Escrito
por Hamilton Octavio de Souza
Qui, 05
de Junho de 2014
Os efeitos do campeonato
de futebol independem da polarização retórica, afetam
concretamente o povo e deixam marcas profundas nos conflitos
políticos dos próximos anos.
Independentemente do
resultado do futebol e da seleção campeã da Copa do Mundo, o
Brasil vive acirrada disputa em torno do legado do torneio organizado
pela FIFA, uma entidade privada que convenceu o governo brasileiro a
investir a bagatela de 30 bilhões de reais em ações e obras
questionáveis, como a remoção de comunidades pobres, ocupação
militar de bairros populares, construção de aeroportos e estádios
de futebol e forte aparato de segurança para proteger os segmentos
mais privilegiados da sociedade.
O legado, pelo lado do
governo, que assumiu papel preponderante no megaevento das grandes
corporações internacionais, é um amontoado de coisas positivas, a
começar dos próprios aeroportos e estádios, as obras da chamada
mobilidade urbana (novas avenidas, asfaltamento de vias antigas,
corredores expressos, veículos sobre trilhos), os gastos de milhares
de turistas, a divulgação do país nas redes mundiais de
comunicação, até a ação articulada das Forças Armadas
–treinadas no Haiti – com as polícias federais, estaduais e
municipais.
Na defesa do evento, a
presidente da República enfatizou que o legado está no fato de que
a FIFA e os turistas não poderão levar na bagagem as obras dos
estádios, aeroportos e da mobilidade urbana. Elas ficarão no país
para os brasileiros. O ministro da Justiça também se adiantou ao
considerar que o maior legado de sua área é a integração policial
– um aparato sem precedente exclusivamente montado para assegurar a
realização do evento e anular o incômodo provocado pelos protestos
sociais, políticos e populares.
É evidente que a FIFA e
seus patrocinadores não colocaram na bagagem as mazelas do caos
social, político e jurídico que causaram ao país, como, por
exemplo, corromper os poderes da República para a aprovação de
leis e normas que contrariam o regime jurídico existente, entre as
quais a que permite vender bebidas alcoólicas nos estádios,
utilizar o trabalho infantil e de adolescentes durante o evento,
criar zonas de segurança em áreas densamente habitadas e inúmeras
isenções fiscais especiais – que criam iniquidades entre os
impostos pagos pelas empresas patrocinadoras do evento e o que deve
ser pago pelas demais empresas.
É claro que as forças
da situação, em especial de sustentação do governo federal,
querem tirar o máximo proveito político do futebol para fins
eleitorais, como já aconteceu inúmeras vezes no Brasil e em muitos
outros países. É impossível esquecer a Copa de 1970, quando o
governo Médici explorou a paixão da torcida pela seleção para
mostrar um país que dava certo, que vivia um milagre econômico, e
para esconder a mais feroz ditadura e a mais brutal violação dos
direitos humanos. Na época, as esquerdas criticaram o ufanismo da
publicidade oficial como forma de entorpecer as consciências e
desmobilizar a oposição ao regime militar.
Nesse aspecto, o legado
revela também a fragilidade intelectual de importantes setores da
esquerda, em especial de pesquisadores universitários, acadêmicos e
de jornalistas que acompanharam o desenrolar do circo da FIFA sem se
posicionar de forma clara e sem fazer críticas, apenas para manter o
alinhamento automático com um governo de composição com o que há
de mais atrasado no país. Ao contrário, muitos intelectuais que
outrora criticavam o futebol como sendo o ópio do povo, agora
silenciam na covardia ou passam a justificar a forte repressão
contra os críticos do megaevento. Nunca antes neste país se
reprimiu manifestações populares com tamanha violência, e nunca as
polícias militares ganharam tamanha dimensão de impunidade.
As oposições neoliberal
e de centro-direita têm grande interesse em desgastar o atual
governo (uma composição de PT, PMDB, PTB, PP e mais uma dezena de
siglas) com vistas às eleições gerais de 5 de outubro, mas atuam
basicamente no campo institucional, no Congresso Nacional, nas redes
sociais e na grande mídia empresarial – que nutre simpatias pelas
candidaturas lançadas pelo PSDB e pelo PSB, na expectativa de uma
decisão no segundo turno.
Para essas oposições, o
maior legado da Copa do Mundo está na incapacidade gerencial do
governo federal, na incompetência de planejar e executar um projeto
de tamanha grandiosidade dentro dos orçamentos e prazos
estabelecidos. Os neoliberais centram a crítica nos aspectos
relativos ao desvio de recursos públicos, superfaturamento das obras
e na denúncia da corrupção – ou pelo menos na suspeita de
financiamento das campanhas eleitorais com propinas das empreiteiras
que fizeram obras e das empresas que gozaram de isenções de
impostos e outros benefícios previstos nas leis especiais para o
campeonato de futebol.
Legado social
As oposições no campo
da esquerda e os movimentos sociais populares criticam principalmente
os danos sociais e políticos da Copa para o país, o legado de
inúmeras ações privadas e públicas que produzem efeitos
contrários ao que se esperava de um processo democrático e da
construção de uma sociedade mais justa e igualitária, com respeito
aos direitos sociais e às liberdades civis. Ao contrário de um
processo civilizatório, o legado da Copa, já computado e
materializado, é um grande retrocesso político na direção da
barbárie, da exclusão, do preconceito e do desrespeito aos direitos
dos que mais precisam do apoio do Estado.
Desde os primeiros
momentos de preparação das obras para a realização do torneio, em
12 capitais estaduais, os primeiros atingidos foram as populações
de baixa renda despejadas de suas casas para obras de estádios e de
vias públicas nos acessos. Calcula-se que mais de 250 mil famílias
foram desalojadas a manu militari por todo o país. Está aí
um legado de difícil reparação, num país em que o déficit por
moradia aumenta mais rápido do que os programas habitacionais. Os
movimentos dos sem teto pipocam pelo país afora enquanto os
patrocinadores da Copa curtem a especulação imobiliária.
Depois aconteceram as
ocupações militares e policiais de morros, favelas e comunidades
pobres do Rio de Janeiro e de outras cidades, sempre com o pretexto
de se combater o tráfico de drogas, mas sempre também com abusos de
toda ordem e violações de direitos constitucionais. Essas ocupações
cinicamente denominadas de “pacificadoras” continuam a produzir
um rastro de sangue que coloca o Brasil no ranking dos países mais
violentos do mundo. Se a ideia era silenciar o descontentamento das
populações excluídas, o legado de assassinatos tem sido um grito
que ecoa por todas as partes – em especial nas várias cortes
internacionais de defesa dos direitos humanos.
Nunca antes neste país
se ocupou bairros inteiros com tropas militares e policiais como
aconteceu no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, com autorização
genérica do Poder Judiciário para a realização de operações de
busca e apreensão em 40 mil residências, sem justificativa
determinada, uma violência sem precedentes e em flagrante violação
dos direitos democráticos e humanos previstos na Constituição
Federal. Essa ação, evidentemente, demonstra que o legado da Copa
inclui a discriminação praticada pelo Estado com o apoio dos
setores mais reacionários da sociedade – aqueles que pedem sempre
mais “porrada” e mais “cacete” nos mais pobres. Como sempre,
a direita e o governo, com todo o aparato midiático, tentam o tempo
todo criminalizar os movimentos sociais e os que se manifestaram
contra a Copa.
Ainda precisam ser
computados no legado social os incentivos ao turismo sexual, a
exploração da prostituição infantil e o aumento da segregação
dos que podem frequentar os novos estádios do futebol no padrão
FIFA e os que ficarão de fora do espetáculo depois da Copa. Tudo
indica que o maior legado esportivo e cultural é mesmo a expulsão
dos pobres e negros da geral, no processo de seleção pelo poder
aquisitivo, na busca de um novo público eleito – notadamente
branco – pelo padrão de consumo. Para os anunciantes e
patrocinadores já estava na hora de os estádios serem ocupados
pelas classes médias, limpas e educadas, sem a ameaça das torcidas
integradas pelas “classes perigosas”.
Legado econômico
Comemorada pelo governo
como um evento que veio para injetar enorme quantidade de dinheiro na
economia, em especial nas sedes dos jogos, pela presença de turistas
e pelo gasto em hotéis, restaurantes e todo tipo de comércio, com
ganhos generosos para todos, na verdade a maior parte da grana fica
mesmo com a FIFA e seus associados, que recolhem o caixa dos estádios
e dos pacotes internacionais (passagens aéreas, hotéis e
translados). No bojo desse legado estão também as empreiteiras, que
cobraram absurdos por todas as obras (estádios, aeroportos, vias
públicas etc.), os patrocinadores e, muito provavelmente, alguns
espertinhos que descobriram brechas para tirar algum trocado da FIFA.
Nunca antes neste país
se inauguraram tantas obras inacabadas. Na véspera da abertura do
mundial pelo menos 50% das obras previstas não tinham sido
concluídas. O problema desse legado não é apenas o custo
financeiro futuro para que tais obras sejam devidamente entregues. O
legado está no reforço de uma prática política que já deveria
ter sido superada, pois remete aos tempos de mando absolutista do
coronelismo e das oligarquias. Imaginar que isso tudo está sendo
comandado pelo PT e pelo PCdoB, outrora partidos comprometidos com a
transformação cultural e política, é mesmo um grande retrocesso,
que, mais uma vez, só favorece o conservadorismo e a direita, e mais
uma vez a farra das empreiteiras.
Como legado para o povo
brasileiro vai ficar a conta de tudo aquilo que a administração
direta gastou com o evento, e aquilo que foi financiado de forma
subsidiada, e aquilo que teve isenção tributária e aumentou a
evasão dos cofres públicos, sem contar o risco de picos de inflação
em função de um brutal aumento nos preços em aluguéis e na
alimentação.
Evidentemente, se a
inflação der sinais que vai estourar o limite máximo da meta de
6,5% ao ano, corremos o risco de ter novas medidas de austeridade com
mais arrocho salarial e maior controle do crédito. Uma coisa é
certa: o trabalhador brasileiro vai sentir na própria carne o legado
da Copa ainda por vários anos.
Para citar um exemplo
bastante singelo de como o legado vai ser mesmo pesado para o povo,
basta comparar o custo do estádio do Real Club Deportivo Espanyol,
em Barcelona – inaugurado recentemente, no valor total de 100
milhões de euros (aproximadamente 300 milhões de reais), um estádio
moderno, confortável, para 60 mil lugares, com sistemas de energia
solar e captação e reaproveitamento de água da chuva –, com o
custo do Itaquerão, um estádio bem acanhado e inacabado, que já
custou mais de 1,1 bilhão de reais, quase quatro vezes mais do que o
estádio espanhol. Isso significa que a nação corintiana – da
qual faço parte – terá que saldar a dívida do estádio nos
próximos anos não apenas com o repasse integral da renda dos
ingressos, mas vai pagar também com efeitos no próprio elenco e
desempenho do time – para o desespero da fiel torcida.
Legado político
Sem maiores chances nas
eleições de outubro e com espaços reduzidos no jogo institucional,
as oposições de esquerda apostam que o maior legado da Copa será,
em primeiro lugar, tirar mais algumas máscaras do governo federal,
que, de um lado, exerce forte influência nas classes trabalhadoras e
nas camadas de menor renda (devido a programas sociais e alianças
com diferentes setores políticos) e, de outro lado, continua
favorecendo o grande capital, nacional e internacional, com políticas
neoliberais, com pagamento de juros altos e a total liberdade dos
mercados e do fluxo dos capitais.
Além disso, as oposições
de esquerda e os movimentos populares apostam também no ascenso das
lutas sociais, com um número crescente de mobilizações,
manifestações, greves e protestos – dados pelas condições
objetivas de vida precária da maioria da população e da escassez
de políticas públicas de saúde e saneamento, educação, moradia,
transportes e proteção social. A Copa instigou a visão popular
sobre a desigualdade, o descaso das autoridades e ampliou o
descontentamento com as condições de vida nos grandes centros
urbanos. O legado da Copa, para as oposições de esquerda, é a
possibilidade de um salto quantitativo e qualitativo de
conscientização e organização das lutas populares, com cobranças
cada vez mais firmes junto aos governos e poderes públicos.
Essa disputa extrapola o
discurso e a perspectiva puramente eleitoral. Independente de quem
ganhar o pleito de 5 de outubro (presidente da República,
governadores estaduais, senadores, deputados federais e deputados
estaduais), o que importa para os setores mais combativos da esquerda
(excluindo-se as forças que passaram a colaborar com o
neoliberalismo, com o empresariado e com as oligarquias
conservadoras) é manter e ampliar os caminhos alternativos para a
construção de uma outra sociedade – mais democrática, mais justa
e mais igualitária.
Esse legado não se
confunde com a retórica ufanista e enganadora da crônica oficial e
nem com a crítica superficial e oportunista das oposições
neoliberais e de direita. As verdadeiras batalhas políticas vão
muito além do jogo eleitoral.
Hamilton Octavio de
Souza é jornalista e professor.
Extraído de:
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