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Para abordar o assunto do
título acima, inicio reproduzindo o trecho abaixo, extraído de
artigo que produzi em 2012:
"A grande
contribuição do materialismo histórico e dialético foi demonstrar
que as instituições de uma sociedade, assim como alguns outros
aspectos da mesma, devem ser analisadas a partir do seu contexto
sócio-histórico tendo em vista a base real na qual estão
assentadas. Elas são criadas pelos homens de um determinado período
para atender a um determinado objetivo.
As instituições
políticas da democracia moderna foram erigidas pela burguesia para
legitimar e legalizar o seu modelo de sociedade. Mas a democracia
criada por ela rejeitava a participação política das classes
populares e, quando pressionada pelas lutas das mesmas, se viu
obrigada a ceder alguns direitos, a burguesia não vacilou em
descaracterizar a participação do andar de baixo e manter a
essência de classe do seu regime político, criando regras e
mecanismos para garantir que os reais representados dessa democracia
fossem seus próprios pares." [1]
A caracterização do
materialismo histórico e dialético é confirmada pelos próprios
ideólogos e políticos burgueses envolvidos na construção da
democracia moderna. O franco-suíço Benjamin Constant alertava que a
concessão dos direitos políticos para as classes populares
serviriam para que estas invadissem a propriedade dos ricos. Tal
invasão não se tratava de um ato de ocupação física de um
território ou espaço mas de direitos e conquistas sociais. “Na
Inglaterra, atualmente, se as eleições fossem abertas a todas as
classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais segura.
Logo seria introduzida uma lei agrária”, dizia, abertamente,
James Madison, um dos “Pais Fundadores” dos Estados Unidos. Na
Inglaterra John Stuart Mill chamava a atenção para o fato de que as
classes populares constituiriam a maioria dos votantes e que isso
implicaria no “perigo” de uma “legislação de classe”. O
próprio Mill indicou um artifício eleitoral para combater esse
perigo: o voto plural, que atribuía pesos distintos aos votos de
acordo com a classe social do indivíduo. (Mais detalhes sobre a
construção do modelo político moderno no artigo "O desgaste da democracia representativa moderna" [2])
Assim, quando se vê
obrigada a abrir o regime político para as classes populares, a
burguesia cria mecanismos e regras eleitorais para reduzir o efeito
“perigoso” do voto da mesma e garantir a sua dominação. Em 1891
Engels já observava que nos Estados Unidos haviam "dois
grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam
conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos
para os fins mais corruptos — e a nação é impotente contra estes
dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço,
mas que na realidade a dominam e saqueiam." [3] A inclusão
das classes populares na política ocorre de forma controlada. No
Brasil não foi diferente e não é por acaso que muitos chamem o
processo que levou a redemocratização de “transição
conservadora”.
A primeira evidência que
os fatos históricos apontam é que a democracia que vivemos é uma
democracia burguesa. Logo, não se pode ter receio de chamá-la pelo
o que ela realmente é.
A segunda evidência é
que as instituições políticas dessa democracia burguesa existem
para garantir o processo de acumulação e reprodução do capital e
o seu sistema social. Nesse sentido, os parlamentos burgueses são,
por natureza, instituições conservadoras.
Embora as lutas da classe
trabalhadora tenham arrancado conquistas econômicas, sociais e
políticas - abrindo brechas nos parlamentos burgueses - estes, por
sua vez, não perderam a sua essência de classe. Quando o chanceler
Otto von Bismarck anunciou uma série de direitos para os
trabalhadores alemães no final do século XIX, foi na tática do
“entregar os anéis para não perder os dedos”. Quando o
economista John Maynard Keynes sugeriu ao presidente estadunidense,
Woodrow Wilson, um plano de assistência estatal foi com medo da
expansão das revoluções populares, como a Russa de 1917, afinal
como disse o próprio: "a guerra de classes me encontrará do
lado da burguesia educada." [4]
Nos momentos em que o
capital exige maiores taxas de lucros ou encontra-se em crise as
brechas abertas vão sendo fechadas, os anéis recolhidos e os
parlamentos burgueses tratam de lembrar a quem servem, para que
existem, em suma, qual o seu real papel social. Não é por acaso que
a crise de representação tem sido mais intensa onde a crise
financeira é mais aguda.
Portanto, falar em
Congresso conservador é redundância. No caso do Brasil nenhuma
reforma social foi aprovada por tal instituição, nem mesmo nos
últimos 12 anos, apesar de alguns considerarem os governos petistas
reformistas. Os difusores da “onda conservadora”, supostamente
comprovada pela eleição legislativa de 2014, até se esquecem que o
PT se opos a Constituinte de 1988 por, apesar de garantir alguns
direitos decorrentes das lutas populares, não se comprometer com
temas que só podiam avançar contrariando os interesses das classes
dominantes, como a reforma agrária [5], ou seja, a essência de
classe do regime era mantida.
As particularidades e as
diferentes formas não têm impedido o sangramento, em praça
pública, das instituições políticas da democracia burguesa, cuja
hemorragia da falta de credibilidade não se tem conseguido estancar.
O voto em lista na Espanha não impediu que a juventude indignada
ocupasse as praças do país para denunciar a sua falsa democracia e
pedir por uma democracia “real”. O financiamento público na
Itália não tornou seus políticos mais zelosos dos interesses das
classes populares. [6]
Como se pode perceber os
remendos são inócuos no que tange a mudar a essência de classe da
democracia burguesa. Agarrá-los como panacéia não é apenas
desonesto, mas reacionário. É surgir como bote salva vidas da
democracia burguesa, é querer girar a roda da História para trás
pois é extremamente progressivo que as massas cada vez mais percebam
a farsa do regime político em que vivem. Curiosamente é aqui que
muitos pretensos progressistas têm se mostrado os mais abnegados
surfistas de uma “onda conservadora”.
Alguns surfistas não são
nada ingênuos, são experientes e muito hábeis nas manobras. E
diante do fracasso da coalizão do PT com as oligarquias,
anteriormente apontada como tática sofisticada pela governabilidade,
buscam desviar o foco na tentativa de ocultar a responsabilidade dos
dirigentes petistas por suas opções e ações que desmoralizaram
membros do seu próprio partido, que desmobilizaram setores
organizados da classe trabalhadora e que elevou o ceticismo e o
desgaste do sistema político.
Em 12 anos de governo o
PT só agitou a reforma política nos momentos em que enfrentou
crises políticas agudas que o ameaçavam. Foi assim em 2005 quando
do estouro do escândalo do mensalão: enquanto Lula defendia tal
reforma em rede nacional o seu partido emitia nota reivindicando-a já
para o ano seguinte. Como se sabe não foi o que aconteceu. Em 2013,
após as jornadas de junho, Dilma volta a falar de reforma política
mas o próprio bloco dirigente do PT promoveu a troca do deputado
federal Henrique Fontana por Cândido Vaccarezza na coordenação do
grupo de trabalho da Câmara dos Deputados encarregada da referida
reforma. E o que já era ruim com Fontana se tornou péssimo com
Vaccarezza. [7]
Atualmente a agitação
da reforma política vem acompanhada da agitação da “onda
conservadora” e até “fascista”. Mais uma vez estamos diante de
uma manobra que visa ocultar a responsabilidade do PT, já que a
própria presidente Dilma firmou um acordo com o PMDB que garante que
se tal reforma sair será nos termos que agrada aos parlamentares que
não desejam grandes mudanças. Fica claro que o próprio PT atua
para sabotar a reforma política e isso ocorre porque muitos
conservadores não são apenas aliados do Planalto mas se encontram
no interior do próprio partido como atesta a sua presença nas
bancadas empresarial, religiosa e ruralista. [8]
Tal manobra também visa
arrastar setores de esquerda críticos ao governo para ampliar sua
base social para uma governabilidade que vai atacar ainda mais os
direitos dos trabalhadores e a soberania nacional. Os que acreditam
poder disputar tal reforma pela esquerda nada mais fazem do que
inflar a farsa governista. Como observou Duarte Pereira:
“Tomo
a liberdade de compartilhar uma preocupação. As denúncias
exageradas de ameaças de golpes militares e de avanço fascista no
Brasil, com base em manifestações minoritárias, postagens de
internet e arreganhos de generais de pijama, têm-me parecido um
alarmismo exacerbado com três propósitos.
Primeiro:
desviar a atenção das concessões ainda maiores ao grande capital
transnacional e nacional e aos partidos conservadores que estão
sendo preparadas pelo novo governo Dilma.
Segundo:
obscurecer as responsabilidades do PT e dos governos Lula e Dilma –
com sua inflexão social-liberal e neodesenvolvimentista de caráter
capitalista, suas alianças espúrias e seus seguidos escândalos de
corrupção ativa e passiva – pela divisão e debilitamento das
correntes da esquerda socialista e do centro democrático e pela
reemergência e revigoramento das correntes conservadoras e
fascistas.
Terceiro:
confundir ainda mais os setores oposicionistas de esquerda e de
centro-esquerda que recuaram da oposição ao governo Dilma no
segundo turno da eleição presidencial, preferindo apoiar sua
reeleição em vez de anular o voto em sinal de protesto e
insatisfação com as duas candidaturas restantes – e no
fundamental equivalentes.” [9]
Assim, na mesma semana em
que setores de esquerda que fazem oposição ao governo participavam
de uma marcha governista em São Paulo a favor da reforma política
já deformada pela própria Dilma e contra o “golpismo” [10],
avançava no Senado Federal proposta de lei que visa “regulamentar”
o direito de greve dos servidores públicos com medidas que a
inviabilizam [11]. A Comissão Mista de Regulamentação de
Dispositivos Constitucionais que aprovou o parecer antigreve é
comandada pelos governistas Romero Jucá (PMDB-RR) e Cândido
Vaccarezza (PT-SP), como reconheceu a própria Central Única dos
Trabalhadores (CUT). [12]
Importante salientar que
Constituintes se chamam quando se buscam mudanças profundas em
vários setores da sociedade e não apenas para modificar parte dela,
como desejam alguns com a reforma política. Esta deveria ser
complementar a outras mudanças. Exagera ingenua ou malandramente
quem diz que a reforma política é a “mãe de todas as reformas”.
Ou a Kátia Abreu passará a defender a reforma agrária, Sandro
Mabel a ampliação dos direitos trabalhistas e Jereissati a
reestatização de empresas privatizadas, só porque passaram a
receber financiamento público nas suas campanhas?
Há o risco, nada
desprezível, de que uma constituinte exclusiva para reforma política
termine por retroagir ainda mais o sistema político. Não são
poucos os que desejam fechar o regime em torno de poucos partidos
comprometidos com a ordem, inclusive dentro do PT, e a imposição de
uma cláusula de barreira poderia se firmar.
Ainda que se possa
defender medidas mais progressistas para uma reforma política, o que
não é o caso dos governistas, as reais mudanças não poderão ser
alcançadas pelos parlamentos burgueses mas somente nas ruas através
da organização social desde baixo. Um governante ou um partido que
se elegesse comprometido com as pautas das classes populares só
poderia implementá-las com a organização e mobilização das
mesmas pois as classes dominantes não abdicariam de seus interesses
pacificamente. Não se trata de simples discurso, foi o caminho
trilhado pela pequena, mas corajosa, cidade espanhola de Marinaleda,
única que não afundou com a crise financeira que assola o país.
[13]
E por falar em crise
financeira, esta se aprofunda. E, sob o silêncio cúmplice dos
difusores da “onda conserbadora”, o governo petista pratica um
nada progressista ajuste com aumento de preços, privatizações que
incluem até hospitais universitários, cortes do seguro-desemprego e
auxílio-doença, além de buscar um homem de confinaça do mercado
para o Ministério da Fazenda e alguns conservadores para outros
ministérios.
Torna-se de fundamental
importância organizar a classe trabalhadora, a juventude, demais
excluídos e lutadores sociais para resistir aos ataques em curso e
aos que virão, além de discutir e formular alternativas para suas
demandas e uma organização da política que as contemple.
Disposição de luta o povo brasileiro já demonstrou que tem.
Que os governistas
busquem desviar essa disposição de luta para uma reforma política
reacionária é mais do que compreensível, é esperado.
Surpreendente é ver setores de esquerda que se dizem críticos ao
governo surfando de forma irresponsável nessa verdadeira “onda
conservadora”.
______________________________________________________________
[1] Democracia e
golpismo (30/06/2012):
[2] O desgaste da
democracia representativa moderna (09/09/2010):
[3] ENGELS, Friedrich.
Introdução à Edição de 1891 de "A Guerra Civil em França"
de Karl Marx.
[4] MÉSZÁROS,
István. Filosofia, ideologia e ciência social.
São Paulo: Boitempo, 2008. p.65.
[5] Assim, Paulo
Paim, na época deputado, justificou a posição do PT:
"O
PT não pode votar a favor de um texto que é contra a reforma
agrária, dá cinco anos para o presidente Sarney e mantém íntegra
a estrutura militar. O PT assina a Carta porque reconhece os avanços,
principalmente nos direitos dos trabalhadores"
O PT e a Constituição.
História Sindical.
25 anos depois, Lula, em
mais uma da série “rasgando as velhas bandeiras”, atacou a
posição do PT na constituinte e chegou a afirmar que o país se
tornaria “ingovernável” se as propostas do seu partido fossem
incorporadas:
“No
dia da instalação da Constituinte, entreguei ao Ulysses Guimarães
um projeto de Constituição, elaborado pelo Fábio Konder Comparato,
e um projeto de regulamento interno (da Câmara). Tínhamos 16
deputados, mas éramos desaforados como se tivéssemos 500. O PMDB,
que tinha a maioria dos parlamentares, dos governadores e tinha o
presidente da República, não tinha um regimento pronto. Se o nosso
fosse aprovado, o país seria certamente ingovernável. Éramos muito
duros na queda e muito exigentes.”
Lula: Constituição
'petista' tornaria o país ingovernável. (01/10/2013):
[6] “A descoberta de
ampla rede de corrupção envolvendo as lideranças dos principais
partidos do país, grandes empresários e contatos com o crime
organizado (episódio conhecido como Tangentopoli) provocou a
reformulação do sistema partidário. A legislação italiana,
segundo o consultor, já contava com uma tradição de confusão e
ineficácia. Em 1997, a lei que dispunha sobre o financiamento
público de campanha (de 1974) foi substituída por um modelo de
"financiamento voluntário dos partidos políticos". Em
1999 surge uma nova legislação disciplinando as contribuições
voluntárias e o reembolso público de gastos de campanha. Propostas
de alteração das regras de financiamento de campanha, segundo o
consultor, continuavam sendo discutidas no final de 2003.”
(Conheça o financiamento de campanha em alguns países. Senado
Federal. 20/09/2010. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/eleicoes2010/noticias/conhea-o-financiamento-de-campanha-em-alguns-paises.aspx
)
[7] O mensalão e a
amnésia do governismo (23/12/2013):
[8] O PT conservador.
(12/10/2014):
Levantamento
preliminar do DIAP identifica 139 deputados na bancada ruralista.
(13/10/2014):
[9] A “onda
fascista”. Duarte Pereira. Correio da Cidadania, 05/11/2014.
[10] Ato em São Paulo
reúne 20 mil pessoas em defesa das reformas e contra golpismo.
(14/11/2014):
[11] Comissão aprova
relatório sobre direito de greve do servidor público (11/11/2014):
[12] Comissão mista
da Câmara e Senado aprova também parecer pela flexibilização do
conceito de trabalho escravo. (12/11/2014):
[13] A curiosa
Marinaleda (03/07/2013):