.
A política externa não está dissociada do projeto aplicado internamente por um governo. Ela é parte integrante e complementar. Como em outras áreas de atuação e medidas do Governo Lula, a confusão imperou também no debate sobre a sua política externa. O governismo, de forma ufanista, busca apresentá-la como progressista, no sentido de ser de esquerda. O tucanato e a direita atabalhoada, com os seus arroubos, contribui para ajudar a pintar esse quadro enganoso.
No entanto, quando se analisa mais de perto as principais linhas de ação do Governo Lula no plano externo tem-se outro cenário. Foi o que o presente trabalho encontrou.
Conselho de Segurança da ONU
Em 1999 o Governo Fernando Henrique Cardoso criou o Ministério da Defesa. Tinha início a caminhada por uma estrada que visava levar o Brasil a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. O país precisava sinalizar às demais nações que a sua força militar era minimamente organizada, requisito que a pasta criada buscava preencher. (Zaverucha, 2004)
Ainda no mesmo ano o Congresso Nacional deu o aval para o envio de soldados brasileiros para a Missão da ONU no Timor Leste. (Itamaraty - MRE - Timor Leste, p.3)
Em 2004 os Estados Unidos e a França invadiram o Haiti, depuseram o seu presidente eleito, Jean-Bertrand Aristide, e ocuparam militarmente o país. Na época, enfrentando sérias dificuldades no front iraquiano, os Estados Unidos buscava um parceiro para dar sequência ao seu trabalho no Caribe. O Brasil, já governado por Lula, ambicionando o Conselho de Segurança da ONU, aceitou liderar a "terceirização" da ocupação franco-americana organizada pela ONU.
Foi mais um passo na caminhada rumo às Nações Unidas. Afinal não era suficiente ter uma força militar minimamente organizada, era preciso provar que ela tinha condições de enfrentar instabilidades e capacidade para manter a ordem desejada pelo imperialismo. E para isso, nada melhor do que uma operação no país mais debilitado, militar e economicamente, da região.
Assim, sem se comover com a situação pauperizante do Haiti, sem sequer se importar se estava legitimando um golpe de Estado e a política externa belicista de George W. Bush, o Governo Lula, dando sequência aos objetivos do seu antecessor, sujava suas mãos de sangue no plano externo, ao passo que tentava limpá-las no plano interno apresentando tal ação como uma "Missão de Paz" que estaria ajudando os haitianos a superar o pauperismo e a violência gangsteriana.
Apesar dos esforços sujos, o Brasil ainda não conseguiu a vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Em 2009 o país foi eleito, pela décima vez, para uma vaga não permanente para o período 2010-2011. Foi a segunda vez durante o Governo Lula - a outra foi no biênio 2004-2005. Durante o Governo Fernando Henrique o Brasil também teve dois mandatos: 1993-1994 e 1998-1999. (UOL Notícias, 15/10/2009)
Obviamente deve-se perguntar:
1) O que há de progressista em uma política externa que ambiciona adentrar em uma instituição desmoralizada por servir aos interesses dos países imperialistas?
2) O que há de progressista em uma política externa que, para atingir um motivo nada progressista, aceita o papel de colaborador de armas do imperialismo na opressão a um povo sofrido e legitimando um golpe de Estado?
Internacionalização do capital nacional
Foi dito que Lula perdoou as dívidas que alguns países possuíam com o Brasil. O governismo aponta essa medida como um ato de generosidade e solidariedade do governo petista, ao passo que setores de direita e alguns ligados ao tucanato esbravejam ferozmente contra o que consideram uma absurda caridade realizada com o dinheiro do necessitado povo brasileiro.
Porém, quando investiga-se mais de perto percebe-se a inveridicidade de ambas as posições dominantemente difundidas.
Lula não perdoou os países devedores do Brasil, o que ele fez foi fechar acordos no sentido de converter as dívidas em benefícios (como isenções fiscais) para os empresários brasileiros atuarem nestes países, afinal como disse o Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim: "Quando se perdoa uma dívida, sempre deve haver um resíduo". (Site do Itamaraty - MRE)
E o "resíduo", depois de planejado (Notícias Lusófonas, 31/07/2004), foi devidamente coletado, principalmente no continente africano: Gabão (O Estado de São Paulo, 29/07/2004), Cabo Verde (Página Oficial do Governo de Cabo Verde, 04/11/2009) e Moçambique (Site do Itamaraty - MRE; G1, 21/07/09), entre outros. Na Bolívia o "perdão" de US$ 52 milhões (BBC Brasil, 09/07/2004) foi comemorado pela Odebrecht, que graças a ele, pôde voltar ao país vizinho e abocanhar um belo "resíduo". (Odebrecht Informa Online, 2007)
O "resíduo" da generosa caridade solidária do Governo Lula beneficiou os capitalistas verde-amarelos, como fica bem claro nas palavras do próprio Lula:
"Quando o Brasil financia uma empreiteira brasileira fazendo uma hidrelétrica na África, nós estamos exportando serviços estamos exportando engenharia, estamos ganhando dinheiro para o Brasil, e ajudando o país africano a se desenvolver. E eu acho que o Brasil não pode tratar o continente africano como se fosse uma coisa secundária, nós precisamos dar prioridade ao continente africano." (G1, 12/07/2010)
Estes "perdões" fazem parte de uma política de internacionalização do capital nacional estimulada pelo Estado brasileiro. O objetivo é expandir os negócios dos capitalistas tupiniquins para que eles possam se inserir de forma mais vantajosa na competitiva globalização neoliberal. O mercado africano, outrora praticamente desconhecido, se transformou em um dos grandes negócios para o empresariado brasileiro. Furnas, Odebrecht, Vale do Rio Doce, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, entre outras, abocanharam expressivas fatias desse filão. (Vargem, 2008, p.9)
Outra forma que vem sendo utilizada para a internacionalização do capital nacional são as linhas de financiamento do BNDES a países estrangeiros. O tomador do empréstimo fica obrigado a contratar empresas brasileiras para a realização dos serviços e comprar, igualmente, de empresas verde-amarelas, os materiais necessários para a realização destes serviços.
Essa política subimperialista teve a sua base elaborada pelo Governo Fernando Henrique Cardoso. No último ano do seu mandato, mais precisamente em 2002, o estatuto do BNDES foi alterado para impulsionar este projeto expansionista. (Alem; Cavalcanti, 2005, p.69-70)
Mas apesar da mudança ter ocorrido nesse ano, cabe salientar que já em 1999 o BNDES aportou um financiamento de US$ 400 milhões para a Odebrecht atuar na Venezuela. (UOL Opera Mundi: Notícias, 23/05/2010)
Bancos privados como o Itaú e o Bradesco têm feito parcerias com o BNDES para também se inserirem fora do país e por tabela beneficiar outras empresas brasileiras. Foi o caso da recente linha de crédito do Itaú feita em aliança com o BNDES para países do Mercosul que "visa estimular a venda de bens de capital produzidos no Brasil para países da América do Sul." (Veja, 23/08/2010)
Não apenas o BNDES, mas outras empresas públicas têm sido utilizadas para levar capitalistas brasileiros para terras distantes. "Empreiteiras investem em projetos no exterior na carona da Eletrobrás", é o título de uma matéria do "O Globo" de 8 de fevereiro de 2010.
O Banco do Brasil ajudou a levar o Bradesco para a África e o discurso do Presidente Lula na ocasião não deixa dúvidas quanto a estratégia expansionista levada a cabo pelo Planalto:
"Fiquei feliz com o acordo que o Banco do Brasil fez com o Bradesco e com o Banco Espírito Santo. Todo mundo sabe que é um desejo meu e que eu venho trabalhando para que os bancos brasileiros, não apenas os bancos públicos, mas os bancos privados, adentrem para a América do Sul, América Latina e África. Temos pretensões de ir para outros lugares, para que a gente tenha uma presença maior."
(...)
"O Brasil tem uma balança comercial razoável e a ida de um banco para lá vai facilitar a vida dos brasileiros que moram lá, dos nossos importadores e dos nossos exportadores." (Istoé Dinheiro, 09/08/2010)
Na América Central o empresariado verde-amarelo está adentrando ofensivamente:
"O avanço nos países centro-americanos e caribenhos veio acompanhado de oportunidades de negócios que ultrapassam US$ 1,5 bilhão em construção de estradas, hidrelétricas, termoelétricas, destilarias de biocombustível e fábricas de roupas e tecidos. Além de seu mercado interno, o Caribe oferece também acesso privilegiado aos EUA por meio de dois tratados de livre comércio já existentes: a Iniciativa com Base no Caribe (CBI, na sigla em inglês) e o Acordo de Livre Comércio com a América Central e a República Dominicana (Cafta-DR). Ambos permitem que produtos feitos na região entrem nos EUA com taxa zero. A ideia brasileira é fazer disso um trampolim livre de impostos para seus produtos." (O Estado de São Paulo, 15/11/2009)
"É uma tremenda oportunidade de expansão para os brasileiros (...)" afirmou Cléber Guarani, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas. (idem)
Até mesmo a miséria do povo haitiano é vista como oportunidade de bons negócios, em especial para a indústria têxtil.
"Outra área promissora é a de têxteis. O documento que norteia o avanço dos empresários do setor diz que, "na ausência de acordos de livre comércio com os EUA, a solução é obter acesso ao mercado americano com tarifa zero por meio de terceiros países que serviriam de ponte".
O coordenador da área internacional da Associação Brasileira de Indústrias Têxteis (ABIT), Domingos Mosca, esteve no Haiti no mês passado, liderando uma missão de empresários. (...) "Hoje, levamos 60 dias para levar de navio uma roupa da China para os EUA. Se usarmos o Haiti como ponte, faremos isso em dois dias de navegação." (idem)
Por esta ponte querem cruzar empresas como a fundada por José Alencar, vice-presidente do Brasil: "a Coteminas quer utilizar o Haiti como plataforma de exportação de confecção para os Estados Unidos (...)" (DefesaNet, 16/08/2008)
"Apesar da confusão institucional, o Haiti tem vantagens importantes para oferecer para uma empresa têxtil: proximidade e acesso diferenciado ao maior mercado do mundo, os EUA, e mão-de-obra barata. Uma costureira na capital Porto Príncipe recebe US$ 0,50 por hora. É uma remuneração inferior aos US$ 3,27 pagos no Brasil e muito abaixo dos US$ 16,92 dos EUA, conforme a consultoria Werner. O valor é inferior até aos US$ 0,85 pagos no litoral da China e perde apenas para os US$ 0,46 do Vietnã e os US$ 0,28 de Bangladesh." (idem)
"Para tornar viável o projeto no Haiti, a Coteminas precisa convencer os deputados americanos a alterar o Hope, acordo de ajuda humanitário, que significa "esperança" na sigla em inglês e equivale a um tratado de livre comércio. A empresa contratou o escritório de lobby Sandler, Travis & Rosenberg, de Washington. Na equipe a seu serviço, atuam pelo menos cinco especialistas com bom trânsito no Congresso e no Executivo." (idem)
Falando de forma bem clara:
"A Coteminas está fazendo lobby no Congresso dos Estados Unidos para viabilizar a construção de uma confecção no Haiti. A empresa quer convencer os deputados a flexibilizar as regras de um acordo de ajuda humanitária. O principal argumento é que o Brasil merece tratamento especial porque lidera a missão de paz da ONU no país mais pobre das Américas." (Ministério da Fazenda, 15/08/2008)
Há a intenção de internacionalizar até os usineiros, os novos heróis de Lula, no projeto de exportação da produção em países subdesenvolvidos do etanol. De olho na mão-de-obra barata e nas terras agricultáveis desses países, busca-se expandir a prática da monocultura de cana, sob o domínio de empresas brasileiras, para a África e o Caribe, além de vizinhos sulamericanos. Por ora, a empresa Guarani atua em Moçambique desde 2007 e a Odebrecht estava previsto para iniciar suas atividades em Angola em 2010. Mas quem mais lucrou no período foi a Dedini que aumentou em 660% as suas exportações nos últimos 5 anos. (Repórter Brasil, 09/12/2009)
Além da superexploração dos trabalhadores desses países ainda há registros de usinas de cana invadindo áreas destinadas a alimentos, como na Guatemala, e danos ambientais com perda de biodiversidade, elevado consumo de água e retirada de comunidades inteiras, como verificado em Moçambique. (idem)
O que haveria de progressista em uma política subimperialista de expansão do capital da burguesia brasileira?
As relações com alguns países
Aqui, mais do que em outras linhas da política externa, é onde o cinismo e a dissimulação mais se fazem presentes no debate. As relações que o Brasil têm mantido com países que entram em choque com os interesses do imperialismo, como Bolívia, Venezuela, Equador e Irã, entre outros, têm sido alvo de uma polêmica irracional, incoerente e dissimuladora.
Para a direita atabalhoada e alguns tucanos, o Brasil não deveria manter relações com estes países devido às suas políticas internas. Já os governistas apontam nestas relações a prova de que o Governo Lula é progressista. Novamente uma observação atenta mostra outro cenário.
À direita atabalhoada e alguns tucanos, algumas poucas lembranças são suficientes para mostrar a sua incoerência e cinismo:
"Em setembro de 1999, ele chegou para a sua quarta visita ao Brasil desde eleito. O Chanceler Felipe Lampreia listou os assuntos que estavam na pauta das conversas entre Chávez e Fernando Henrique. A cooperação operacional da Petrobrás com a PDVSA, pela qual a Petrobrás participaria da exploração e do refino de petróleo na Venezuela e, na outra via, a PDVSA iniciaria atividade na distribuição de combustíveis no Brasil. Outros negócios eram: um contrato de US$ 180 milhões para a construtora Norberto Odebrecht para a construção do metrô de Caracas e a participação da Embraer na concorrência para a venda de 30 aviões de treinamento militar para a Força Aérea Venezuelana. Vale destacar que, àquela altura o comércio bilateral entre os dois países havia pulado de US$ 800 milhões em 1994 para mais de US$ 2 bilhões, em 1998 e a Venezuela havia se tornado o segundo maior fornecedor de petróleo do Brasil. Apoiado pelo governo brasileiro na época do malsucedido golpe de 2002 e na greve dos petroleiros que desabasteceu o país, Chávez se mostrou agradecido e o tornou confiante da futura aliança. A sua estabilização no poder levou a uma intensificação da agenda bilateral e regional." (Fuccille, p.7-8)
Em 2002, a II Cúpula Sul-Americana, realizada em Guayaquil, no Equador, debatia a associação do Mercosul com a Comunidade Andina, do qual a Venezuela faz parte. O país vizinho desejava a adesão ao Mercosul, assim como o presidente brasileiro que discursou no encontro em nome dos presentes. (Vizentini, 2005, p.386-387)
Obviamente pode-se argumentar que Hugo Chávez ainda estava no início da sua gestão e que algumas medidas, supostamente autoritárias, ainda não tinham sido tomadas. Daí basta lembrar de um discurso de Fernando Henrique Cardoso, proferido em Lima, no Peru, em 27 de julho de 1995:
"Estamos reunidos em Lima, Presidentes de países irmãos latino-americanos, para testemunhar uma vez mais o ritual mais elevado da democracia consolidada em nosso continente: o início de uma nova fase de Governo, produto da vontade livre e soberana do povo.
(...)
Esta é uma das muitas ocasiões memoráveis para todos os democratas latinoamericanos: mais uma vez, em um país irmão e da mesma maneira renascido para a democracia, um ciclo de Governo chega ao final e outro se inicia, legitimado pelo voto popular. Reconduzido à suprema magistratura da Nação, o Senhor reveste, Senhor Presidente, a vontade própria do seu povo, e com ele assume o compromisso mais nobre que um ser humano pode receber, o de ser agente e guardião da soberania popular.
Falando em nome de nossos amigos, trago-lhe a palavra de uma América intrinsicamente democrática, à qual o Peru fortalece e dignifica. E essa América, Senhor Presidente, faz hoje o elogio do exemplo da cidadania e da maturidade política que outra vez um povo latino-americano – o povo peruano – nos deu. Quero falar em nome de uma América que sabe que não há alternativa fora da democracia. Porque a democracia é o instrumento fundamental que nos assegurará a paz, o desenvolvimento e a estabilidade política e econômica, sobre uma base firme e insubstituível de uma sociedade mais justa e equilibrada, e de um povo cidadão.
(...)
Ao reafirmar nossa condição de democracias atuantes e de economias dinâmicas, estáveis e abertas ao mundo, estamos também reafirmando o nosso direito, o direito da América Latina a uma participação decidida no aperfeiçoamento dos instrumentos e instituições que hão de garantir que, a um mundo mais globalizado corresponda a realidade de um mundo mais cooperativo, mais concertado, mais universalmente comprometido com a justiça, com o respeito aos direitos humanos, a proteção ambiental e ao desenvolvimento sustentável.
(...)
Portanto, ao cumprimentá-lo esta noite, Senhor Presidente, quero pedir a todos os presentes que me acompanhem em um brinde à prosperidade do povo irmão do Peru, à solidariedade fraterna entre os povos da América, à amizade que nos une e associa, à felicidade e ventura pessoal de Vossa Excelência e de sua família nesta nova jornada para conduzir o povo peruano ao seu melhor destino, ao destino que sonharam Bolívar, San Martin e Sucre." (Itamaraty - MRE, 2008, p.75)
O "agente e guardião da soberania popular", alvo do discurso acima, era Alberto Fujimori, governante que em 1992 deu um golpe de Estado, junto com as Forças Armadas, no qual fechou instituições como o parlamento e os tribunais de justiça, algo não visto nos "países a serem evitados" como a Venezuela e a Bolívia. O ex-presidente brasileiro ainda apoiou o terceiro mandato do peruano.
Na época a Revista Veja, hoje uma das maiores difusoras do discurso dos "países evitáveis", defendia as relações de Fernando Henrique com Fujimori alegando que as relações entre os países deveriam ser analisadas sob o prisma das vantagens obtidas não devendo ser levado em conta o que ocorre no plano doméstico dos países "parceiros", já que isso seria problema interno a ser resolvido pelo governante junto do seu próprio povo.
"A visita ao Brasil de Alberto Fujimori, o presidente do Peru, propiciou o tipo de nhenhenhém em que todo mundo mete a colher e não se chega a lugar algum.
(...)
O presidente da República pode convidar para uma visita oficial um chefe de Estado estrangeiro com a ficha suja como Fujimori? Pode e deve se isso for bom para o Brasil. A política externa é feita para atender aos interesses nacionais permanentes, acima dos eventuais inquilinos do poder, embora não, evidentemente, à deriva dos imperativos éticos. Se, (...), o ultradireitista Pat Buchanan for eleito presidente dos Estados Unidos, alguém imagina que Fernando Henrique Cardoso faça birra e se recuse a tratar de negócios com um sujeito reacionário como ele?
Da mesma maneira, um país supostamente pouco relevante como o Paraguai, seja ele presidido por Gengis Khan ressuscitado ou Madre Teresa de Calcutá, sempre exige atenções especiais de qualquer governo do Brasil." (Veja, 06/03/1996)
Desmascarada a direita atabalhoada e o tucanato restam as falácias do governismo. Aqui o olhar deve ser mais atento, até pelo o que a figura de Lula representa, e o foco deve se dar em dois aspectos das relações externas.
O primeiro aspecto é o do plano econômico. Aqui, seguindo a estratégia de internacionalização do capital brasileiro, o Governo Lula tem feito uma série de acordos com Bolívia, Equador, Venezuela, entre outros, altamente benéficos ao empresariado verde-amarelo. Em meio a polêmica do caso Brasil-Irã, onde o governo brasileiro terminou por assinar as sanções contra o país do Oriente Médio, foi notável a manchete publicada em veículos de comunicação que expressava o sentimento de uma comitiva de aproximadamente 80 empresários brasileiros que visitavam aquela região: "Se os EUA não querem o Irã, nós queremos". (IG, 12/04/2010)
O segundo aspecto, o do plano político, desmente de forma ainda mais contundente a falácia governista de uma política progressista. Aqui, utilizando-se de sua origem política, o Governo Lula tem atuado no sentido de domesticar a rebeldia dos processos mais radicalizados e conciliá-los com o imperialismo. Foi assim quando criou o "Grupo de Amigos da Venezuela" com os países que apoiaram o golpe de Estado contra Hugo Chávez em 2002. Foi assim quando, em 2005, enviou ao Equador um helicóptero para resgatar Lúcio Gutierrez, presidente derrubado em uma insurreição popular e que no momento do resgaste estava em sua casa cercada por manifestantes. Foi assim quando conseguiu evitar a condenação, pela Unasul, das bases americanas na Colômbia, conforme desejava os Estados Unidos. (BBC Brasil, 10/08/2009 e UOL Opera Mundi, 28/08/2009) Lembrando que as bases têm como motivo vigiar de perto países como a Venezuela, como deixou claro o documento do Pentágono enviado ao Congresso americano em 2009. (Folha Online, 02/11/2009)
Em 2005 a secretária americana, Condoleezza Rice, visitou o Brasil, em uma série de vindas sucessivas de representantes do Governo Bush, para manifestar sua preocupação com a Venezuela e pedir o apoio do Brasil, reconhecido como parceiro para a estabilização da região.
José Dirceu, na época o Ministro Chefe da Casa Civil, se dirigiu, às pressas, a Caracas, antes ainda do desembarque de Rice em Brasília, para levar as preocupações de Washington com as aquisições na área militar do governo venezuelano, no que teria retornado com a cômica resposta: "Chávez não me ouve, já mandei ele parar com isso." (AL/RS, 27/04/2005)
Em 2008 foram tornados públicos relatórios da Casa Branca com transcrições de conversas entre membros do governo brasileiro e do governo americano. Neles fica claro a atuação do governo Lula no sentido de tentar domesticar os governos que entram em atrito com os interesses de Washington.
"Lula disse que o Brasil está seguindo a política externa mais agressiva de sua história (citando a decisão de enviar tropas para o Haiti como prova do seu novo papel de liderança). Ele quer usar seu bom relacionamento com figuras regionais (p. ex., Lucio Gutierrez no Equador, Nicanor Duarte Frutos no Paraguai, Evo Morales na Bolívia) como uma força pela estabilidade e pela democracia na região." (Relato da conversa de Lula com John Snow em 2004)
"A secretária e Dirceu se reuniram, então, privadamente por quinze minutos, quando discutiram a Venezuela e a Bolívia. Em resposta ao comentário da secretária de que o Brasil precisa mandar uma mensagem clara ao presidente venezuelano Chávez, Dirceu afirmou que Lula já tinha aconselhado Chávez sobre a necessidade de ser mais cuidadoso em sua retórica (dizendo a Chávez que ele estava ‘brincando com uma arma carregada’) e focar em prioridades econômicas e sociais. (...) Em relação à Bolívia, Dirceu comentou que o Brasil tem Evo Morales e a situação nesse país ‘sob controle’." (Relato da conversa de Dirceu com Rice em 2005. Relatórios publicados pela Valor Econômico em 6 e 7/05/2008)
Não foi por acaso que Lula recebeu, em novembro de 2009, em Londres, o prêmio Chatham House, por ser o "motor-chave da estabilidade e da integração na América Latina." (Folha Online, 04/11/2009)
Não foi por acaso, também, que o Presidente Barack Obama chamou Lula de "o cara" em abril de 2009 no encontro do G20, assim como também não foi por acaso que veículos de comunicação burgueses como The Economist, Der Spiegel, Financial Times, Newsweek, entre outros, se desmancharam em elogios ao presidente brasileiro.
Em janeiro de 2010 o Fórum Econômico Mundial (fórum dos ricos) concedeu o prêmio de Estadista Global a Lula, o qual foi considerado "um modelo a ser seguido". (Folha Online, 20/01/2010)
E é este modelo de Estadista que a Secretaria de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, sugeriu que Hugo Chávez copiasse. (O Globo, 03/03/2010)
Para a pá de cal na falácia governista é preciso lembrar que em abril de 2010 o Governo Lula selou um obscuro acordo militar com o imperialismo que prevê a realização de "exercícios militares conjuntos", "operações internacionais de manutenção de paz", "participação em cursos teóricos e práticos de treinamento, orientações, seminários, conferências, mesas-redondas e simpósios organizados em entidades militares e civis com interesse na Defesa" (outra Escola das Américas?) e uma intrigante "cooperação em quaisquer outras áreas militares". (DefesaNet, 12/04/2010)
O que há de progressista em uma política externa que se baseia no subimperialismo e na colaboração direta com o imperialismo no resguardo dos seus interesses na região e no amansamento dos processos mais radicalizados e anti-imperialistas?
Considerações finais
Desfeitas as confusões dominantes difundidas tanto pelo governismo quanto por setores de direita atabalhoados e alguns tucanos, percebe-se então que, a política externa do Governo Lula não tem nada, absolutamente nada, de progressista.
Em alguns pontos nota-se uma continuidade e aprofundamento da política elaborada por FHC. São os casos da busca da vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e da internacionalização do capital brasileiro no exterior estimulada pelo Estado.
Tanto em um quanto em outro Lula foi mais ousado do que FHC: lidera a invasão do Haiti, diferente do Timor Leste onde o Brasil foi uma força auxiliar; e aplicou a modalidade dos "perdões" das dívidas dos países para expandir o capital nacional para o exterior, além de destinar vultuosos recursos do BNDES para este mesmo fim.
Nas relações com os países em atrito com os EUA cumpre o papel de uma espécie de gerente representante dos negócios do imperialismo na região, buscando apagar a chama da radicalidade destes processos e conciliá-los com o imperialismo, ao mesmo tempo em que expande os negócios da burguesia brasileira nestes países via acordos, "perdões" e financiamentos do BNDES.
Como foi dito no início a política externa de um governo não está dissociada da política interna do mesmo, ela é o seu complemento. Alguns reconhecem que a política interna de Lula foi uma continuidade de FHC, mas dizem que a sua política externa foi progressista. É um grande equívoco analítico!
Como disse Armando Boito Jr, professor de Ciência Política da Unicamp, a política externa de Lula é uma extensão do seu modelo econômico interno. (Boito Jr. A burguesia no Governo Lula, p.256) Assim, se na economia o governo não é progressista como poderia sê-lo em um plano externo que busca complementar àquela?
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Fontes consultadas
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