“Há um sistema da
dívida pública”, critica Maria Lucia Fattorelli
16/11/2012
Samir Oliveira
Auditora da Receita
Federal durante 29 anos, Maria Lucia Fattorelli se dedica, desde
2001, à coordenação do movimento Auditoria Cidadã da Dívida. A
organização vem buscando informações sobre a dívida pública
brasileira e demanda a realização de uma ampla auditoria em seus
contratos.
Para Maria Lucia, existe
um “sistema da dívida” no Brasil. Nesta entrevista ao Sul21, ela
explica que esse sistema foi orquestrado pelo aparato financeiro
internacional com a anuência de diversos governos desde a ditadura
militar.
“O sistema consiste na
usurpação do instrumento de endividamento público. Em vez de ser
um instrumento que aporta recursos ao Estado, passou a ser um ralo
para escoar esses recursos. É esse sistema que influencia o modelo
econômico. Quais são as metas econômicas do governo federal? Não
são metas de bem estar social. São metas de controlar a inflação
e atingir o superávit primário. Se não há recurso para pagar a
dívida e atingir o superávit, então o governo corta o orçamento
de diversas áreas”, critica.
A auditora aposentada foi
uma das seis estrangeiras escolhidas pelo presidente do Equador,
Rafael Correa, para realizar uma auditoria da dívida pública do
país, em 2007. Com essa atitude, o Equador reduziu em 70% o gasto
com a dívida. “Foi uma lição de soberania ao mundo”, defende
Maria Lucia.
Ela esteve em Porto
Alegre nesta semana para participar do XXII Congresso da Federação
Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do
Brasil (FENASTC).
“A
dívida brasileira hoje, somando a externa e a interna, está em
quase R$ 3,5 trilhões e absorve quase meio orçamento por ano. Em
2011, o governo pagou R$ 708 bilhões”
Sul21 – Como surgiu o
movimento?
Maria Lucia Fattorelli -
O movimento existe desde 2000, quando houve o grande plebiscito
popular da dívida no Brasil. Esse plebiscito foi convocado por
entidades da sociedade civil, igrejas, partidos políticos,
sindicatos e associações. Foi realizado em mais de 3,3 mil
municípios em todo o país e colheu mais de 6 milhões de votos. Em
toda a década de 90, vínhamos debatendo esse assunto. Se o Brasil é
tão rico, por que temos tantos problemas sociais? Chegamos à
conclusão de que a mãe das dívidas sociais era a dívida externa.
Na época, a face da dívida era a externa. O plebiscito que
organizamos tinha três perguntas e uma delas era: “Você concorda
em continuar pagando a dívida sem a realização da auditoria
prevista na Constituição?”. A Constituição de 1988, no artigo
26 das disposições transitórias, prevê a realização de uma
ampla auditoria por uma comissão mista convocada pelo Congresso
Nacional. Terminado o plebiscito, entregamos os resultados para o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Passaram-se meses e não
aconteceu absolutamente nada, então as entidades voltaram a se
reunir para discutir o que fazer. Mais de 80 entidades nacionais e
alguns parlamentares propuseram a continuidade da luta iniciada com o
plebiscito através de um movimento pela auditoria cidadã.
Sul21 – Qual o objetivo
do movimento?
Maria Lucia – Não
queríamos ficar apenas cobrando a auditoria da dívida. Iríamos
além. Iríamos tentar levantar o que fosse possível, com base em
dados e documentos públicos. É o que temos feito ao longo desses 12
anos, acessando dados sobre a dívida pública da União, dos
municípios e dos estados, sempre analisando o teor dos contratos e a
sua conjuntura. Buscamos fazer uma auditoria integral, que não é
simplesmente uma auditoria contábil. Comparamos dados divulgados
pelo Ministério da Fazenda com os dados da contabilidade nacional,
com a evolução do orçamento e com o peso da dívida no orçamento.
Qual tem sido o peso da dívida na vida do cidadão? Com isso,
conseguimos explicar porque o Brasil, sendo um dos países mais ricos
do mundo, acumula tanta injustiça, tanta miséria e não oferece os
serviços públicos aos quais a sociedade tem direito. Os recursos
necessários para isso estão sendo sangrados pela dívida.
Sul21 – Quem são os
profissionais que trabalham nessa auditoria?
Maria Lucia - É um
movimento aberto. Tem mais de 50 entidades apoiadoras. E 99,9% dos
que trabalham conosco são voluntários. Contamos principalmente com
o trabalho voluntário de auditores da receita federal, dos tribunais
de contas e das receitas estaduais, que doam seus conhecimentos para
esta luta cidadã.
Sul21 – E que tipo de
informações vocês já possuem sobre a dívida?
Maria Lucia - A dívida
brasileira hoje, somando a externa e a interna, está em quase R$ 3,5
trilhões e absorve quase meio orçamento por ano. Ainda assim, a
dívida continua aumentando. Em 2011, o governo pagou R$ 708 bilhões.
Até início de outubro de 2012, já tínhamos atingido essa cifra.
Em geral, o governo divulga uma cifra muito mais baixa do que essa,
como se a dívida estivesse em torno de R$ 1,8 trilhão. Isso porque
ele divulga a dívida líquida. É um conceito muito pouco claro em
que se deduz alguns créditos da dívida bruta. O governo utiliza na
dedução, por exemplo, o volume de reservas internacionais. Mas elas
representam um ingresso quase nulo ao Brasil. Não dá para fazer
esse encontro de contas. As reservas não estão disponíveis, se
estivessem, poderíamos simplesmente reaver esse recurso e quitar uma
parte da dívida, e isso não está sendo feito. A dívida que
estamos pagando é bruta, é sobre ela que incidem os juros. Temos
que tomar cuidado com essas maquiagens e conceitos que não são
claros.
“Já
não faz mais sentido falarmos, hoje, em dívida interna e externa.
Precisamos falar em dívida pública ou dívida soberana, por conta
da ausência de barreiras ao capital”
Sul21 – Afinal, o que
compõe essa dívida?
Maria Lucia - Nosso
endividamento nasceu junto com a “independência”. Para o que o
mundo financeiro reconhecesse nossa independência, herdamos uma
dívida que Portugal havia contraído com a Inglaterra para brigar
contra a nossa independência. O valor era 3,1 milhões de libras
esterlinas – na época, muito dinheiro. Em 1931, quando Getúlio
Vargas assumiu, ele questionou o fato de haver tantas cobranças sem
os respectivos contratos. Ele determinou que houvesse uma auditoria.
O resultado foi impressionante: apenas 40% da dívida estava
documentada. Não existia controle dos pagamentos, nem das remessas
ao exterior. Isso permitiu o início de uma revisão e certamente
ajudou na implantação dos direitos sociais garantidos naquele
período. O período atual iniciou na década de 1970, quando a
dívida externa era de US$ 5 bilhões. Durante essa década, esse
valor se multiplicou por dez. Era algo totalmente sem transparência,
e o que se dizia era que o crescimento da dívida ocorreu para
financiar o “milagre econômico”. Em 2010, durante a CPI da
Dívida, pedimos os contratos referentes à década de 1970. Apenas
16% da dívida estava explicada em contratos. Há uma grande suspeita
de que boa parte desses 84% restantes tenha sido recursos que vieram
justamente para financiar a ditadura. Imaginávamos que a maior parte
dessa dívida era com o FMI. Mas, durante a CPI, fizemos um gráfico
que mostra a natureza desses valores, de 1970 até 1994. O principal
credor não era o FMI, mas, sim, os bancos privados internacionais.
Então essa dívida da década de 1970 é a origem. Foi ela que deu
margem a toda sequência de renegociações. Em 1983, por exemplo,
essas dívidas foram transferidas para o Banco Central. Foi uma
ilegalidade, pois como um agente financeiro nacional, ele não
poderia ser, ao mesmo tempo, devedor. Isso foi uma exigência dos
bancos privados. Em 1994, a dívida se transformou em bônus. Ela
deixou de ser contratual e passou a se transformar em títulos,
saindo do Banco Central para ficar a cargo do Tesouro Nacional. Hoje,
a natureza desses R$ 3 trilhões de dívida é em títulos, tanto a
externa quanto a interna. Restam pouquíssimos contratos de dívidas
diretas e bilaterais com países.
Sul21 – A dívida
interna inclui contratos internacionais?
Maria Lucia - Inlcui
dívida com bancos internacionais. Já não faz mais sentido
falarmos, hoje, em dívida interna e externa. Precisamos rever esses
conceitos. Teoricamente, a dívida externa é aquela contraída em
moeda estrangeira junto a residentes no exterior. A interna é aquela
contraída em moeda nacional junto a residentes no país. Hoje, o
mercado financeiro está dominando tudo. Quando o Tesouro Nacional
emite títulos da dívida, quem tem o privilégio de comprá-los em
primeira mão são os chamados “dealers”. Uma lista obtida com o
Tesouro mostra quem são esses dealers: Citibank, J. P. Morgan,
Santander, Barclays, Deutsche Bank, HSBC… Esses bancos estrangeiros
compram diretamente os títulos da dívida interna. Então precisamos
falar em dívida pública ou dívida soberana, justamente por conta
dessas negociações e, também, por conta da ausência de barreiras
ao capital. Grande parte da dívida interna está na mão de
estrangeiros. E a dívida externa pode ser comprada por residentes no
país, porque são meros papeis.
Sul21 – Nesse contexto,
qual seria a utilidade de uma auditoria na dívida?
Maria Lucia – A
auditoria iria verificar não apenas os números. Queremos entender
qual é a contrapartida dessa dívida e em que condições ela se
originou. Não podemos fazer um discurso moralista sobre o
endividamento público, vendo a dívida sempre como algo perverso. A
dívida pode e deveria ser um instrumento importante para o
financiamento do Estado. Os recursos necessários para garantir uma
vida digna a toda a sociedade e que não conseguirem ser obtidos por
meio dos tributos poderiam ser captados por meio de endividamento.
Mas um endividamento transparente, discutido publicamente – porque
afinal quem vai pagar é povo – e a um custo razoável, com
cláusulas contratuais coerentes. O que temos encontrado nas nossas
investigações são quantias que se tornam dívida de um dia para o
outro, cláusulas completamente absurdas, que afrontam o aparato
legal brasileiro, e operações injustificadas.
“Dizem
que se você enfrenta o sistema financeiro, o mundo desaba. E isso
não aconteceu no Equador, o país não ficou isolado e continua
tendo acesso a crédito”
Sul21 – Como foi a
experiência de participar do processo de auditoria da dívida
pública do Equador?
Maria Lucia - O caso
equatoriano foi uma lição de soberania ao mundo. O presidente
Rafael Correa criou, por decreto, uma comissão para realizar a
auditoria da divida interna e externa. Foram nomeados integrantes dos
órgãos públicos, juristas, professores, representantes de
movimentos sociais e um grupo de seis estrangeiros. Eu tive a honra
de ser convidada. Foi um processo que durou um ano e quatro meses.
Entregamos ao presidente diversos relatórios para fins de organizar
o trabalho. Uma equipe cuidou da dívida interna. Outra, da externa
multinacional. Outra equipe cuidou da dívida bilateral. E um grupo –
do qual eu fiz parte – ficou com os contratos com bancos.
Entregamos em outubro de 2008 todos os relatórios e o presidente
ficou particularmente interessado nos dados da dívida com os bancos,
porque era a parcela maior, onde os juros eram mais caros.
Conseguimos apresentar o relatório comprovando, com documentos, as
diversas ilegalidades, irregularidades e até fraudes nesse processo.
O presidente submeteu esse relatório ao crivo jurídico nacional e
internacional e recebeu o aval de que o documento tinha sustentação
jurídica. Em março de 2009, ele apresentou uma proposta soberana:
arremataria a dívida por 30% do seu valor e estipulou um prazo para
os detentores interessados entregarem seus títulos. Quem não
estivesse interessado que entrasse na Justiça contra o Equador. Qual
foi a grande surpresa? O mundo não caiu. Dizem que se você enfrenta
o sistema financeiro, o mundo desaba. E isso não aconteceu no
Equador. Cerca de 95% dos detentores acataram a proposta. Os outros
5% nunca apareceram. Ninguém entrou na Justiça contra o Equador.
Isso demonstra que a auditoria é uma ferramenta que permite acessar
a verdadeira história do endividamento. Depois dessa atitude, o
Equador obteve um alívio orçamentário de US$ 7 bilhões, o que
representa muito para a sua economia. E o país não ficou isolado,
continua tendo acesso a créditos.
Sul21 – E a dívida dos
estados brasileiros com a União? Parece ser uma engenharia
financeira bastante semelhante à da dívida nacional. No Rio Grande
do Sul, por exemplo, o empréstimo feito pelo governo federal foi de
R$ 11 bilhões, em 1997. De 1999 a 2010, o estado já pagou R$ 22
bilhões e ainda continua devendo R$ 38 bilhões.
Maria Lucia - Pesquisamos
a gênese desse acordo e constatamos que ele é muito parecido com os
acordos que o FMI fazia com o Brasil. Há, inclusive, um memorando em
que o Brasil se comprometia, junto ao FMI, a fazer o refinanciamento
da dívida dos seus estados, retirando deles a prerrogativa de se
autofinanciarem. Essa negociação estava associada a outros dois
programas. Um deles era o PROES, que “saneava” os bancos públicos
estaduais para que pudessem ser privatizados. Foi um verdadeiro
pacote, igual aos pacotes que o FMI preparava para a União. Esses
acordos foram feitos em bases extremamente onerosas e inaceitáveis,
se consideramos que União e estados são entes federados. Um cidadão
de Porto Alegre vive, ao mesmo tempo, na sua cidade, no seu estado e
no seu país. E é ele quem paga essa dívida. Então, veja bem, não
tem sentido o cidadão pagar juros para ele mesmo. É isso que
acontece com essa dívida estadual: a União cobra juros dos estados.
Esses contatos fracionaram os juros nominais. Isso possibilitou uma
garantia de remuneração equivalente à atualização monetária,
que é medida, nessa dívida, pelo IGPDI, um índice que mede a
expectativa de inflação e considera questões cambiais – o que
não faz sentido numa negociação entre entes federados. Que
federalismo é esse?
Sul21 – A quais
conclusões é possível chegar após a análise de todos esses
dados?
Maria Lucia - Podemos
dizer que existe um sistema da dívida. Ele consiste na usurpação
do instrumento de endividamento público. Em vez de ser um
instrumento que aporta recursos ao Estado, passou a ser um ralo para
escoar esses recursos. É esse sistema que influencia o modelo
econômico. Quais são as metas econômicas do governo federal? Não
são metas de bem estar social. São metas de controlar a inflação
e atingir o superávit primário. É tudo dirigido em torno da
dívida, onde o sistema financeiro absorve a maior parte dos
recursos. Se não há recurso para pagar a dívida e atingir o
superávit, então o governo corta o orçamento de diversas áreas.
Sul21 – Como a senhora
vê a articulação do poder político em torno desse sistema da
dívida? Não parece haver interesse dos grandes partidos e
lideranças na discussão desse problema.
Maria Lucia - Já
conseguimos arrancar a CPI da Dívida em 2010 na Câmara dos
Deputados. É evidente que isso foi abafado pela mídia, mas
conseguimos acesso a muitos documentos. Atualmente, existe uma CPI
semelhante na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Mas essas
investigações sofrem forte pressão do setor financeiro, que tenta
abafá-las. Por isso precisamos criar uma pressão popular do outro
lado. Para que isso ocorra, a sociedade precisa ter acesso à
informação. Queremos criar uma mobilização consciente e derrubar
a ideia de que esse tema é muito complexo, de que só especialistas
muito qualificados poderiam entendê-lo. Precisamos de especialistas
em órgãos públicos, mas todas as informações são perfeitamente
traduzíveis para o conjunto da sociedade. São os cidadãos que
estão pagando essas contas, eles precisam entender a importância
desse tema.
Extraído de:
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