segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O mensalão e a amnésia do governismo

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A prisão de José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares, entre outros envolvidos no escândalo de corrupção que estourou em 2005 e que ficou conhecido como mensalão, mobilizou uma turba de governistas que têm se dedicado a defesa dos dirigentes petistas, principalmente na blogosfera.

Dois fatos chamam atenção na postura dos governistas: o primeiro é mencionar apenas os dirigentes petistas não estendendo a solidariedade ao publicitário Marcos Valério e aos políticos de outros partidos da base governista igualmente condenados. O segundo é que apresentam os dirigentes petistas como vítimas e injustifiçados, ainda que eles próprios não consigam esconder que os mesmos praticaram ilícitos já que negam o mensalão se escudando no caixa 2.

Essas incoerências além de tentar proteger os dirigentes petistas (e somente eles) ainda buscam confundir setores da vanguarda e militantes sociais honestos e alguns ainda iludidos com a gestão petista. Tudo seria “golpe das elites” e aqueles que criticam pela esquerda os rumos do partido que culminou na prisão de alguns de seus principais dirigentes são apresentados como os que “fazem o jogo da direita”.

Mas o convencimento de artimanhas como essas possui limites. A direita e setores importantes e odiosos das oligarquias brasileiras estão dentro do governo, a denúncia de corrupção partiu da própria base aliada, a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (incluindo Joaquim Barbosa) foram nomeados por Lula e Dilma, sem contar que em 2005 Washington enviou o secretário John Snow e na sequência o próprio Bush para garantir que a crise política não transbordaria o copo a ponto de ameaçar o regime.

Avessos a qualquer crítica e reflexão os governistas não tardam em denunciar como “ingênuo”, “aliado das elites golpistas e da direita” qualquer um que não coadune com a defesa dos corruptos do seu partido, mesmo que as ponderações venham de um petista histórico.

Recentemente o ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, foi enxovalhado por petistas de todas as ordens (intelectuais, militantes de base, simpatizantes, dirigentes, etc) por afirmar, em um jornal de Porto Alegre, que a prisão dos ex-dirigentes de seu partido foi correta. [1]

Vale lembrar que Olívio foi sacado do Ministério das Cidades para dar lugar a um homem de confiança de Severino Cavalcanti do PP, em 2005. Cavalcanti, então deputado federal, renunciou ao cargo temendo ser cassado após denúncias de pagamento de propina de um restaurante da Câmara dos Deputados, escândalo que ficou conhecido como “mensalinho”.

Todo esse estardalhaço contrasta com um passado não muito distante que demonstra que os primeiros a condenar os ex-dirigentes petistas foram Lula, o próprio PT e seus dirigentes.

“Como assim?”, perguntará espumando o governista intolerante! Ora, basta rever as declarações e/ou ações da época tanto do ex-presidente, quanto de alguns dirigentes e da Executiva Nacional do PT.

Em 12 de agosto de 2005, Lula faz um pronunciamento em rede nacional para pedir desculpas ao povo brasileiro pelos ilícitos praticados, se diz traído e indignado e solta o célebre “não sabia de nada”:

“Estou consciente da gravidade da crise política. Ela compromete todo o sistema partidário brasileiro. Em 1980, no início da redemocratização decidi criar um partido novo que viesse para mudar as práticas políticas, moralizá-las e tornar cada vez mais limpa a disputa eleitoral no nosso país.

Ajudei a criar esse partido e, vocês sabem, perdi três eleições presidenciais e ganhei a quarta, mantendo-me sempre fiel a esses ideais, tão fiel quanto sou hoje. Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento.

Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia, e que chocam o país. O PT foi criado justamente para fortalecer a ética na política e lutar ao lado do povo pobre e das camadas médias do nosso país. Eu não mudei e, tenho certeza, a mesma indignação que sinto é compartilhada pela grande maioria de todos aqueles que nos acompanharam nessa trajetória. Mas não é só. Esta é a indignação que qualquer cidadão honesto deve estar sentindo hoje diante da grave crise política.

(...)

Queria, neste final, dizer ao povo brasileiro que eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas, porque o povo brasileiro, que tem esperança, que acredita no Brasil e que sonha com um Brasil com economia forte, com crescimento econômico e distribuição de renda, não pode, em momento algum, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo.” [2]


http://www.youtube.com/watch?v=Qj-w3i9_hpQ


Quatro dias depois, em 16 de agosto, a Executiva Nacional do PT divulga uma resolução na mesma linha do então Presidente da República:

“O Partido, com esta resolução, faz o seu primeiro pedido de desculpas à Nação, pois os atos que nos comprometem, moral e politicamente perante os brasileiros, foram cometidos por dirigentes do PT, sem o conhecimento de suas instâncias.

Tais atos criaram uma situação de constrangimento para o PT e para o nosso governo. É impossível avaliar, neste momento, a profundidade e a gravidade de tais danos. Estamos recompondo nossa vida interna, reorganizando as nossas estruturas administrativas e procurando responder à crise política para defender a continuidade com normalidade do governo Lula.” [3]

O atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, assumiu interinamente a presidência do partido em 2005 e agitou como principal bandeira a “refundação do PT” [4]. De acordo com Genro, uma “operação limpeza” já estava em curso no partido e se aprofundaria no segundo mandato de Lula. [5]

Em uma “Carta ao Partido” em que Tarso defende a “refundação” é mencionada uma “crise partidária”, que teria sido “induzida por poucos”:

“Vivemos tempos ásperos. Poucos de nós imaginariam há um ano atrás a profundidade e amplitude da crise que estava latente e comprometendo a vida partidária.

Se é verdade que ela foi induzida por poucos, não é menos verdade que muitos entre nós, no mínimo, não estivemos atentos ou mesmo silenciamos. A crise tem dupla dimensão: "crise política", com ingredientes morais; e "crise de projeto estratégico", que é nossa e que contém um pouco das limitações de toda a esquerda mundial.

(…)

Enfrentar o presente, para nós, é enfrentar esta crise: prosseguir na apuração de responsabilidades legais quanto às violações estatutárias, mas também das responsabilidades políticas que nos legaram esta situação de crise. ” [6]

Em 22 de outubro de 2005, o ex-tesoureiro Delúbio Soares foi expulso do PT, por recomendação da Comissão de Ética do partido. No documento que justificava a medida era dito que Delúbio “ao receber incumbências para executar tarefas políticas importantes, extrapolou, com suas atividades individuais, as deliberações adotadas pela direção nacional, expondo o partido a uma crise política”. [7]

Meses antes, em 16 de julho, o próprio Delúbio havia admitido a criação de uma contabilidade paralela [8] e que havia tomado recursos junto a Marcos Valério [idem 7].

A decisão de expulsar Delúbio foi apoiada por 37 dos 56 membros do Diretório Nacional do PT. O próprio José Dirceu pediu a Delúbio que se desligasse voluntariamente. O grupo de Dirceu, aliás, votou por um afastamento de três anos do ex-tesoureiro (16 votos). Houve 3 abstenções. [9]

O partido tomou uma decisão extrema, que responde de maneira correta” [idem 9], foi a caracterização de Tarso Genro com relação ao episódio. Para o então deputado, Ricardo Berzoini, “O PT agiu no tempo certo, dentro dos procedimentos estatutários” [ibidem]. Por fim, estas foram as palavras do então líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante:

“Para o partido, é doloroso, mas era uma decisão inevitável. Delúbio sempre agiu achando que estava contribuindo para o PT, não houve benefício pessoal, mas tomou decisões sem autorização da direção.” [ibidem]

Antes da expulsão de Delúbio o PT havia passado por eleições internas que definiram a composição da Direção Nacional. Tarso Genro, que havia assumido interinamente a direção do partido, abandonou sua candidatura devido a presença de José Dirceu na chapa: “Para algumas pessoas é possível [manter Dirceu na chapa]. Para mim, não dá” [10], afirmou na época o atual governador do Rio Grande do Sul.

De acordo com Genro sua atitude “expõe de maneira aberta e transparente a necessidade de mudança no núcleo dirigente”, “A retirada abre a crise de maneira democrática para a sociedade e para a própria militância” e:

“Se a crise for tratada agora com panos quentes - e isso significa que as lideranças do partido componham politicamente com situações e posições com as quais discordam radicalmente -, isso sim seria um desserviço ao partido. Portanto, acho que minha saída é positiva” [11]

O então candidato da DS (Democracia Socialista), Raul Pont, embora tenha celebrado a substituição de Tarso por Berzoini, solidarizou-se com a atitude Genro nos seguintes termos: “A intransigência destes envolvidos está colocando em risco a sobrevivência do PT.” [idem 10]

Pont, que foi derrotado por Berzoini no segundo turno e depois se tornou secretário-geral do PT, não media palavras para atacar José Dirceu e outros membros envolvidos no escândalo de corrupção:

“Ele quis impor no PT a sua linha autoritária. Foi ele quem possibilitou o surgimento, para a política, de figuras como o Delúbio Soares (ex-tesoureiro) e Silvio Pereira (ex-secretário).”

“Dirceu afundou o governo com sua política equivocada de alianças. Foi ele quem procurou o PL, o PP, o PTB e outros, e fez alianças políticas à direita.”

“Dirceu é antidemocrático, autoritário, não aceita a pluralidade. Durante mais de dez anos nós, da esquerda, fomos minoria no partido e nos comportamos dentro do nosso espaço. Agora, que estamos na direção, ele rejeita essa mudança.” [12]

Nesse período era corrente no discurso de alguns dirigentes e militantes petistas nos movimentos sociais e na blogosfera o argumento de que o PT tratava seus corruptos de forma diferente dos outros partidos, que os condenava, não os protegia e que assim rumava para uma depuração interna.

Quanta diferença com o discurso da atualidade!


Reforma política como cortina de fumaça

O desenrolar da História atestou que os rumos do PT não se alteraram: o chamado Campo Majoritário foi se fortalecendo cada vez mais [13], conforme foram ocupando cargos críticos de ocasião como Raul Pont foram se moderando até terminar na defesa dos dirigentes anteriormente demonizados (acabando inclusive por defender e praticar suas políticas [14]) e até mesmo o expulso Delúbio Soares retornou ao partido em 2011.

Mas chama atenção que um espantalho da atualidade apresentado como panacéia para a crise de representação do sistema político brasileiro, contestado com força nas ruas no mês de junho, já tenha sido apontado como solução lá atrás: a reforma política!

No seu pronunciamento mencionado no início desse artigo, Lula defende “urgência” para tal reforma:

“O Brasil precisa corrigir as distorções do seu sistema partidário eleitoral, fazendo urgentemente a tão sonhada reforma política. É necessário punir corruptos e corruptores, mas também tomar medidas drásticas para evitar que essa situação continue a se repetir no futuro.” [idem 2]

Na também já mencionada Resolução da Executiva Nacional do PT, o partido pedia a reforma já para o ano seguinte:

“O PT defende uma ampla reforma política, com fidelidade partidária rigorosa e financiamento público e redução dos custos de campanhas, com vigência ainda para as eleições de 2006. Por isso, apóia emenda constitucional que amplie, até o final deste ano, o prazo para votação de mudanças na lei eleitoral, para aplicação nas eleições de 2006.” [idem 3]

Apesar das promessas, e de se gabar de possuir “habilidade” para compor e possuir a maioria no Congresso Nacional, os governos petistas nunca buscaram a reforma política de forma consequente.

O toma-lá-da-cá seguiu nas casas parlamentares, o PT foi se tornando cada vez mais um dos partidos que mais recebe dinheiro dos grandes grupos econômicos e alianças com os mais atrasados setores da sociedade seguiram sendo feitas e reforçadas – muitas vezes ao preço de sacrificar bandeiras mínimas exigidas por sua própria base.

Como lá atrás, hoje a reforma política não passa de cortina de fumaça para tentar dar uma resposta à sociedade e à sua militância ante mais uma crise política. Isso fica evidente na troca promovida pelo próprio bloco dirigente do PT do deputado Henrique Fontana por Cândido Vaccarezza na coordenação do grupo de trabalho da Câmara dos Deputados encarregada da referida reforma. Vaccarezza, que de cândido não tem nada, conseguiu piorar a reforma que já era ruim sob o comando de Fontana. [15]

Para finalizar, é pertinente trazer uma citação do articulista governista, Eduardo Guimarães, quando do retorno de Delúbio Soares ao PT, em 2011. Cauteloso, Guimarães alertava que ações como a expulsão do ex-tesoureiro representavam a condenação de petistas por seus próprios correligionários antes mesmo do processo correr na justiça:

“A explicação do partido de que Delúbio foi reintegrado porque “ninguém pode ser punido para sempre” e porque já teria “pago pelo seu erro”, é absurda porque dá como certo que o ex-tesoureiro cometeu o crime apesar de que ainda não foi julgado, e porque, se cometeu mesmo tal crime, expulsá-lo por cinco anos é pena muito branda.” [16]




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[1] Olívio considera justa a prisão dos mensaleiros (21/11/2013):

[2] Dia de ouvir Lula sobre o Mensalão: “eu me sinto traído e peço desculpas” (15/11/2013):

[3] Brasil: Resolução da Comissão Executiva Nacional do PT. Brasília, 16 de agosto de 2005.

[4] Tarso Genro diz que PT inicia ''refundação'' do partido (12/08/2005):

[5] PT precisa de uma ´refundação radical´, afirma Tarso (23/10/2006):

[6] Tarso agita Encontro do PT com documento pela “refundação” (27/04/2006):

[7] PT expulsa Delúbio Soares (22/10/2005):

[8] PT expulsa ex-tesoureiro Delúbio Soares (22/10/2005):

[9] PT expulsa Delúbio e diz que crise acabou (23/10/2005):

[10] Tarso Genro desiste de candidatura em eleições do PT (29/08/2005):

[11] Tarso desiste; Berzoini é o nome do PT de Lula (30/08/2005):
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3008200518.htm

[12] Petistas reagem e chamam Dirceu de 'autoritário e antidemocrático'. O Estado de São Paulo, 07/01/2006. Retirado do site do Senado Federal.

[13] O Campo Majoritário seguiu dirigindo o PT e na última eleição, ocorrida em 2013, seu candidato, Rui Falcão, fez quase 70% dos votos em um pleito marcado por fortes suspeitas de fraudes.

[14] Raul Pont atualmente é deputado estadual no Rio Grande do Sul. Tem sido um forte defensor das políticas de benesses aos grandes grupos econômicos e aos cargos de confiança praticadas pelo Governo Tarso. Tem justificado e defendido também as políticas de ataques desse governo aos servidores públicos e aos professores estaduais (como o calote no piso salarial da categoria). Tem defendido a manutenção da aliança com o fisiológico PDT do RS. Recentemente assinou um “Manifesto de repúdio às prisões ilegais” solidarizando-se com dirigentes anteriormente criticados por ele como José Dirceu.

[15] O articulista governista, Marco Weissheimer, escreveu um artigo abordando a substituição de Fontana por Vaccarezza e chega a sugerir que sob o comando do segundo o que se poderá ter é uma “anti-reforma”:

A manobra que afastou, até aqui com êxito, o deputado federal Henrique Fontana (PT-RS) da coordenação do grupo de trabalho criado pela Câmara dos Deputados para apresentar uma proposta de Reforma Política a ser votada ainda este ano, é mais um indicador que uma parte significativa dos parlamentares brasileiros é imune à realidade, vivendo numa terra paralela que tenta impor suas regras ao país. Em entrevista ao Sul21, Henrique Fontana conta como foi substituído por seu colega de partido, Cândido Vacarezza (PT-SP), em uma manobra articulada diretamente pelo mesmo (e por uma ala importante do PT ligada ao grupo que dirige hoje nacionalmente o partido) com o presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN).

(…)

É isso. Depois de tudo o que aconteceu no país nas últimas semanas, e segue acontecendo, essas são as ideias do deputado Vaccarezza para enfrentar as críticas ao atual modo de funcionamento do sistema político-partidário brasileiro. Tudo pode acabar, não em pizza, mas em uma anti-Reforma Política.” (A minirreforma eleitoral de Vaccarezza: uma anti-Reforma Política? 15/07/2013. Extraído de < http://www.sul21.com.br/jornal/a-minirreforma-eleitoral-de-vacarezza-uma-anti-reforma-politica/ >)

[16] A reintegração de Delúbio ao PT (30/04/2011):


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