Sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa (…)
Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. Guy Debord
Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. Guy Debord
Desde
tempos imemoriais os seres humanos representam, isto é, transpõem a
vida ao ritual, ao símbolo, à imagem, para olhá-la como num espelho e
tentar reconhecer-se. No entanto, como nos explica Bakhtin, o signo não é
uma simples reapresentação do real, ele reflete e refrata o real
representado. No caso do ritual da justiça, o espetáculo não é mera
expiação social do dano causado, ela é mais que isso, é catarse.
Os meios de
comunicação transmitiram o espetáculo do julgamento do mensalão com o
rigor do rito jurídico e com as sutilezas da performance circense, com
direito a mágicos e suas capas e uma profusão de coelhos que saltavam de
cartolas/pastas, equilibristas navegando de maneira instável em uma
tênue linha que separa a verdade da ficção. Malabaristas jogavam suas
palavras, termos jurídicos, citações filosóficas, tipificações do ato
delituoso, atenuantes, impropérios e, lógico, os palhaços, esses
artistas incompreendidos e adorados, com suas roupas extravagantes e
enormes sapatos que distraem a atenção do público enquanto os
funcionários trocam os cenários.
Inútil
procurar os fatos, a sagrada verdade, sobre os entulhos de processos e
recursos. Ela é o que menos importa, pois no espetáculo “tudo que era
vivido diretamente tornou-se uma representação”, nos diz Debord (A sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto: 1997, 13).
O espetáculo
é a afirmação da aparência, mas aparência não é falsidade que encobre
um real, é a forma necessária de expressão deste real, nos termos de
Marx a expressão invertida de um mundo invertido. O fato que origina a
ação jurídica tem que se tornar abstrato para ser julgado, ele deixa de
ser um ato que fere uma ou outra pessoa, ou as pessoas em seu conjunto
como sociedade, mas deve ser tipificado como ação contrária a
determinado preceito legal. Na abstração da norma positivada, o fato se
vê e se reconhece, ou não, mas não pelo que é em si mesmo, mas pela
habilidade dos advogados em reconstruí-lo para que se encontre nos
termos abstratos da lei, ou dela destoe.
Desta
maneira, o espetáculo jurídico, assim como todo espetáculo, assume uma
forma tautológica, uma vez que “seus meios (são), ao mesmo tempo, seu
fim” (idem, 17). Quando se chega ao fim do julgamento, a sentença
proferida, a justiça é feita. Realiza-se lá, no espaço jurídico, o que
deixou de se realizar no campo social onde se deu o fato. Este é o
mecanismo primordial da catarse. Na vida tudo é muito complicado, as
contas não fecham, nossos amores viram desamores, nossos carros não
sobem montanhas, ficam presos no engarrafamento, nosso cigarro vira
câncer de laringe; mas, na novela os casais se encontram, normalmente no
último capítulo, e, no que nos interessa, os culpados são punidos e a
justiça é feita.
É, no
entanto, inegável que ao projetarmos a realização do desejo no outro
sentimos em nós uma realização indireta. Pulamos de aviões, enfrentamos
batalhas, vivemos grandes e avassaladoras paixões, voltamos no tempo e
desvendamos os rincões mais distantes do espaço. Talvez, seja esse um
elemento do ser social que em si mesmo não é um problema. Nossa projeção
nos outros e mesmo a realização de nossos desejos na realização do
outro, é próprio da sociabilidade humana, mas não é disso que se trata,
mas de uma projeção na qual uma relação entre seres humanos assume a
forma de uma relação entre coisas.
O fundamento
da catarse é que projetamos para outro a realização de algo que por
esse meio deixa de se realizar em nós, assim se aproxima do fenômeno da
alienação e do estranhamento. No campo da política tal fenômeno está
presente no mito fundador do Estado, tal como descrito pelas mãos de
seus precursores contratualistas. Dizia Hobbes:
“Diz-se
que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e
pactuam, cada um com cada um dos outros, que qualquer homem ou
assembleia de homens a que sejam atribuídos pela maioria o direito de
representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seus representante),
todos, sem exceção (…) deverão autorizar todos os atos e decisões desse
homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus atos e decisões” (Hobbes, Leviatã, cap.XVIII).
Vejam,
aqueles que “representam” decidem por nós, em nosso lugar. Os mais
otimistas diriam: sim, mas e daí? É um ato legítimo de representação, em
nosso nome, portanto, salvaguardando nossos interesses. O que os
otimistas (ou ingênuos) não percebem é que a transposição para o
universo simbólico e espetacular onde se dá a representação não é apenas
a expressão refletida de nossa vontade como vontade geral, a refração
que distorce toda representação é que os interesses particulares se
apresentam como se fossem universais.
Vamos aos
fatos. Vivemos em um presidencialismo de coalizão, isto é, o presidente
governa construindo uma sustentação no Congresso (Senado e Câmara de
Deputados). A sistemática política funciona no sentido de impor a
necessidade de formar bancadas de sustentação entre forças distintas que
ocupam, supostamente de maneira proporcional, os postos no legislativo.
O meio consagrado de manter estas bancadas, condição essencial à
governabilidade, é a troca de favores entre o executivo e o legislativo
que pode se dar na divisão de cargos no governo, na aprovação de emendas
ao orçamento, no direcionamento das ações públicas para áreas de
interesse dos lobbies que os parlamentares representam.
Até aqui, a
consciência condescendente de nossa época e a legislação considera
legitimo e legal. O ato do espetáculo exige não apenas que os atores que
representam atuem como se aquilo fosse o real, mas há a exigência de
outra atuação complementar, aquela que impõe ao público que suponha real
a atuação dos atores (a menos que estivéssemos diante do distanciamento
brechitiano, que não cabe aqui). Assim, os governantes atuam desta
forma como se fosse pelo interesse geral e o bom público finge
acreditar.
O que os
governantes sabem e o bom público também, é que este campo restrito de
legalidade é constantemente subvertido por iniciativas que vão além do
legal e do legítimo e a troca de favores inclui práticas diretas ou
indiretas de corrupção. Longe de ser um desvio ou mau funcionamento de
um sistema em si virtuoso, a corrupção é parte integrante e
incontornável da forma de governo estabelecida. Mas para o bom andamento
do espetáculo, todos temos que fingir que não sabíamos e, público e
governantes, se mostrar surpresos (normalmente como mau atores) quando
as práticas ilícitas se tornam visíveis.
As campanhas
eleitorais, que são o ritual espetaculoso pelo qual se montam as
representações governamentais e parlamentares, são fundamentalmente um
ato explícito de corrupção e chantagem. Não importa que fira os mais
elementares princípios da própria jurídicialidade burguesa. Vejam a
distribuição do tempo de televisão (meio que, hoje, se tornou decisivo).
Pela lei, ele é distribuído pelo tamanho das bancadas existentes, o que
é absurdo uma vez que define uma proporção fundada nas eleições
anteriores para um pleito aberto ao futuro e quebra a igualdade como
condição da disputa. Tal procedimento abre a negociação pelo tempo em um
verdadeiro balcão de negócios onde o que menos vale são programas e
compromissos políticos fundados em interesses reais em disputa na
sociedade (leia-se “de classes”).
Não se
proíbe a mercantilização da política, mas a consciência piedosa de nossa
época parece se espantar na hora de pagar pela compra realizada, como o
desavisado no bordel se mostrando surpreso por não ter sido por amor.
Não é menos corrupção, no exato sentido da palavra, um governo que
mantêm as taxas de juros em patamares exorbitantes para atender as
promessas de campanha ao setor bancário, ou que dirige as obras públicas
em favor das grandes empreiteiras. Ele está pagando favores advindos do
financiamento de campanha. Da mesma maneira os recursos oriundos destes
financiamentos, sejam registrados e legalizados ou contabilizados no
famoso caixa dois, são partilhados entre aqueles partidos e políticos
que disciplinadamente mantiveram-se na sustentação do governo.
O PT tem
razão em se mostrar indignado. Ele apenas atuou pelas mesmas regras que
sempre se atuou no presidencialismo de coalizão, da mesma forma que os
governos do PSDB, DEM e PPS, assim como o histórico fisiologismo do
PMDB, sempre governaram. Seu engano, entre tantos, foi supor que tinha
sido aceito no clube e receberia as mesmas prerrogativas que seus pares
mais tradicionais. Acreditou que pelo fato de não abrir a caixa preta do
governo FHC e expor as entranhas dos atos ilícitos ali praticados, não
diferentes daqueles pelos quais foi julgado, ele seria poupado, numa
espécie de crença ingênua de “amor, com amor se paga”, tendo que cantar,
ao final, um samba amargurado: “você pagou com traição, a quem sempre
lhe deu a mão”.
Havia outro
caminho? Esta é uma pergunta difícil. Para aqueles que acreditam que a
estratégia política passa pelo suposto controle de governo tal com está
definido nos marcos do Estado Burguês, ou seja, aboliram de sua
concepção política a noção de ruptura, infelizmente, não. Mas não há
inevitabilidade na política. O equívoco maior do PT e de sua estratégia é
se prender aos limites da governabilidade burguesa e das amarras do
presidencialismos de coalizão. Havia sim oura sustentação política, mas
esta se localizava fora do parlamento e dos marcos da institucionalidade
burguesa: os movimentos sociais e a organização autônoma da classe
trabalhadora.
Essa opção
levaria a um governo de tensões e intensificação da luta de classes,
opção descartada pelos estrategistas petistas. A opção pela
governabilidade com base na adesão (compra) de partidos implicou na
aceitação tácita e explícita dos meios necessários para isso que agora
são julgados como imorais e ilegais (e são).
Por isso, há
uma ironia na última reunião do diretório nacional do PT que aventou a
possibilidade de chamar as massas e a militância em defesa do PT contra o
STF. Não se pensou em mobilizar as energias militantes e a capacidade
de luta da classe trabalhadora quando podia e devia, para impor uma
governabilidade que se dirigisse contra os limites da ordem, para
sustentar uma reforma política que supera-se as armadilhas da
governabilidade viciada estabelecida, para garantir uma reforma agrária,
para barrar o desmonte das políticas públicas, para defender a
previdência, para barrar os transgênicos e a supremacia do agronegócio.
Agora querem que os trabalhadores saiam em defesa do governo contra uma
decisão da justiça, da representação suprema de uma ordem política e
jurídica a qual o PT se rendeu como limite intransponível. É mais que
irônico, é ridículo.
Neste ponto o PT, mais uma vez, se mostrou coerente. Acatou a decisão da justiça e desautorizou as manifestações de massa.
Diz, mais uma vez Debord:
“A
alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de
sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele
contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens
dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu
próprio desejo” (Debord, op. cit. 24)
Quem produziu espectadores não pode esperar agora que hajam como atores.
Quando morre
um palhaço, triste e solitário, com cirrose de tanto beber para enganar
a tristeza da vida, o público nem percebe. No picadeiro há outro, com
uma grossa camada de maquiagem, com suas roupas coloridas e um sorriso desenhado na cara.
O espetáculo não pode parar! Respeitável público…
***
Mauro Iasi
é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da
ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas),
do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Extraído de:
http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/12/12/a-suprema-justica-do-espetaculo-o-mensalao-o-circo-e-nenhum-pao/
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