domingo, 25 de maio de 2014

A criminalização explícita das lideranças Kaingang no RS

.

Roberto Antonio Liebgott, vice-presidente do CIMI-RS




O objetivo deste texto é apresentar algumas das contradições que envolvem a prisão de cinco indígenas Kaingang, no estado do Rio Grande do Sul, procedida após o conflito em Faxinalzinho, que lamentavelmente resultou na morte de duas pessoas. Antes, porém, tomo a liberdade de transcrever parte do que ouvimos dos Kaingang, durante as visitas que realizamos aos líderes indígenas no presídio:

“Aqui nós somos muito bem tratados pelos presos. Nós fomos trazidos pra cá e ficamos muitas horas de pé, algemados e com o rosto na parede. De vez em quando um policial federal passava e torcia os nossos dedos e dizia que a gente ia pagar por tudo o que fizemos. Eu nem sei porque fui preso, não fiz nada. No dia do conflito eu estava com meu pai em Nonoaí, no banco, na Caixa Econômica Federal, ele foi sacar o dinheiro da aposentadoria. Eu estava com muito medo e não sabia o que ia acontecer aqui dentro do presídio. Eu estava com muita fome e sede. Ficamos muito tempo sem comer e sem beber água. Eles nos separaram em dois grupos, eu (Celinho), o Nelson e o Romildo fomos levados para a galeria dos trabalhadores do presídio e o Deoclides e o Daniel foram pra ala dos evangélicos. Quando nos levavam lá pra galeria o medo aumentou. Mas ali fomos bem recebidos. Os presos perguntaram se a gente queria café e depois mandaram esquentar a comida e nos disseram para comer. Depois nos deram roupa, a nossa roupa estava toda suja. Aqui dentro nos trataram com dignidade”.
(Celinho de Oliveira)

“O pessoal aqui nos acolheu muito bem. Tudo o que sofremos lá fora, da polícia, aqui foi o contrário. A gente estava só com a roupa do corpo. Aqui, quando chegamos, os presos procuraram roupa que poderia nos servir. Ganhamos calça, camisa, blusa, é que está ficando frio. Eles nos deram comida, nos trataram com respeito. Pode dizer lá para as nossas esposas que estamos bem. A gente sabe que eles estão sofrendo lá, que não sabem o que está acontecendo, mas diz pra eles que a gente está bem. Que se mantenham firmes, isso aqui vai passar. A gente sabe que eles queriam prender qualquer um da nossa comunidade, eles precisavam prestar conta pra sociedade. Nós caímos numa emboscada porque confiamos nas autoridades. Mas agora eles precisam se unir (os Kaingang) ainda mais. Não podem aceitar negociação. Se precisar ficar aqui 30 anos a gente fica. Eu suporto o peso da injustiça, suporto a prisão, nem que seja por 30 anos, se as nossas terras forem demarcadas”.
(Deoclides de Paula)

A prisão temporária de sete indígenas Kaingang da terra Kandóia, Rio Grande do Sul, no dia 9 de maio – quando estes participavam de uma reunião promovida por integrantes do governo do estado do Rio Grande do Sul, da prefeitura municipal de Faxinalzinho e da Fundação Nacional do Índio (Funai) para dialogar sobre os conflitos entre indígenas e agricultores – foi eivada de irregularidades. De acordo com o relato feito pelos indígenas aos seus advogados de defesa, as prisões foram realizadas de forma truculenta e irregular, sendo que os mandados de prisão não foram apresentados no ato de detenção dos sete Kaingang, que puderam tomar conhecimento do documento apenas horas mais tarde, em Passo Fundo. Dentre os sete presos, dois acabaram sendo liberados em função de absoluta falta de elementos que justificassem uma prisão temporária.

Os demais Kaingang – Deoclides de Paula, Nelson Reco de Oliveira, Daniel Rodrigues Fortes, Celinho de Oliveira e Romildo de Paula – foram removidos para a Superintendência Regional da Polícia Federal, onde permaneceram até serem transferidos para o Presídio Estadual do Jacuí (PEJ). Registra-se, nesta transferência, mais uma irregularidade, posto que o presídio do Jacuí é destinado a abrigar condenados pelo Poder Judiciário, o que não é o caso dos líderes Kaingang, que foram presos temporariamente.

Evidencia-se também, neste processo, uma tentativa de dificultar o acesso dos advogados dos Kaingang ao inquérito policial, que acabou sendo disponibilizado pelo delegado da Polícia Federal, Mário Vieira, somente dias depois, quando os advogados acionaram a Justiça Federal.

Registra-se ainda que o delegado tem dificultado o acompanhamento dos advogados a alguns procedimentos durante a investigação, a exemplo das oitivas dos índios, realizadas no dia 14/05/2014 na Superintendência Regional da Polícia Federal do Rio Grande do Sul. Neste caso, os advogados deveriam ter sido comunicados com antecedência, mas o delegado informou que as oitivas não seriam realizadas no dia proposto, uma manobra que, se não tivesse sido revertida, resultaria em prejuízo para os indígenas detidos. O fato foi denunciado ao delegado da Polícia Federal, Cesar Leandro Hubner, de plantão na SR/DPF/RS no dia 14/05, sendo então solicitado o afastamento do delegado Mário Vieira do caso, entendendo-se que este tem agido de modo parcial.

Além disso, o delegado também se manifestou de forma inadequada na imprensa, outorgando a si o poder de julgar quando afirmou publicamente a culpa dos Kaingang pela prática de crime hediondo, informando que estes ficarão presos por um período de 30 a 50 anos. Não bastasse isso, declarou que as prisões seriam um “presente de dia das mães”.

Alguns pedidos formalizados até aqui pelos advogados dos Kaingang foram negados, notadamente a solicitação de relaxamento das prisões, com a custódia dos índios submetida à Funai (previsão legal estabelecida pelo Estatuto do Índio, Lei 6001/1973) e o afastamento do delegado Mário Vieira da condução do inquérito.

Os fatos demonstram que a autoridade policial, responsável pelo inquérito, vem agindo contra os preceitos éticos da própria polícia, atuando com parcialidade e constituindo-se, dentro do inquérito, como “justiceiro” ao invés de investigador. Ao que parece, a autoridade policial quer “prestar contas” para a sociedade e atenuar a comoção social gerada pelo conflito e pelas mortes, o que pode comprometer o processo de busca e investigação rigorosa de provas acerca da autoria dos crimes.

As lideranças indígenas encarceradas no Presídio de Jacuí argumentam insistentemente que as suas prisões foram arbitrárias e ocorreram num contexto de emboscada promovida por agentes dos governos estadual e federal, com o objetivo de criminalizar aqueles que lutam pela demarcação das terras. Deoclides de Paula, cacique da terra Kandóia e representante indígena do Sul do país na Comissão Nacional de Política Indigenista, disse: “Eu suporto o peso da injustiça, suporto a prisão, nem que seja por 30 anos, se as nossas terras forem demarcadas”.

Com esse espírito, cinco líderes Kaingang passam os dias dentro de um presídio no Rio Grande do Sul aguardando que os brancos tenham bom senso, respeitem a lei e efetivamente promovam a justiça.


24/mai/2014, 6h22min


Extraído de:


.