1) O
ajuste fiscal não “coloca a casa em ordem”
Desde o
estouro da crise financeira de 2008 o ajuste fiscal tem sido a
política das classes dominantes para tentar manter o processo de
acumulação e reprodução do capital. A lógica consiste em cortar
direitos do andar de baixo e recursos dos serviços públicos para
sustentar dívidas públicas suspeitas, cuja quase totalidade delas
nunca foram auditadas. Assim, o ajuste fiscal atua como um Robin Hood
ao contrário.
É
preciso compreender que a questão ultrapassa a moralidade, ainda que
o funcionamento do sistema esteja eivado de imoralidades. Não se
trata simplesmente de uma maldade praticada por sadismo. As classes
dominantes estão a cuidar dos seus interesses de classe e da sua
formação social, e tentam mascarar isso com discursos ideológicos
como o de que o ajuste fiscal é um “remédio amargo” necessário
para “colocar a casa em ordem”.
Como é
facilmente constatável o “remédio amargo” só é servido para o
andar de baixo, e ainda assim de forma forçosa, enquanto que para o
andar de cima aumentam as doses de “melzinho na chupeta”. A
população tem perdido empregos, salários, aposentadorias e
serviços públicos essenciais ao passo que percebe que grandes
bancos e grandes empresas recebem cada vez mais dinheiro público e
outras benesses (isenções fiscais, financiamentos a fundo perdido,
subsídios, etc) e que os políticos que alardeiam crise e pedem
paciência ao povo também ampliam seus privilégios.
Nesse
cenário fica difícil do povo manter a calma e a instabilidade
social, política e econômica se apresenta estremecendo os alicerces
da “casa em ordem”. Assim, o ajuste fiscal escancara que seu
objetivo é manter em ordem os lucros e privilégios do andar de cima
e não organizar as contas públicas - tanto que a dívida pública
não só não é auditada como as próprias medidas de ajustes dos
governos, como a PEC dos gastos de Temer, permite a elevação da
dívida pública em um mecanismo similar ao que foi utilizado na
Grécia.
O atual
capitalismo globalizado e financeirizado necessita do ajuste fiscal
para manter-se respirando. Sua crise não é apenas cíclica, de
acumulação, mas estrutural, onde o desenvolvimento do sistema criou
obstáculos a si próprio para poder reproduzir-se. As reformas estão
sendo desmontadas e abolidas e o espaço para remendos estão
praticamente fechados. Não é casual que aqueles cujo o horizonte é
reformar o capitalismo critiquem o ajuste fiscal na oposição para
logo em seguida transformarem-se nos seus mais fiéis guardiões no
governo, como atesta a experiência grega do partido Syriza.
No Brasil
a propaganda ideológica das classes dominantes apresentava o
Espírito Santo como um caso bem sucedido de ajuste fiscal, exemplo a
ser seguido pelos demais Estados do país [1]. A greve da Polícia
Militar (PM) desmoralizou completamente essa propaganda e demonstrou
que tal ajuste foi realizado às custas dos seus salários e da
precarização das suas condições de trabalho, afetando assim a
qualidade do serviço que prestam, comprometendo-o.
2) A
culpa do caos não é da greve da polícia
O governo
do Espírito Santo e a grande mídia tentaram imputar à greve da PM
o caos social que se verificou. Na verdade o movimento grevista
apenas escancarou a violência que vem sendo camuflada por ser
administrada na “normalidade” do cotidiano via intervenção
policial.
A
violência urbana tem causas estruturais e sociais não sendo a
polícia nem a culpada e tampouco a solução para o problema, como
bem reconheceu o homem das fracassadas Unidades de Polícias
Pacificadoras (UPPs), José Mariano Beltrame:
“A polícia não é solução do problema. Ela é parte da solução
do problema. E esta é a visão sistêmica que tem de se ter do que é
segurança. Segurança não é polícia. Dizer que segurança é
polícia é uma miopia, porque se isso for assim vamos precisar de
verdadeiros exércitos chineses nas ruas do Brasil.” [2]
Insuspeito
de ser partidário da esquerda ou de ser militante dos Direitos
Humanos, Beltrame crava:
“Quanto mais cidadania você der para uma população, menos
polícia você precisa.”
“A luta contra a droga é irracional.” [ibidem]
O
parlamento brasileiro nunca aprovou uma única reforma social que
promovesse a cidadania. No máximo algumas políticas públicas
esporádicas são implementadas. E com as medidas de ajustes fiscais
as parcas medidas de promoção da cidadania sofrem cortes que as
inviabilizam ou são abolidas.
Empregos,
escolas e hospitais são fechados. Bolsas de estudos e financiamentos
estudantis são cortados. Vagas em universidades são encerradas. A
aposentadoria está em risco. As oportunidades, em um país já
escandalosamente desigual, escasseiam ainda mais para as classes
populares.
A chamada
“guerra às drogas” que já estava perdida antes se transforma em
um verdadeiro WO com o ajuste fiscal. O sistema prisional caótico,
que não recupera os detentos, está empilhando pessoas por terem
sido encontradas com drogas – às vezes quantidades pequenas
[3][4]. A legalização, que poderia aumentar a arrecadação e
reduzir a violência [ibidem], sequer é cogitada. Pelo contrário, o
ex-Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, acredita ser possível
erradicar a maconha no país [ibidem].
Eis os
elementos promotores do caos! Nenhum deles têm relação com a
polícia, esteja ela nas ruas ou aquartelada.
3)
Desmilitarizar a polícia não é aboli-la
A greve
da PM colocou boa parte da direita brasileira em uma tremenda sinuca
de bico. Contrários às greves, defensores do ajuste fiscal e ao
mesmo tempo dizendo-se amigos dos policiais, boa parte dos quadros da
direita tiveram que sair pela tangente disparando contra a esquerda e
nesse sentido atacando a pauta da desmilitarização da polícia
apresentando-a como a abolição de toda a polícia.
Como o
próprio nome indica desmilitarizar é deixar de ser militar, ou
seja, desvincular do Exército as polícias que estão a ele ligadas,
como é o caso da PM do Espírito Santo, tornando-a uma instituição
civil, o que ampliaria os direitos dos policiais, como o de livre
expressão, organização e de exercício de greves [5]. E tornar uma
instituição civil não tem nada que ver com desarmar a polícia. É
por ter essa compreensão que 77,2% dos policiais declararam-se
favoráveis à desmilitarização em pesquisa realizada em 2014 pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo Centro de Pesquisas
Jurídicas Aplicadas da Fundação Getúlio Vargas e pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública [ibidem].
O chefe
último das polícias estaduais são os governadores de Estado. São
eles que indicam os comandantes das polícias. A estrutura militar
submete os policiais às decisões políticas sem o direito de
expressão ou contestação sendo obrigados a cumprir as mais
absurdas ordens. Pior ainda: são severamente punidos em casos de
desobediência ou revolta, como está ocorrendo no Espírito Santo
[6].
A
situação é tão absurda que mesmo políticos de direita, como Jair
Bolsonaro e Flávio Bolsonaro, reconhecem que essa estrutura acaba
favorecendo o abuso político contra os policiais. Mesmo assim eles
se recusam a defender o fim dela, alegando que há ocasiões em que a
paralisação dos policiais seria inadequada: “como em um
reveillón”, conforme declarou Flávio em debate com Marcelo
Freixo no Facebook do jornal Extra no dia 10/02/2017.
Ocorre
que as ocasiões em que uma categoria entra em greve tem relação
com os ataques dos governos ou patrões, seja um arrocho salarial,
perda de um direito ou piora nas condições de trabalho. Em 2014, os
garis fizeram uma exitosa greve em pleno carnaval com grande apoio e
simpatia popular. Ao alegar que há ocasiões inadequadas para uma
paralisação eximi-se de responsabilidade os verdadeiros culpados e
transfere a culpa para aqueles que resistem. Dessa forma, os
Bolsonaros condenam os políticos no atacado para absolvê-los no
varejo.
A
responsabilidade última por uma greve no setor público é do
governo. No caso do Espírito Santo de um governo que vem aplicando
há anos um brutal ajuste fiscal. Bolsonaros, Kim Katiguiri, Fernado
Holiday, entre outros, defendem as políticas de ajustes fiscais e
não têm muito o que oferecer aos policiais que se rebelaram contra
as condições produzidas pelo ajuste a não ser discursos histéricos
contra os direitos humanos, mentir sobre a desmilitarização e
apelar para que trabalhem independente das circunstâncias.
Ao tentar
responsabilizar a esquerda pela ausência de policiais nas ruas do
Espírito Santo a direita apela para uma ridícula e desesperada
tática de tentar fugir das consequências das próprias políticas
defendidas. Se alguém “aboliu” a PM capixaba foi o ajuste fiscal
e não a esquerda ou a desmilitarização.
4) O
Exército não é capaz de combater a violência
Muitos
acreditam de forma honesta que o Exército pode cumprir de forma
exitosa o papel da polícia e assim extirpar a violência urbana.
Ora, se
nem a polícia, que tem preparo, pode ser encarada como a solução
definitiva de um problema cujas raízes são sociais e estruturais
tampouco pode o Exército – cuja atribuição e treinamento têm
outros objetivos.
A
continuidade dos saques, roubos e mortes no Espírito Santo [7],
mesmo com as presenças do Exército e da Força Nacional, constituem
refutações práticas da crença de que os milicos podem resolver
esse complexo problema social.
__________________________________________________________
[1]
"Ajuste do Espírito Santo é exemplo de lição de casa para
Estados endividados", por Samuel Pessôa. 25/12/2016.
[2] "A
polícia é só parte da solução do problema", diz José
Mariano Beltrame. Entrevista ao Jornal Zero Hora de Porto Alegre.
05/11/2016.
[3]
Insignificância: homem é condenado pelo STJ por tráfico de 0,02g
de maconha. 22/06/2015.
[4]
Observações sobre a violência no Brasil. 08/01/2017.
[5] 5
fatos que você precisa conhecer antes de falar sobre a
desmilitarização da polícia.
[6] PM do
ES deve demitir 161 policiais envolvidos em motim. 13/12/2017.
[7]
Grande Vitória tem tiroteio e saques a comércios mesmo com
Exército. 07/02/2017.
.