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05
Abril 2015
Golbery
Lessa
Se a
esquerda deseja ter clareza sobre como agir diante da ampliação das
manifestações organizadas por setores reacionários da classe
média, precisa procurar uma explicação científica para o fato e
não embarcar na versão apresentada pelo governo federal. É mais
fértil procurar entender as bases econômicas, culturais e políticas
do reacionarismo do que concebê-lo como um improvável desvio moral
simultâneo de milhões de indivíduos. Seria desastroso fundamentar
apenas na intuição o discurso e as ações contrários às
dimensões ultradireitistas das manifestações corridas no último
15 de março. Para a esquerda, é mais importante tentar compreender
os fatos do que promover uma competição para saber qual dos seus
analistas ridiculariza melhor o bizarro discurso das passeatas
verde-amarelas e cria o mais engenhoso anátema para estigmatizar os
setores médios.
É
infértil fazer uma análise estanque das ideias e das posições
políticas da classe média. Não é sustentável considerar que este
grupo social tenha condições objetivas apenas de comportar-se e
expressar-se de modo conservador. Como demonstrou Karl Marx, ainda no
século XIX, é próprio dos setores médios da sociedade moderna
oscilarem entre posições ideológicas e políticas de direita e de
esquerda e, inclusive, misturarem essas posições antípodas. Na
atual conjuntura brasileira, uma das provas desse movimento pendular
é o fato de que um setor numeroso da mesma classe comporta-se de
maneira progressista, defende a esquerda e repudia o discurso do tipo
proferido por Jair Bolsonaro.
Nos
últimos anos, o marketing do governo federal apostou na
estigmatização dos setores médios com o objetivo de aproveitar o
descontentamento de alguns dos seus estratos com o PT para “provar”
que “a tradicional elite brasileira” seria contrária aos
“avanços sociais” dos governos Lula e Dilma. Manipulou o sentido
da palavra “elite” para que esta abarcasse apenas a classe média
e fez desaparecer nessa bruma sociológica a grande burguesia aliada
aos petistas. A família com renda de cinco salários mínimos ou
mais começou a aparecer na fala governista como a adversária
natural dos trabalhadores e a senadora Kátia Abreu, para surpresa do
público, passou a ser mostrada como heroína da economia brasileira.
Como cereja do bolo dessa sociologia pelo método confuso,
possivelmente criada pelo marqueteiro João Santana, enquanto a
classe média real se contraía, os governos petistas fantasiavam
sobre a existência de uma “nova classe média” formada pelas
famílias de trabalhadores com carteira assinada e acesso ao consumo
de massa.
Para
compreender as últimas manifestações de direita contrárias ao
governo Dilma é preciso, igualmente, desconfiar dos motivos alegados
pelos próprios setores médios envolvidos, pois um grupo social não
é, necessariamente, o que afirma de si mesmo. Para parte da
esquerda, é tentador imaginar que uma fatia da classe média está
insatisfeita apenas devido a arraigados preconceitos contra os
pobres, as minorias étnicas, a população LGBTT, o campesinato e o
operariado, entre outros grupos. Entretanto, se observarmos os dados
empíricos existentes, é possível perceber que a insatisfação tem
outros motivos, a maioria de ordem econômica.
Comecemos
pelo que tem sido esquecido pela maioria dos analistas: observemos os
dados empíricos sobre a trajetória econômica e demográfica da
classe média na Era PT.
Entre
2001 e 2013, na Região Metropolitana de São Paulo (RM-SP), palco da
maior manifestação do dia 15 de março passado, segundo a
PNAD/2013, o número absoluto de famílias de classe média
(consideradas como aquelas cuja pessoa de referência da família
tinha renda mensal de cinco salários mínimos ou mais) diminuiu
31,57%, enquanto o número absoluto de famílias da classe
trabalhadora (consideradas como aquelas com renda mensal inferior a
cinco salários mínimos) ampliou-se 57.64%. Se observarmos a
variável contabilizando a renda de todas as pessoas do núcleo
familiar, a situação melhora para a classe média, entretanto, a
sua trajetória passa a ser de crescimento (12,00%), mas muito menor
do que o da classe trabalhadora (65,48%). Mesmo nesse caso, os
estratos entre 10 e 20 salários mínimos e acima de 20 salários
mínimos tiveram encolhimentos absolutos de 23,00% e 38,90%.
A
constatação é ainda mais surpreendente quando comparamos esses
números com aqueles das mesmas variáveis e dos mesmos parâmetros
imediatamente referidos entre os anos de 1991 e 2000. Nesse intervalo
de tempo, segundo os censos demográficos do IBGE, o número absoluto
de famílias de classe média no Estado de São Paulo (não tivemos
acesso a dados da RM-SP para o período) quase dobrou (96,61%) e o de
famílias da classe trabalhadora ampliou-se em apenas 19,70%. No
país, os números foram, respectivamente, 185,26% e 21,00%. Primeira
conclusão: a Era PT estancou o desenvolvimento demográfico da
classe média e fez dois dos estratos desse grupo social encolherem.
Se
corrigirmos pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado) o
valor nominal da renda média mensal das famílias calculado na
PNAD/2013, constataremos que, entre 2001 e 2013, todos os estratos
salariais da RM-SP tiveram um ganho real de renda aproximado de 38%.
Será que a melhoria da renda das famílias de trabalhadores
originou-se em recursos anteriormente de posse dos setores médios?
Como, ainda segundo a PNDA/2013, apenas 4,39% dos integrantes da
classe média da RM-SP eram, em 2013, empregadores de trabalhadores
não-domésticos (nesse número estão inclusos os membros da grande
burguesia, pois IBGE não os discrimina) e 7, 07% dos assalariados
eram trabalhadores domésticos, a melhoria da renda dos trabalhadores
na Era PT não pode ter se originado, a não ser residualmente, de
recursos provenientes da classe média.
O
aumento da renda dos trabalhadores na Era PT foi determinado por uma
significativa ampliação da oferta de empregos formais em um momento
de relativa estabilidade monetária. Uma tendência econômica
presente em dezenas de países do Sul do planeta na primeira década
do século XX e condicionada pelo deslocamento de grandes massas de
capital para a periferia do sistema. Configurou-se como um ganho dos
trabalhadores na luta econômica contra o capital, mesmo que as
grandes empresas tenham abocanhado a maior parte da riqueza derivada
do aumento de produtividade e da ampliação das escalas produtivas.
A classe média não perdeu nada com o avanço do consumo dos
trabalhadores, a multiplicação dos empregos e a expansão
(mercantilizada) de algumas políticas sociais, como o Bolsa Família
e os subsídios para matrículas no sistema de ensino superior. A
baixa qualidade da maioria dos cursos universitários e a
precariedade da assistência estudantil, entre outras variáveis,
fizeram com que expansão da presença dos trabalhadores no ensino
superior não lhes tenha garantido efetiva capacidade de competição
com os setores médios no mercado de trabalho, representando mais uma
ganho simbólico do que uma efetiva qualificação (com exceção das
trajetórias individuais particularmente exitosas e motivadas por
talento excepcional).
A
contração demográfica de estratos da classe média foi determinada
por duas variáveis: 1) nos 13 anos considerados (2001-20013), o
aumento de 38% na renda real mensal não foi suficiente para cobrir o
crescimento das necessidades de consumo impostas pela dinâmica da
sociedade a esta classe; e 2) a reestruturação produtiva das
empresas privadas e órgãos públicos, no início do século XX,
baseada na diminuição dos níveis de chefia e no avanço
tecnológico dissolvedor de funções especializadas, diminuiu muito
os postos de trabalho para os setores médios. Esses fatores
atingiram de modo distinto os trabalhadores, pois suas necessidades
ainda eram as básicas e os postos de trabalho que podiam ocupar
multiplicaram-se.
A
sociedade capitalista é estruturada de tal modo que o nível de
consumo imposto socialmente aos indivíduos desenvolve-se numa
espiral crescente e avassaladora. O telefone celular e o computador
pessoal, por exemplo, inicialmente apenas curiosidades tecnológicas,
tornaram-se instrumentos profissionais e sociais incontornáveis. A
primeira década do século XXI no Brasil foi marcada por um notável
acréscimo de novas necessidades sociais para as famílias de classe
média, sendo suficiente elencar o crescimento da adesão aos planos
de saúde, a inflação das mensalidades escolares, a ampliação dos
gastos com equipamentos eletrônicos e o boom do acesso à banda
larga. Diante dessa tendência intrínseca ao capitalismo, apenas o
aumento correspondente da renda e das oportunidades de trabalho seria
capaz de evitar disfuncionalidades e insatisfação social. O choque
entre o aumento das necessidades de consumo impostas socialmente e a
renda foi, no período considerado, respondido pelas famílias com a
renúncia ao consumo e o endividamento, uma combinação
politicamente explosiva.
Também
nos governos petistas, a classe média tem perdido renda para o
grande capital, principalmente por meio de preços de monopólio
cobrados por faculdades privadas, bancos, planos de saúde,
montadoras de automóvel e outros setores. Parte deste grupo social
imputará essas perdas a qualquer governo dominado pelas grandes
empresas e tenderá a usar a retórica antigovernista à mão para
explicitar sua crítica e propor um governo diferente, via eleição
ou impeachment. Se o governo for do PSDB ou outro partido de direita,
usará a retórica da esquerda, como o fez na crítica aos governos
FHC e Collor. Caso o governo seja petista e a esquerda alternativa
ainda não tenha adquirido visibilidade e significativo peso
político, usará a retórica da direita e mesmo da extrema direita.
Vejamos uma prova empírica desse movimento pendular: poucos dias
antes do segundo turno da eleição presidencial de 2002, pesquisa do
Instituto Datafolha mostrava que 60% da classe média paulistana,
replicando tendência nacional, votaria em Lula. Na véspera do
segundo turno da eleição de 2006, o mesmo Datafolha divulgava que
cerca de 50% dos setores médios paulistanos votariam no candidato do
PT. O antipetismo não é e nunca foi intrínseco à classe média
brasileira.
O
setor da classe média que se expressa, na atual conjuntura, por meio
de ideias reacionárias o faz, entre outros motivos, porque percebe
os governos petistas como dominados pelo grande capital, o adversário
econômico por excelência da pequena burguesia. A fala contra a
corrupção colocada no centro do discurso desses estratos médios é,
além de uma simplificação exagerada do complexo tema das políticas
públicas, uma crítica a governantes, de fato, capturados pelo
empresariado. A atitude dos governos petistas de defender os
monopólios e abandonar a classe média levou o discurso de setores
desse grupo social a expressar-se numa retórica contra o PT, seu
passado proletário, as políticas sociais e a esquerda em geral. É
a fala de um anticapitalismo de direita (defende o mercado, mas é
contra a acumulação, deseja o individualismo, mas é contra a
igualdade de oportunidades, etc), que, por também não confiar na
oposição, apela cada vez mais para entidades abstratas, com a
pátria, em busca de forças políticas descompromissadas com o
governo de plantão e o grande capital. É uma situação típica na
qual a classe média pode se tornar presa das ideias fascistas. Algo
particularmente perigoso num momento em que os movimentos sociais e
os sindicatos estão neutralizados pelo direitismo do governo, pois
os aludidos estratos dos setores médios tornam-se uma vanguarda
reacionária que pode imantar o resto da população. A esquerda
precisa, urgentemente, entender os motivos econômicos desta classe
social e lhe apresentar um programa alternativo.
Extraído
de:
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