Por Mauro Iasi
“Madeira de dar em doido
vai descer até quebrar”
Vandré
vai descer até quebrar”
Vandré
Diante
da barbárie instalada e da descarada ação autoritária do Estado
brasileiro diante das manifestações, muitos têm utilizado a expressão
“Estado de exceção” indicando o risco da naturalização de práticas que
desconsideram o ordenamento jurídico estabelecido e os princípios de um
suposto “Estado de direito” que teria substituído a ditadura militar.
Compreendemos
a intenção daqueles que assim procedem no justificado intuito de defesa
da ordem constitucional, de princípios elementares na defesa dos
direitos humanos e de práticas, digamos, civilizadas. Há no entanto um
risco que reside no fato de supor que existe uma forma, considerada
virtuosa, que consiste no respeito formal das regras e procedimentos,
sendo os “desvios”, apenas anomalias que se controladas tudo funcionaria
bem. Infelizmente a realidade da sociedade brasileira parece provar que
a exceção é a regra.
O Estado de
classe no Brasil que tem por fundamento a defesa da ordem da propriedade
privada e as condições que garantam a acumulação de capitais, sempre
agiu combinando diferentes formas de garantia da ordem, ora predominando
formas repressivas, ora na busca da formação de consensos. O que
importa ressaltar é que mesmo nos momentos nos quais a busca por formas
de legitimação e de hegemonia predominam, o aspecto repressivo nunca foi
relegado.
Tal aspecto
fica evidente na transição da ditadura burguesa em sua forma militar
para uma ditadura burguesa na forma de uma democracia, ou de um
denominado “Estado de Direito”. É, sem sombra de dúvida, de grande
relevância que aspectos formais sejam garantidos, como a garantia do habeas corpus,
não ser preso sem uma acusação formal e dentro do rito de um devido
processo legal, o direito de ampla defesa, o cumprimento da pena em
condições estabelecidas pela Lei de Execuções Penais, entre outros.
A ilusão, no
entanto, é a suposição de que uma vez garantidos no ordenamento
jurídico e no quadro de uma ordem institucional que torne praticável,
tais direitos e práticas passem a ser efetivos. Os chamados “desvios”
seriam reminiscências de um Estado autoritário que vicejam nos
interstícios de um Estado de Direito, como práticas anômalas. Parece-nos
que esta aproximação desconsidera que tais práticas permanecem porque
têm uma funcionalidade específica na ordem da sociedade de classes a ser
mantida; e que se fundamenta em contradições que se reproduzem
manifestando-se em desigualdades de fato que a igualdade formal não
consegue reverter. Como dizia Martín Fierro, genial personagem gaúcho de
José Hernández, “a justiça é como uma teia de aranha: quando o bicho é
pequeno o prende, quando é grande a rompe”.
Vamos a
alguns exemplos, todos ocorridos no quadro de um Estado Democrático de
Direito. O primeiro condenado por participar na manifestações de rua que
eclodiram no Brasil em 2013 é um morador de rua chamado Rafael Vieira,
acusado pelo Ministério Público e condenado pelo juiz Guilherme Shilling
Pollo Duarte, por estar de porte de dois frascos de desinfetante e água
sanitária na rua no momento de uma manifestação. Para o Ministério
Publico tratava-se de “aparato incendiário ou explosivo” e para o
digníssimo juiz “a utilização do material incendiário, no bojo de
tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar risco
considerável à incolumidade dos demais participantes”.
Mesmo
considerando o risco que um material de limpeza poderia produzir na
imundice da ordem política reinante, não nos parece ser esta a lógica da
condenação, toda ela fundada, vejam só, no depoimento de um policial
civil que alega que ele foi preso porque estava com o material na mão,
material que, segundo o laudo da policia, o suspeito portava “artefatos
semelhantes a um coquetel molotov”. Foi suficiente para que o ministério
público transformasse isso em porte de material explosivo e enquadrasse
o morador de rua no inciso III, artigo 16 do Código do Desarmamento.
Duas
observações simples, que constam do próprio laudo da polícia: o
recipiente não continha panos ou trapos que poderiam servir como mechas e
o recipiente era de PLÁSTICO, o que impede a fragmentação e não serve
como coquetel molotov! Rafael Vieira tem 26 anos, é negro e vem de duas
sentenças cumpridas no sistema prisional.
Uma mulher
de 19 anos foi condenada em 2005 por roubar um pote de manteiga porque
seu filho estava com fome. Não participava de uma manifestação e a
manteiga não poderia explodir o palácio dos Bandeirantes. Passou 128
dias presa, apesar dos recursos de seu advogado que pediu a liberdade
provisória de sua cliente, recursos que foram negados por quatro vezes.
Depois de um recurso ao Superior Tribunal de Justiça ela foi condenada a
quatro anos em regime semi-aberto.
No dia primeiro de dezembro de 2013, um dos protagonistas do filme Terra vermelha,
que trata da luta do povo Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas
terras, foi assassinado. Seu nome era Ambrósio Vilhalva Kaiowá. Não se
trata de um caso isolado, desde 2003 foram assassinadas 500 índios no
país e é evidente a relação destas mortes com a luta pela demarcação de
suas terras e a criminosa inoperância do governo. Durante os governos de
Lula e Dilma o numero de mortes entre os indígenas cresceu em 168%.
Não é apenas
com o sangue indígena que se tinge a terra de vermelho. A luta pela
terra ceifou muitas vidas de camponeses e militantes, só nos primeiros
quatro meses de 2012 foram assassinados 12 lutadores e, segundo
relatório sobre os conflitos no campo no Brasil “os conflitos pela posse
de terra saltaram de 853 em 2010 até 1.035 em 2011, com um crescimento
de 21,32%, assim como o aumento de 177,6% do número de camponeses
ameaçados de morte (de 125 a 347)”.
Nos últimos
dez anos a PM do Rio de Janeiro matou cerca de dez mil pessoas, a
maioria jovens e negros. No conjunto destes dados chama nossa atenção os
chamados “autos de resistência”. Entre 2005 e 2007 foram 707 casos de
autos de resistência com autoria reconhecida, dos quais apenas 355
viraram inquéritos policiais, 19 foram encaminhados à justiça, 16 foram
arquivados e só um foi levado a jure resultando em condenação.
Em 2012, só
em São Paulo, foram 5,3 mil internações involuntárias para “tratar”
dependentes químicos. Este numero saltou de algo entorno de 700
internações involuntárias em 2003 para esta marca de cinco mil em 2012 e
práticas semelhantes estão se disseminando nas principais capitais
brasileiras, com destaque para o Rio de Janeiro.
Ressalto
estes fatos pois para todos os casos descritos há aparatos legais e
parâmetros jurídicos e institucionais estabelecidos. São pobres, negros,
índios, camponeses sem terra, loucos, manifestantes vândalos, que
incomodam a ordem do mercado e do capital. As portas de seu barracos não
precisam de mandatos judiciais para serem derrubadas, seus corpus
não tem direitos, podem ser presos e mantidos incomunicáveis, seus
corpos desaparecem (caiu o numero de mortes em confronto com a polícia e
cresceu o numero de desaparecidos), seus sofrimentos psíquicos
atrapalham a beleza dos jardins estéreis e assépticos, sua urina cheira a
mijo.
Para estes
restos… o cacete, o porrete da ordem, a cadeia, o manicômio, os porões,
sacos plásticos na cabeça, covas rasas, matagais, tapas na cara, valas
comuns, celas lotadas. Não como exceção, como regra, ração diária de
barbárie, exercício sistemático de arbitrariedade. Como dizia Brecht “No
regime que criaram a humanidade é exceção. Assim, quem se mostra humano
paga caro essa lição”.
Na abstração
do ordenamento jurídico reina uma ordem abstrata que se choca com a
carne da realidade. Na vida cotidiana das contradições os agentes do
Estado e seus aparatos operam no quadro de um pragmatismo de fazer
inveja aos altos escalões do governo. A Lei de Execuções Penais
determina que cada preso tenha seis metros quadrados, mas a política de
garantia da ordem continua mandando gente para a cadeia num volume
exponencial, o que resulta em setenta centímetros quadrados para cada
preso. O que faz o agente penitenciário? Fecha a porta e espera passar
seu horário de trabalho.
No frio da
noite do deserto uma mulher sente as dores do parto. São pobres, vagam
sem terra guiados por uma estrela que perdeu seu rumo. O Estado resolveu
combater profecias assassinando crianças. Eles se abrigam numa
manjedoura na qual os pacientes esperam para ser atendidos em macas
pelos corredores ou em um pedaço de chão sujo. Seu pai operário
desempregado, sua mãe carregando no corpo a opressão de milênios sobre
as mulheres desde a reintegração de posse lá no paraíso. A criança
crescerá para ser assassinada pelo Estado, não antes de passar por um
julgamento duvidoso e ser torturado pelos agentes da UPP romana em
Jerusalém.
Nos momentos
finais de agonia, entre dois ladrões, um bom e outro mau – diferença
desconsiderada na sentença proferida e na crucificação realizada –, o
condenado do meio olha para os céus e maldiz seu pai (não o marceneiro, o
outro: o Abstrato). São três os condenados que sofrem, cada um em sua
cruz. Afastando o olhar, vemos nos morros ao redor, centenas, milhares
de cruzes sob um céu de chumbo que se fecha sobre o mundo.
O império
que parecia eterno ruiu. O juiz continua até hoje lavando suas mão sujas
de sangue. Naquele morro haviam três condenados pelo Estado, dois
ladrões e um revolucionário. Dizem que só um… apenas um… ressuscitou.
Feliz natal e um ano cheiinho de lutas contra o Estado Burguês. É melhor preparar as cadeias, porque não vamos parar de lutar.
“É a volta do cipó de arueira
no lombo de quem mandou dar”
Vandré
no lombo de quem mandou dar”
Vandré
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Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.
Extraído de:
http://blogdaboitempo.com.br/2013/12/11/estado-de-excecao-e-o-cacete/
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