A chegada do PT ao poder central e os efeitos de sua administração têm impactado tanto à direita quanto à esquerda. A direita política carece de argumentos para se opor ao governo pelo fato dele ter se apropriado do seu programa político, econômico e de reformas. A esquerda, que aparentemente estaria em uma condição mais favorável para se opor ao governo, também tem sido afetada pelas contradições desse processo - o que de certa forma é natural.
Em
geral, a grande maioria da esquerda brasileira não têm conseguido
opor um programa com consistência ou mesmo cravar uma oposição
consequente ao petismo. Se impressionam com a popularidade de seus
governos, se omitem de denunciar o real caráter dos programas
assistencialistas [1] e chegam até a
chamar voto em suas candidaturas alegando mal menor, entre outras
confusões.
Ainda
há tempo - não muito - para corrigir esses deslizes. A crise
capitalista que está mais evidente nos Estados Unidos e na Europa
deverá se aprofundar no próximo período. No Velho Mundo as massas
têm rompido com a socialdemocracia e, em alguns casos, questionado a
ordem política e econômica. O Brasil não passará incólume por
isso. A crise também se aprofundará por aqui e os ataques aos
trabalhadores devem iniciar a ruptura das massas com as lideranças
carismáticas petistas. Nesse contexto somente um programa e uma
oposição consequentes serão capazes de desvendar a farsa e
apresentar uma proposta alternativa ao povo brasileiro.
A
transformação e adaptação do PT
A
maioria da esquerda brasileira tem uma caracterização correta do
processo que levou à transformação do PT em um partido da ordem.
Mas compreender esse processo é importante não apenas para não
repetir a História mas para fazer uma oposição consequente aos
seus governos.
De
forma resumida pode-se dizer que há elementos objetivos e subjetivos
que contribuíram para a adaptação do PT à ordem e que inclusive
há uma interação dialética entre eles.
Nascido
em meio às lutas contra a ditadura militar e as grandes greves
operárias o PT nunca foi um partido antisistema strictu sensu. Mesmo
em sua fase mais radical nunca passou de um partido majoritariamente
reformista. Esse elemento subjetivo, aparentemente inofensivo em uma
olhada apressada, possibilitou a eclosão do elemento objetivo
acomodação. Afinal, se a reforma do existente é o horizonte qual
seria o problema de se inserir na ordem? Logo os companheiros foram
se tornando consultores de empresas, empresários, gestores de fundos
de pensão, etc.
Percebe-se
que o processo de adaptação é mais longo e complexo não se
limitando ao simples "tocar o poder". Obviamente não se
pode excluir desse processo o impacto da queda dos regimes do chamado
socialismo real, outro elemento objetivo que afetou diretamente o
subjetivo, pois reforçou ainda mais as posições reformistas no
interior do partido.
Mas
há outro elemento objetivo fundamental a ser considerado: as
mudanças no interior do sistema capitalista nas últimas décadas
que tornaram as reformas em seu interior inviáveis.
Foram
as mudanças na base produtiva do sistema que levaram à adoção da
gestão neoliberal do capitalismo em detrimento da vertente
keynesiana com a consequente financerização da economia, ampliação
da forma mercadoria e rebaixamento e exclusão dos direitos sociais.
Logo,
quando o PT chegou ao poder central nem ele e nem o capitalismo eram
mais os mesmos. Seus dirigentes já estavam acomodados e com
interesses comuns com o sistema, além de encontrarem-se enredados em
sua complexa teia de relações sócio-econômicas. O capitalismo não
era mais reformável e as lideranças petistas não estavam mais
dispostas ao reformismo, uma vez que isso significava enfrentar a si
próprios. Essa combinação ajuda a compreender a aparente mudança
meteórica de posição de seus quadros políticos.
Mais
do que colaboração de classes
Conforme
os "companheiros" foram galgando postos na hierarquia foram
não apenas se descolando das bases e se aproximando das classes
dominantes como desenvolvendo interesses próprios de outro setor
social.
Convertidos
em consultores, empresários, gestores de fundos de pensão, etc,
passaram a ganhar com a especulação, com a dívida pública e até
com as privatizações - onde são sócios das grandes corporações.
Isso ajuda a entender porque a direção da CUT tem apoiado
contra-reformas na previdência, flexibilização dos direitos
trabalhistas e privatizações.
Esses
setores já estão do outro lado da trincheira e como tais têm feito
- e farão - de tudo para manter e ampliar seus privilégios. Não é
por acaso que os governos petistas reprimam as greves de
trabalhadores e que os chamem de "vândalos" como fizeram
em Jirau. Não é por acaso que tenham aderido e ressuscitado todo o
palavreado da ordem que já estava desgastado como a proclamação da
eficiência privada, a demonização dos servidores e do serviço
público, o mito do déficit da previdência, entre outros.
A
mudança material de muitos dos principais quadros do PT e as
inevitáveis medidas tomadas para defender suas novas posições
sociais, via seus governos, os tornam inimigos de classe e como tais
devem ser encarados e combatidos!
Infelizmente,
apesar de visualizar essa realidade na teoria, a maior parte da
esquerda brasileira escorrega na prática. As consequências, que não
têm sido das melhores no presente, poderão se tornar trágicas em
um futuro não muito distante.
Algumas
lutas sociais têm demonstrado o caráter vacilante dessa escorregada
prática, mesmo que tática. Palavras de ordem como "Dilma veta"
e "Dilma desapropria" criam no imaginário da base a falsa
ilusão de que o seu governo é amigo e aliado ou de que é vítima
de um Congresso Nacional no qual possui a maioria parlamentar. Se não
se diz "Serra veta" ou "Alckmin desapropria" não
há o porque desse rebaixamento diante dos governos petistas. Ou o
"Dilma desapropria" resolveu alguma coisa para o povo do
Pinheirinho?
Essa
tática, que tem levado a derrotas da classe, acaba desarmando o
movimento para as lutas e retrocedendo ainda mais o nível de
consciência. Em vez de "Dilma veta" deve-se denunciar a
sua política de vale tudo e de alianças espúrias que não serve
aos trabalhadores como dizem os governistas. Na verdade essa política
de alianças amplas é uma necessidade material dos "companheiros"
que adquiriram novos interesses a partir de sua nova posição
social. O discurso de governabilidade não passa de manobra retórica
para ludibriar a base.
Em
vez de "Dilma desapropria" deve-se denunciar a sua política
de incentivo a especulação imobiliária que acarreta na
desapropriação e expulsão dos mais pobres, política que apenas é
replicada nos Estados e Municípios por governos demotucanos.
Um
programa para as massas
O
tipo de vacilo referido anteriormente não é isento de bases. Uma
delas é a popularidade das lideranças carismáticas petistas que
acaba impressionando de forma demasiada alguns setores da esquerda, o
que influencia na sua prática política.
Esses
setores não teriam a mesma postura se em vez de Lula, fosse Alckmin
ou Serra que despontassem com grandes índices de popularidade.
Porém, o método da independência política e de classe deveria
valer para todos.
Os
que desejam mudanças sociais profundas não devem se deixar abalar
pelo prestígio da adversidade, ou pelo menos não deveriam. Um
governo que é celebrado pelo imperialismo, pela burguesia mundial e
nacional, por arrivistas do movimento social tem tudo para ter
índices elevados de aprovação. Ainda mais se os que estão à
esquerda dele também dão sua cota de contribuição com vacilos
políticos.
Guardando
relação com o anterior, o medo do sectarismo e do isolamento
político é outro aspecto observado. A consequência disso é que
até voto nas candidaturas petistas são defendidos sob a alegação
do mal menor.
Na
realidade concreta essa tática não só tem ajudado na confusão no
seio da classe e inflado o apoio ao PT como ainda tem fomentado o mal
maior, já que a coalizão que apóia e celebra o projeto petista
cria uma ferramenta política com poderes sem precedentes para atacar
os direitos da classe trabalhadora e ampliar os privilégios ao
capital. Como disse o próprio Lula, os ricos nunca ganharam tanto
dinheiro quanto na sua gestão. Parafraseando o ex-presidente,
podemos afirmar que "nunca antes na História desse país"
a CLT correu tanto risco!
Os
ensinamentos de Marx e Engels nos mostraram que a independência
política e de classe é o método correto. Descrevendo uma tática
política para a Liga dos Comunistas, em 1850, os pais do socialismo
científico se posicionaram da seguinte maneira diante da pressão
pelo suposto mal menor:
"Por
toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam
propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os
membros da Liga e para cuja eleição se devem accionar todos os
meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem
os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem
a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas
forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os
pontos de vista do partido. Não
devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos
democratas, como por exemplo que assim se divide o partido
democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com
todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja
mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer,
surgindo assim como força independente, são infinitamente mais
importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de
alguns reaccionários na Representação. Surja
a democracia, desde o princípio, decidida e terrorista contra a
reacção, e a influência desta nas eleições será antecipadamente
aniquilada." (Grifo nosso) [2]
Há
ainda os que se armam politicamente para dialogar com setores que
ainda estão no interior do PT, na esperança de ganhá-los. Essa
tática tem surtido poucos efeitos. Na maioria das vezes, em vez de
ruptura dos setores que estão dentro do PT, ocorre o rebaixamento
programático e a capitulação diante do governo pelos que estão
fora. Tudo para "não romper o diálogo".
Cabe
salientar que as contradições têm atingido o conjunto da esquerda
brasileira. Nem mesmo as organizações pequenas, por vezes
consideradas seitas, escapam desse processo. Como exemplo temos
alguns desses grupos defendendo as mesmas posições que os
governistas em relação ao julgamento do mensalão.
Como
se percebe o moinho da confusão recebe água de todos os lados. Para
superar esse processo o mais adequado continua sendo a elaboração e
defesa de um programa que dialogue não com setores políticos, às
vezes pequenos, mas com as demandas concretas da população. Se bem
articulado não há risco de isolamento político, tampouco de se ser
considerado sectário.
No
entanto, é preciso ser firme e consequente. Não dá para pegar, por
exemplo, a demanda popular moradia e depois se rebaixar de forma
ridícula com a palavra de ordem pueril: "Dilma desapropria".
O governo que amplia a mercantilização desse direito e incentiva a
especulação imobiliária deve ser combatido e não apresentado como
amigo e aliado.
É
óbvio que as ações dos governos petistas respingam no conjunto da
esquerda brasileira e que as classes dominantes buscam através delas
descredenciar a viabilidade de um projeto de esquerda, embora elas
próprias estejam se utilizando e apoiando a gestão do capital
praticada pelo PT. Mas é provável que, tão logo a crise
capitalista se aprofunde no país, e a própria classe dominante pule
do barco petista e passe a apontar o fracasso do seu governo como a
prova da inviabilidade da esquerda. [3]
Nesse
contexto a única forma de se credenciar diante das massas é através
de uma luta política consequente, que abandone os equívocos atuais,
e que possua um programa claro que contemple as aspirações
populares.
Na
Europa a ruptura das massas com a socialdemocracia tem sido
acompanhada do questionamento, ainda que difuso, da organização
social, política e econômica. No Brasil o descrédito com o sistema
político já é elevado. O aprofundamento da crise deve levar esse
descontentamento para o econômico e o social.
Saber
se posicionar desde já é fundamental. Até porque na luta de
classes a História atesta que o preço pago pelos vacilos políticos
é alto e as suas consequências trágicas.
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[1]
Como exemplo temos a quase ausência de crítica pública ao
Bolsa Família, programa indicado pelo Banco Mundial no melhor estilo
dar com a mão esquerda para melhor poder tomar em dobro com a
direita (o referido banco sugere a aplicação desse programa em
conjunto com cortes na previdência, na saúde e na educação). No
caso do Brasil tal programa foi indicado pelo tucano Marconi Perillo,
cujos créditos foram reconhecidos pelo próprio Lula, no dia do
lançamento.
Essa
falta de coragem se torna ainda mais vergonhosa quando se percebe
que, em 2000, um já domesticado Lula se referia nesses termos aos
programas assistencialistas:
"(...)
lamentavelmente no Brasil o voto não é ideológico (...) e
lamentavelmente você tem uma parte da sociedade que pelo alto grau
de empobrecimento ela é conduzida a pensar pelo estômago e não
pela cabeça. É por isso que se distribui tanta cesta básica. É
por isso que se distribui tanto tíquete de leite. Porque isso, na
verdade, é uma peça de troca em época de eleição. E assim você
despolitiza o processo eleitoral. Você trata o povo mais pobre da
mesma forma que Cabral tratou os índios quando chegou no Brasil,
tentando distribuir bijuterias, espelhos para ganhar os índios. E
eles distribuem alimentos. Você tem como lógica manter a política
de dominação que é secular no Brasil (...)"
[2]
Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas. Março de
1850.
[3]
A socialdemocracia européia era apresentada, pelas
classes dominantes, como uma esquerda inteligente e moderna, uma
alternativa aos "anacrônicos" que insistiam no desejo de
superar a sociedade existente. Bastou a crise econômica bater na
porta para a bajulação evaporar e o socialismo (tsc!) ser
responsabilizado pelo fracasso da via socialdemocrata de gestão do
capital.
.