Enquanto a descrença do
sistema político vigente se aprofunda e grande parte dos cientistas
políticos e sociais guardam um silêncio vergonhoso e constrangedor
(ou se refugiam na moral para explicar esse inquietante fenômeno
social), o senso comum vai ganhando terreno e vai difundindo a sua
versão.
A tese do senso comum,
que já começa a ganhar a adesão de setores tidos como
"instruídos", é mais ou menos a seguinte: o povo é
corrupto e como os políticos vêm do povo só poderiam ser corruptos
também!
Para sustentar essa tese
são apresentadas situações comportamentais do cotidiano como
"furar a fila", "desrespeitar a faixa de trânsito",
etc.
É preciso reconhecer que
essa tentativa de explicar esse fenômeno tem o mérito de buscar
alargar o olhar para além das estruturas políticas, e por isso não
está completamente errada. Mas também não está do todo correta
pois seu olhar é limitado e as propostas que oferece são igualmente
limitadas, estéreis e às vezes suas análises chegam a nivelar a
justa luta dos oprimidos com os desmandos dos poderosos.
O presente artigo aborda
essas questões e mergulha nos meandros da nossa sociedade e da sua
política para tentar encontrar os mecanismos que potencializam a
corrupção e a desumanização do homem na presente etapa
sócio-histórica.
Qual sociedade?
A ideia de que os
políticos vêm do povo nos remete à sociedade. E qual é a
sociedade que vivemos?
Em primeiro lugar,
vivemos em uma sociedade dividida em classes sociais. Todas as
sociedade de classes (ou castas ou de burocratas) são marcadas pela
divisão entre privilegiados e explorados. Os de cima se utilizam da
estrutura política, que foi montada por eles mesmos, para legalizar
e legitimar os seus privilégios e interesses. Os de baixo podem até
vir a conseguir legalizar alguns ganhos mas para isso terão que
lutar (às vezes fazendo levantes quase revolucionários). Seus
ganhos, porém, não são eternos e podem vir a ser liquidados se
estiverem conflitando com os interesses das classes dominantes. É o
caso, atualmente, dos direitos sociais que vêm sendo ceifados na
Europa.
Em segundo lugar, vivemos
em uma sociedade capitalista. Nessa sociedade o objetivo central é o
lucro. Na base produtiva do sistema os custos de produção devem ser
reduzidos ao máximo possível para que se possa vender mais barato
do que o concorrente. Para isso se investe em tecnologia -
dispensando parte dos trabalhadores - e se reduz os salários -
direta ou indiretamente.
A competição
desenfreada praticamente inviabiliza o espaço para que se pense no
outro, até porque o outro deve ser derrotado para a própria
preservação física de si próprio. O empresário que não derrotar
o seu concorrente irá à falência. O trabalhador que perder a
disputa por uma vaga de emprego poderá passar por sérias privações.
A defesa da própria
sobrevivência muitas vezes exige o sacrifício de princípios morais
elementares: o empresário vai pagar propina aos políticos para ver
aprovadas leis e medidas em seu benefício, o trabalhador vai apelar
ao fisiologismo para garantir um emprego o que às vezes favorece o
"caciquismo" de um político ou empresário.
Quando a sensação de
imoralidade é endêmica, como sugere a abordagem do senso comum, é
evidente que a sua explicação deve ser buscada além da moral
strictu sensu. Do contrário ficamos em um beco sem saída. Ou será
que devemos defender a eliminação física dos habitantes de uma
sociedade inteira?
Nos dois casos simples
descritos acima pode-se perceber uma base material para a corrupção
e o fisiologismo, típicos da nossa formação social. A busca por
essas causas colaboram para que encontremos saídas e não devem ser
confundidas com conivência ou justificação.
Sigamos, então!
Na base produtiva da
sociedade capitalista impera a alienação do trabalho: os
trabalhadores atuam em uma empresa que não é sua, com equipamentos
que não lhes pertencem e são separados do produto final do seu
trabalho - o que Marx chamou de mais-valia.
A mais-valia é ocultada
pelo pagamento do salário, já que a própria força de trabalho,
nessa sociedade, é uma mercadoria.
Essa alienação acaba
borrando a fronteira entre os homens e os objetos por eles produzidos
(que lhes parecem estranhos e fora de si), o que acaba criando
relações sociais "coisificadas", ou seja, os homens
passam a se relacionar pelo o que eles possuem (seja material, seja
profissional) e não pelo o que eles são como seres humanos, em
suma, se tratam como coisas. Dessa forma vão se desumanizando. Como
disse Marx:
"A
desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento
de valor do mundo dos objetos." [1]
Em uma sociedade de
mercado altamente competitiva a coisificação ganha contornos
dramáticos já que praticamente todos os aspectos da vida social são
mercantilizados. A imagem e a aparência (partes do ter) com muita
frequência sobrepõem a essência (parte do ser). No mercado de
trabalho isso é muito evidente. Sem problematizar essas
características, a consultora de imagem e sócia da Dresscoach
International Consultoria de Imagem, Silvana Bianchini, explica que:
"MBA
nos Estados Unidos, vários idiomas e capacitação técnica não são
o suficiente no mercado de trabalho. Os entrevistadores muitas vezes
dão uma olhada geral nos candidatos, antes de começar a entrevista,
procurando dicas visuais para economizar seu tempo. Assim já são
eliminados automaticamente os que estão passando mensagens negativas
por meio de sua aparência ou maneiras, como um homem de meias
brancas, a mulher que está roendo as unhas, etc.
(...)
A
presença visual tem de dispor uma quantidade de integridade e
consistência. As roupas sozinhas não serão o truque. É a harmonia
de todos os sinais não verbais e a repetição deles que tornaram
sua imagem consistente. Como uma identidade visual de uma empresa,
que é repetida da mesma forma, seja qual for sua aplicação, é que
dá consistência e credibilidade a marca." [2]
Em uma sociedade cujo
objetivo central é a maximização dos lucros, a essência só é
valorizada se pode contribuir com esse objetivo. Para a psicóloga
Valeska Rodrigues:
"Os
empresários não estão totalmente errados em deixar de contratar os
obesos. Um obeso tem hipertensão, problemas de coluna e várias
outras coisas. O empresário vai querer contratar um funcionário
para viver faltando?" [3]
Como se fossem produtos
defeituosos as pessoas são rejeitadas e descartadas! Mas, em vez de
criticar a lógica da ordem social a psicóloga ataca o comportamento
das vítimas que se sentem acuadas em um ambiente que lhes hostiliza
e discrimina:
"Os
obesos têm muita dificuldade para conseguir emprego, mas eles não
se valorizam. Chegam a certo ponto que eles têm vergonha de sair de
casa e se isolam. Nem sequer se aperfeiçoam para o mercado de
trabalho." [idem 3]
Essas são as leis que
engendram o funcionamento da nossa sociedade com seus respectivos
efeitos e não podem ser abolidas com o simples respeito "a
faixa de trânsito" ou do deixar de "furar a fila",
embora sejam desejáveis tais mudanças de comportamento social.
Qual política?
Como toda instituição
social, as instituições políticas são criadas por homens de um
determinado período histórico para atender determinados interesses
e objetivos. Assim:
"As
instituições políticas da democracia moderna foram erigidas pela
burguesia para legitimar e legalizar o seu modelo de sociedade. Mas a
democracia criada por ela rejeitava a participação política das
classes populares e, quando pressionada pelas lutas das mesmas, se
viu obrigada a ceder alguns direitos, a burguesia não vacilou em
descaracterizar a participação do andar de baixo e manter a
essência de classe do seu regime político, criando regras e
mecanismos para garantir que os reais representados dessa democracia
fossem seus próprios pares.
Quando
as classes populares conseguem ultrapassar todos os obstáculos
impostos e ameaçam os interesses dos reais representados a
democracia moderna despe-se de toda a aparência democrática que
engana nos momentos mais calmos, mostra a sua verdadeira face, trata
de lembrar para quem foi construída, quem realmente representa, e os
golpes de Estado não tardam a emergir com toda a força. O interesse
de classe fala mais alto e a própria legalidade é rompida."
[4]
A estrutura política
existente, que como visto foi montada por uma determinada classe,
busca reproduzir o modelo de sociedade existente. Quando se
simplifica a questão com a generalizante máxima "povo
corrupto, político corrupto", se perde de vista o papel das
classes dominantes na montagem das instituições políticas e se
acaba por absolvê-las.
O advogado Edson Luís
Kossmann, bebendo na fonte do senso comum, tenta aproximar a
sociedade da política fazendo referência à práticas do cotidiano
como "desrespeito a faixa de trânsito" e "furar a
fila", e sentencia: “se participamos do jogo quando nos
interessa, não podemos nos queixar que ele exista.” [5]
Embora fosse positivo,
Kossmann não tem obrigação de saber os meandros de funcionamento
da sociedade capitalista, tampouco saber o que se passa no mundo,
principalmente a conjuntura política em outros países - apesar de
estar extremamente visível para qualquer um.
Mas se fosse mais
atencioso não teria escrito o que escreveu ou ao menos teria se
incluído na massa dos incoerentes e contraditórios que criticou.
Afinal, o escritório do nobre advogado presta serviços para:
"prefeituras,
câmaras municipais, órgãos estaduais e federais e, ainda,
prefeitos, parlamentares, partidos políticos, candidatos, sindicatos
e servidores, sempre primando por seus interesses,
proporcionando-lhes segurança nas decisões administrativas e nas
ações políticas." [6]
Será que o senhor
Kossmann pede atestado de bons antecedentes para seus clientes antes
de prestar-lhes serviços? Difícil imaginar tal hipótese ainda mais
que na lista constam as instituições apodrecidas do regime. Como é
facilmente constatável, o nobre advogado também participa do jogo.
Seria por mero interesse?
Mas vamos analisar a
hipótese de que os brasileiros deixassem de "furar a fila"
e de "desrespeitar o trânsito". Já vimos que o seu efeito
seria nulo na engrenagem de funcionamento do sistema capitalista, mas
será que poderia alterar a sua estrutura política?
Não é preciso fazer
exercício algum de futurologia para descobrir a resposta. Basta
olhar para o que acontece à nossa volta.
A generalização contra
os políticos é um fenômeno que se alastra pelo mundo e vem
ocorrendo inclusive nos países onde a população tem um
comportamento mais aprazível para os nossos pensadores
terceiro-mundistas e os desvios morais sofrem mais punições.
Nos Estados Unidos e na
Europa, onde gente famosa vai para a cadeia, o povo cada vez mais se
convence de que os políticos no poder são iguais. No país ao norte
do continente se formou os movimentos dos Ocupes para denunciar a
farsa da sua democracia e para quem governam os seus políticos. No
velho continente surgiram os jovens "Indignados" com a
mesma postura e pedindo por uma democracia "real".
Mais uma vez a moral é
insuficiente para explicar esse fenômeno. A crise econômica do
sistema capitalista exige que seus governos tomem medidas para seguir
fazendo-o respirar. No atual estágio de desenvolvimento do sistema
isso passa por aumentar a exploração do trabalho e drenar recursos
para o capital. A estrutura política já não pode disfarçar o seu
caráter de classe. E os governos comprometidos com uma
institucionalidade cuja tarefa é representar os interesses da classe
que domina são impelidos a cumprir com o seu devido papel social.
Superar o existente
O jornalista Alex Cruz
desconfia que "as causas sejam mais profundas". [7]
Porém, o mais profundo para ele é a "jovialidade" do
nosso sistema democrático. Mas antes de censurá-lo é preciso fazer
um desconto pois essa ideia é repetida ad nauseam por setores
da Ciência Política.
A realidade histórica e
atual mostra a falsidade dessa assertiva. Em 1871, os operários da
Comuna de Paris não precisaram mais do que alguns dias para
construir um sistema político democrático e controlado de perto
pelo povo. Foi uma democracia de classe, da classe trabalhadora.
A democracia
representativa moderna criada pela burguesia também tem o seu
caráter de classe que não se perdeu nem nos países onde ela já
atingiu a idade "idosa". Em vez de se abrir cada vez mais
como acreditavam alguns cientistas políticos, a democracia nos
Estados Unidos e na Europa vem se tornando cada vez mais repressora.
O próprio ex-presidente estadunidense, Jimmy Carter, andou
criticando o recrudescimento do regime dentro do seu país. [8]
Cruz reconhece a
influência econômica na política e também tenta fazer a relação
do social com o político. Mas escorrega feio na análise e coloca no
mesmo nível os desmandos e incoerências dos poderosos e a justa
greve realizada recentemente pelos servidores públicos:
"(...)
ninguém costuma rever ou pedir perdão por excessos: não o fizeram
os servidores federais, pela longa greve que protagonizaram e trouxe
prejuízos à população, não farão os nossos políticos."
[idem 7]
Na tentativa de colocar o
social no político, o jornalista generaliza e perde de vista que o
responsável pela longevidade da greve foi o Governo Dilma que levou
dois meses para iniciar o diálogo com os servidores, postura
distinta da que defendeu na campanha eleitoral. [9]
Logo quem tinha que pedir desculpas era a Presidente e não os
servidores.
Como não compreende os
mecanismos de funcionamento da sociedade em que vive, Cruz pensa
poder resolver "as causas mais profundas" com uma simples
reforma política. E à luz do que vem demonstrando a crise econômica
ainda reivindica mais empreendedorismo e menos regulamentações, ou
seja, deseja apagar incêndio com gasolina!
Esse é o resultado
inevitável de uma filosofia de boteco que ganhou a simpatia e vem
sendo erudizada por setores "esclarecidos". São análises
que vão sendo espalhadas e aceitas, basta ver os comentários de
apoio na internet, enquanto a maioria dos cientistas políticos e
sociais permanecem em silêncio sepulcral, até porque muito do que
produziram teoricamente vem sendo desmanchado contundentemente pela
realidade concreta.
Cada formação
societária possui suas próprias leis e os homens em seu interior
vão sendo socializados influenciados por elas. Isso não significa
que os homens sejam completamente determinados pelas estruturas
sociais, afinal como já dizia Marx: "a sociedade produz o
homem como homem, também ela é produzida por ele." [10]
Há, portanto, uma
interação dialética entre os indivíduos e as estruturas sociais.
O mesmo ocorre no plano da prática e das ideias. A proposta do senso
comum e dos seus admiradores "esclarecidos" de que os
homens deveriam parar de "furar a fila" para purificar as
estruturas políticas é similiar ao que propunham alguns filósofos
do século XIX em relação as ideias e que foram devidamente
refutadas por Marx e Engels em A Ideologia Alemã. (Para esses
filósofos bastaria que os homens trocassem ideias “ruins” por
“boas” para que o mundo melhorasse. Os pais do socialismo
científico demonstraram os limites dessa proposta e a influência da
base social real nas ideias dos homens.)
É importante assinalar
que a sociedade capitalista não inaugurou a corrupção e a
desumanização do homem. Mas a sua forma de funcionamento possui
mecanismos que potencializam essas práticas. Quanto mais esse
sistema se desenvolve mais o trabalho é alienado, mais a vida social
é coisificada, mais valorizado é o "mundo dos objetos" e
a competição cada vez mais acirrada reduz cada vez mais o espaço
para se pensar no semelhante. Não é atoa que os mais vividos
percebam que os níveis de corrupção e desumanização hoje sejam
superiores aos de décadas passadas.
Esses mecanismos só
podem desaparecer com a formação social que lhes deu origem. Por
isso quem deseja ver mudanças profundas na estrutura política e
social deve lutar para superar o existente e criar uma nova
sociedade. E terá de fazer essa dura caminhada com os homens que aí
estão com suas virtudes e defeitos. Os interesses de classes que se
atravessam nesse caminho mostrarão que haverão muitos "furadores
de fila" nas fileiras da mudança e muitos "anjinhos"
lutando com unhas, dentes e armas contra a nova sociedade.
___________________________________________
[1]
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Primeiro Manuscrito:
Trabalho Alienado.
[2]
BIANCHINI, Silvana. Sua imagem é importante?
[3]
Obesos têm dificuldades para arrumar emprego
[4]
Democracia e golpismo (30/06/2012):
[5]
O problema são os outros, principalmente os políticos (19/09/12):
[6]
DALLAGNOL ADVOGADOS ASSOCIADOS
[7]
Valores políticos e a reforma (19/09/2012):
[8]
Carter critica recrudescimento do regime nos EUA (03/07/2012):
[9]
Dilma explica porque professores das federais entraram em
greve / 2012
[10]
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Terceiro Manuscrito:
Propriedade Privada e Comunismo.
.