor estilo “Veja governista”, se dirige a “vetustos
blogueiros, artistas sagrados como marqueteiros crônicos, jovens
colunistas em busca da fama que o talento não assegura, políticos
periféricos ao circuito essencial da democracia, teóricos sem obra
conhecida e de gogó mafioso, estes são os mentores da violência pela
violência, anárquica, mas não acéfala”; intelectuais que abençoariam “um
suposto legítimo ódio visceral contra as instituições, expresso em
lamentável, mas compreensível linguagem da violência, segundo estimam,
busca seduzir literariamente os desavisados”.[i]
Caracterizando o período que vivemos como uma “era de violência”, uma
violência por sinal injustificável contra nossas “democráticas
instituições”, o autor parece esquecer que a política moderna é
entendida como marcada pela “violência” pelo menos desde Maquiavel, e
que em nenhum período da história contemporânea houve qualquer momento
em que não estivesse presente. Não precisamos nem recorrer à análise
marxista do Estado, para a qual todo regime de dominação de classe é
intrinsecamente violento contra os de baixo, mesmo nos períodos de
aparente tranqüilidade política. O artigo de Wanderley consegue a proeza
de estar à direita daqueles que como José Murilo de Carvalho brilhante
em seu liberalismo bastante conservador, fazem no mínimo questionar a
ação desproporcional das polícias militares nos protestos, algo hoje
destacado em toda imprensa internacional e que o nosso governismo bloc
procura esquecer, ou não tratar como “violência”.[ii]
Evidentemente a posição política do petista não se refere apenas ao
Black-bloc, e não se trata absolutamente de divergência tática ou
estratégica com seja lá o que signifique politicamente o Black Bloc.
Não. A posição do professor, e de todo o governismo bloc, que tem
desesperadamente tentado impedir protestos neste ano eleitoral, além de
garantir a estabilidade política para defender os grandes interesses
privados envolvidos nos mega-evento, se dirige a todo o conjunto da
esquerda e dos lutadores que se negam a sair das ruas, mesmo com todas
as balas de borracha e gases venenosos, prisões e manipulações da mídia
corporativa (cujos interesses, nesse sentido, estão intimamente ligados
ao do governo).
Está cada vez mais patente o avanço dos defensores da ordem,
governistas ou não, em criminalizar toda a esquerda que não se vendeu e
os movimentos sociais não enquadrados na atual ordem política. Até mesmo
movimentos muito mais tradicionais e enraizados como o MST não têm
escapado do recrudescimento repressivo, como demonstra o caso da marcha
em Brasília ocorrida na última quarta-feira, 12, que deixou 32 feridos
pelos desmandos da polícia de um governo petista, enquanto, aliás, a
presidenta Dilma festejava com Kátia Abreu e Blairo Maggi. Já é sabido,
por exemplo, que no Rio de Janeiro o sanguinolento governo de Sérgio
Cabral, junto com o governismo bloc, se empenha agora em difundir a tese
de que não há nada de errado no Brasil, e que os protestos seriam o
resultado não de insatisfações generalizadas, mas de uma grande e
obscura conspiração de partidos de esquerda que pagariam manifestantes
para “promover o quebra-quebra”. Em São Paulo as forças repressivas do
governo do tucanato não ficam para trás, como ficou mais uma vez claro
no episódio em que um jovem trabalhador foi sem mais nem menos baleado
pela PM nos arredores da Avenida Paulista durante uma manifestação
contra os efeitos da Copa, cujo grande legado, claro está, consiste num
conjunto de medidas draconianas e cerceadoras de direitos.
O governo do PT, tão diferente daqueles dos tucanos, fechou os olhos
para este e outros inúmeros dramáticos episódios de violência política,
ao mesmo tempo em que autorizava colocar o Exército para reprimir as
manifestações durante a Copa. A lógica retórica utilizada para
justificar coisas assim é sempre algo como “porque senão, a direita vai
voltar e todos sabemos como era ruim na ditadura” – quando qualquer
pessoa podia ser baleada numa manifestação ou ser presa sem acusação…
Muito coerente! Só que não.
Os intelectuais governistas preferem assim fazer coro com “The
Globe”, que em sintomático editorial desta semana, intitulado “Inimigos
da democracia”, retoma seu passado “glorioso” de apoio ao golpe de 1964 e
à toda a ditadura, em nome da democracia, deixando claro que sua
“auto-crítica” do ano passado nada mais foi do que um “limpar a ficha”
para sujar de novo. [iii]
Não. O alvo do renomado professor não é nem a mídia conservadora (o
famoso PIG), nem as polícias truculentas ou a legislação draconiana de
restrição aos direitos democráticos em curso; seus inimigos são os
supostos “mentores” da violência política, que seriam “professores
universitários do Rio de Janeiro, de São Paulo e outras universidades”,
que “falam do governo dos trabalhadores (sic) como se fosse o governo do
ditador Médici, embora durante aquele período não abrissem o bico”.
Curioso que Wanderley mencione isto, já que ele sim, “abriu o bico”
exatamente durante o governo Médici, e não foi tanto para denunciar o
terrorismo de Estado daquele que foi o período mais tenebroso de todo o
regime ditatorial, como faziam professores como Florestan Fernandes.
Não. Preocupado estava com a garantia de uma transição “tranqüila” e
“estável” para uma democracia que viria das mãos dos militares, sua
atuação à época foi de colaborar com aquele nefasto regime em sua
estratégia para uma transição que mudasse tudo para não mudar nada.
Senão, vejamos.
Colaboracionismo, ontem e hoje
Poucos conhecem essa faceta da obra do renomado cientista político,
lembrado por sua participação tanto no antigo ISEB, junto aos
intelectuais comunistas e nacionalistas, quanto por sua simpatia ao PT,
que na década de 1980 foi o ator político que mais denunciou a transição
pactuada da ditadura. Mas é bom recordar, ainda mais num ano de
efemérides relacionadas aos 50 anos do golpe empresarial-militar de
1964.
O fato é que o então diretor do Departamento de Ciência Política da
Faculdade Candido Mendes e professor visitante da Universidade da
Califórnia, participou, em 20 de setembro de 1973, de conferência
organizada pelo Instituto de Pesquisas, Estudos e Assessoria do
Congresso Nacional (IPEAC), então presidido pelo senador José Sarney
(ARENA/MA), intitulada “Seminário Problemas Brasileiros”. A iniciativa
do IPEAC de Sarney contou com a participação, nada mais nada menos, de
figuras que dispensam maiores apresentações, como Roberto Campos,
Octavio Gouvêa de Bulhões, Mário Henrique Simonsen e Carlos Langoni,
todos figuras de peso da ditadura. Segundo noticiou a própria imprensa à
época,[iv] a conferência mais marcante foi sem dúvida a de Wanderley Guilherme dos Santos,[v]
e o principal motivo disto era justamente o fato de que se tratava não
de uma figura, como as demais, comprometidas com o regime até a medula,
mas justamente de uma voz da oposição. Isso afinal dava muito mais
legitimidade ao debate que à época se fazia sobre a chamada
“institucionalização da revolução”. Sua atuação revela o caráter da
oposição consentida ao regime, expressa por exemplo nas posições
políticas da “ala moderada” do MDB.
Em seu paper, Wanderley Guilherme dos Santos apresentou a
caracterização de que havia uma “crise institucional” em curso,
presumindo um acordo sobre a necessidade de superá-la, porém desacordo
sobre como fazê-lo. Definindo por crise institucional “não a
instabilidade das instituições (…), mas a não institucionalização da
estabilidade”, o autor já apresenta, logo de entrada, o problema da
institucionalização política, preocupação comum de outros intelectuais,
estes organicamente vinculados à ditadura, como o conhecido cientista
político norte-americano Samuel Huntington, que escreve em 1973, sob
encomenda do governo Médici, um documento chamado “Abordagens da
descompressão política”, que guarda inúmeras semelhanças com o paper do
professor brasileiro.[vi]
O objetivo do autor era apresentar uma contribuição própria para a
solução desta crise institucional, colaborando para a elaboração de uma
“estratégia não-revolucionária”[vii] (leia-se: conservadora) de substituição do sistema político autoritário para outro, mais estável porque institucionalizado.
Segundo o paper do professor Wanderley, em primeiro lugar, a política
de descompressão deveria ser “uma política incrementalista”, controlada
a partir de cima, e cuja “gradualidade” da introdução de medidas
garantiria assim o máximo de previsibilidade política (para o regime,
evidentemente). A recomendação do cientista político era para que se
evitasse “a simultaneidade das pressões”, ficando excluída da política
de descompressão “a discussão de modelos globais, onde a decisão se
estrutura em função de distintos ‘pacotes’ de medidas”.
Coerente com sua proposta de descompressão controlada, o professor
Wanderley não apenas justificava como imprescindível a repressão ao que
fosse considerado (pelo governo) como um “abuso da liberdade concedida”,
mas também a criação de mecanismos de coação “suficientemente fortes e
de rápida aplicação”.[viii]
Garantida a coerção organizada, o outro passo, segundo o autor, seria
“garantir processos compensatórios”, pois a estabilidade política
dependeria de tal balanceamento. Assim, o equilíbrio da nova ordem
política decorreria tanto da “disseminação de lealdade pela persuasão” e
da “imobilidade pela coação”, afinal, segundo o autor, “o poder público
não pode apenas abrir mão de sua capacidade genérica de coagir sem
paralelamente aumentar a distribuição da lealdade ao sistema”.
Segundo o autor, a lealdade ao sistema (sic) seria criada tanto pelo
que o sistema faz (positiva), quanto pelo que o sistema impede que os
outros façam (negativa). A participação dos “atores políticos” poderia
assumir diversas modalidades, na “geração de alternativas de decisão”,
na “discussão das alternativas”, sendo a decisão propriamente dita (por
exemplo, eleições diretas) apenas uma dessas “modalidades” possíveis.
Como se vê, tratava-se de um receituário com premissas políticas bem
explícitas, no essencial muito análogas às orientações de Samuel
Huntington e de outras figuras que estavam pensando em como garantir o
fim da ditadura sem o fim de suas instituições (entre eles o próprio
Roberto Campos); ou seja, nada mais que uma democracia restrita e
controlada como a que temos hoje.
Nada mais coerente que quem colaborou com uma transição conservadora
de uma ditadura, colabore hoje com a criminalização dos movimentos
sociais fora da ordem. A conjuntura é muito distinta, mas a lógica é a
mesma: construir “instituições fortes”, estáveis, ficando em segundo
plano a que custo político. A democracia se resume a um conjunto de
procedimentos e instituições que devem ser preservadas mesmo contra o
povo.
Viva o governo! Viva o regime e suas instituições! Viva o Estado!, é o
que gritam os mentores dos “revoltados a favor”. Mas ao contrário do
que afirma nosso cientista político, são eles que não vão vencer no
grito, pois, por mais que se esforcem, não podem abafar o grito das
ruas.
[i] http://www.conversaafiada.com.br/politica/2014/02/14/wanderley-os-whiteblocs-sao-os-assassinos-intelectuais/
[iv]
Ver por exemplo Folha de São Paulo, 20 de setembro de 1973, p.3; Folha
de São Paulo, 30 de setembro de 1973, p.3, ou Folha de São Paulo, 30 de
agosto de 1974, , onde a intervenção de Wanderley Guilherme é comparada á
de Samuel Huntington, como também em Folha de São Paulo, 08 de agosto
de 1975. Consultar também Anais do Senado, sessão ordinária de 1º de
novembro de 1973, p.57/58, onde um senador da Arena elogiava as
elaborações do professor. Lembrar também que até um moderado como
Ulisses Guimarães era à época crítico das proposições gradualistas, como
aparece explicitamente em declaração sua publicada na Folha de São
Paulo, em 19 de setembro de 1973, sob o título “MDB pode apoiar Geisel”.
[v]
A Conferência foi publicada pelo próprio IPEAC em 1973, e também
republicada em 1978 em conjunto com outros ensaios do autor. SANTOS,
Wanderley Guilherme dos. Poder & política. Crônica do autoritarismo
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978.
[vi] HUNTINGTON, Samuel. Abordagens da descompressão política. (mimeo). Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/arquivospessoais.
Para uma análise do mesmo, ver HOEVELER, Rejane. “Ditadura e democracia
restrita: a elaboração do projeto de descompressão controlada no
Brasil”. Monografia de conclusão de curso. Rio de Janeiro: IH/UFRJ,
2012. (disponível em: https://www.academia.edu/3563103/Ditadura_e_democracia_restrita_a_elaboracao_do_projeto_de_descompressao_controlada_no_Brasil_1972-1973.)
[vii] SANTOS, Op. Cit., p. 146.
[viii]
“A política de descompressão, ao renunciar aos instrumentos genéricos
de coação (atos, cassações, censura, etc), precisa substituí-los por
instrumentos específicos de coerção, que obriguem as áreas liberadas a
não,extravasarem os limites da descompressão planejada, e isto com a
mesma agilidade e velocidade com que o extravasamento tende a ocorrer.”
SANTOS, Op. Cit., p.154.
Extraído de:
http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2063
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