Wilson H. da Silva
- Publicado em Domingo, 08 Dezembro 2013 04:30
Em nome da
"reconciliação", líderes do CNA transformaram seus
ex-algozes em parceiros na implementação do projeto neoliberal.
O "CNA e Cosatu não
nos representam". Tempos atrás, ouvir, de um sul-africano, uma
frase como esta em relação ao Congresso Nacional Africano e o
Congresso Sul-Africano de Sindicatos seria praticamente impossível.
Contudo, foi exatamente esta a palavra de ordem que foi cantada, com
garra e convicção, por cerca de 200 trabalhadores e jovens que
participavam de um curso realizado na Cidade do Cabo, em setembro
passado.
Longe de ser uma posição
majoritária, este sentimento é crescente em relação às entidades
que, juntamente com o Partido Comunista, formam a Aliança Tripartite
que, desde 1994, governa o país.
O repúdio parte de uma
lamentável, mas inquestionável, realidade. Duas décadas depois da
extinção da legislação que garantiu a existência de um dos
regimes mais racistas da História, o atual governo – através de
suas alianças com a mesmíssima burguesia branca que criou o regime
segregacionista e da adoção das políticas neoliberais –
mergulhou a maioria negra do país em outro pesadelo: o apartheid
sócio-econômico, que mantém praticamente intacta a segregação
racial.
Em agosto de 2012, 34
mineiros em greve foram mortos e 78 ficaram feridos, no Massacre de
Marikana. Um deplorável marco da traição levada a cabo pelas
direções históricas às massas sul-africanas, que vem sendo
considerado "o ponto da virada". O episódio vem acelerando
o processo de reorganização dos movimentos sociais e políticos que
buscam novas formas de organização para dar continuidade à luta
por uma sociedade onde a maioria negra possa viver com dignidade.
Apartheid: um pesadelo
capitalista
Adotado em 1948, o
apartheid remonta aos anos 1700, quando holandeses e britânicos
ocuparam a região para lucrar com o tráfico negreiro e,
particularmente, ao início dos anos 1900, quando a descoberta de
ouro e diamantes pôs fim às disputas entre as duas potências
imperialistas. Elas se uniram para garantir seus interesses e criaram
mecanismos que lhes garantiram o monopólio do poder político e
econômico do país.
Este processo foi
consolidado a partir de 1948, quando a legislação do apartheid
começou a entrar em vigor através da separação da sociedade em
quatro "categorias" (brancos, negros, mestiços e
asiáticos). O casamento inter-racial foi criminalizado e foi adotado
a obrigatoriedade de "passes" que controlavam e limitavam a
circulação dos não-brancos. Por fim, houve a separação baseada
em critérios raciais, de quaisquer aspectos da vida social, política
e econômica.
Transição ou
traição?
Marcada por massacres
(como os de Shaperville e Soweto, respectivamente em 1960 e 1976),
torturas, prisões, mas também uma incessante resistência, a luta
contra o apartheid chegou ao seu ápice na década de 1980, quando
greves e mobilizações diárias, além de uma crescente pressão
internacional, colocaram o regime em cheque.
Em 1994, o regime do
apartheid foi derrubado. Uma enorme vitória da luta negra na África
do Sul e de todo o mundo. No entanto, o CNA e seu principal líder-
Nelson Mandela, símbolo da resistência ao regime desde sua prisão,
em 1962- vinham em um processo de negociações com o racista Partido
Nacional que resultaram na chamada "transição", iniciada
em 1991.
Apoiados em sua história
de lutas e nas enormes expectativas do povo negro, os dirigentes do
CNA mantiveram o capitalismo, contiveram o ascenso nos limites da
democracia burguesa. Em nome da "reconciliação",
transformaram os seus ex-algozes da burguesia branca em parceiros e
sócios na administração do Estado e na implementação do
neoliberalismo.
De lá para cá, apesar
de algumas pífias medidas compensatórias e da formação de uma
classe média negra (além de uma cada vez maior, mais gananciosa e
corrupta burguesia negra), o que tem caracterizado a situação
sul-africana é a manutenção e o aprofundamento da miséria e das
péssimas condições de vida.
E foi exatamente isto que
levou os mineiros de Marikana à greve, como foi destacado por John
Appolis, da GIWUSA, uma entidade que é parte do processo de
reorganização que defende a independência, diante dos patrões e
do governo: "Marikana é uma prova de que o CNA nada mais fez do
que dar continuidade ao projeto capitalista: fornecer mão de obra
negra e barata para ser explorada pelas grandes empresas".
Para exemplificar o
comprometimento do CNA com o neoliberalismo, basta citar a deplorável
figura de Cyril Ramaphosa, um dos fundadores do Sindicato Nacional
dos Mineiros (NUM), a principal entidade da Cosatu. Eleito, em 2012,
presidente do CNA hoje ele é um dos homens mais ricos do país.
Dentre seus vários
negócios, Ramaphosa também é diretor da Lonmin, a gigantesca
empresa mineradora que controla a extração de platina que é dona
da mina de Marikana.
Foi como representante da
empresa que, um dia antes do massacre, o presidente do CNA emitiu um
e-mail a um diretor da mineradora que coloca o partido por trás das
balas que assassinaram os mineiros: "Os terríveis eventos que
estão acontecendo não podem ser descritos com uma disputa
trabalhista. Eles são claramente vis e criminosos e devem ser
caracterizados desta forma. Por isso a necessidade de ações
concomitantes".
Amandla Awhethu: um
grito que precisa retomar as ruas
Hoje no país, a relação
entre o rendimento de negros e de brancos continua quase a mesma dos
tempos do infame apartheid: se em 1993 os brancos tinham um
rendimento 8,5 vezes maior que o dos negros, em 2008 essa relação
era de 7,68 vezes. Além disso, o índice de desemprego entre os
negros é superior a 40%, o que faz com que, hoje, quase 30% da
população negra viva abaixo dos níveis de miséria.
Mesmo diante de números
como estes, evidentemente, o processo de reorganização não é
fácil. Como também é difícil para a enorme maioria dos ativistas
e movimentos negros mundo afora colocar "Mandela" e
"traição" na mesma frase.
Mas lamentavelmente, esta
é a única conclusão a que podemos chegar, como Appolis sintetizou
de forma bastante correta: "Não foi Mandela que derrotou o
apartheid, mas sim as massas em luta constante e são estes mesmos
lutadores que, hoje, precisam achar novas formas de organização
para superar o neoliberalismo e os seus agentes entre nós".
Também é importante
destacar que, cada vez mais, os sul-africanos percebem que essas
"novas formas" não podem se limitar ao terreno sindical.
Hoje, como reflexo um tanto bizarro da crise política, existem nada
menos do que 180 partidos inscritos para as eleições de 2014.
Contudo, como lembrou o dirigente do Centro de Apoio aos
Trabalhadores Casuais, Ighsaan Schroeder é fundamental que se crie
uma alternativa política para que negros e negras sul-africanos
retomem sua luta: "nós não sabemos ainda como esse movimento
vai ser e isto é uma das principais tarefa que teremos no próximo
período; mas temos uma certeza: o velho está morrendo e o novo está
nascendo".
E é esta certeza que faz
com que, cada vez mais, negros e negras sul-africanos retomem as ruas
e as lutas ao som da mesma palavra de ordem que marcou a luta contra
o apartheid: Amandla Awethu. O poder é nosso!
Wilson H. da Silva
esteve na África do Sul em setembro último a convite do
International Labour Research and Information Group (ILRIG, Grupo de
Pesquisa e Informação Internacional sobre o Trabalho).
Extraído de:
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