segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Os marxistas, a MMT e a ACD

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Tem se intensificado um acalorado debate em uma parcela da vanguarda militante e intelectual no Brasil envolvendo a Teoria Monetária Moderna (MMT, sigla em inglês) e a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) com impactos políticos já verificáveis, tendo alguns candidatos defendido suas propostas em processos eleitorais. Ambas combatem o ajuste fiscal neoliberal.

O centro da MMT é a defesa de outra política monetária, tendo em vista que as injeções trilionárias de dinheiro na economia de países centrais após a crise de 2008 não fez a inflação explodir, conforme prevê os manuais monetaristas liberais. Os países que emitem a própria moeda poderiam se financiar com impressão de dinheiro, até um certo limite, e assim realizar políticas sociais e retomar a atividade econômica.

A ACD denuncia a existência de um “sistema da dívida” fruto das relações entre políticos e o capital financeiro cujo objetivo seria garantir recursos para o pagamento da dívida pública através de reformas liberais, privatizações, legislações e medidas que geram cortes nas áreas sociais. Esse “sistema” seria fraudulento e por isso as dívidas públicas deveriam ser auditadas.

Tendo em vista que estamos diante de duas propostas que se mantêm nos limites do capitalismo como então os marxistas devem se localizar?

Precisamos partir da conjuntura vivida e esta nos diz que estamos diante de uma crise do capital. É o momento oportuno para buscar a superação desse modo de produção. Como indicou Marx:

Nesta prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade burguesa se desenvolvem tão exuberantemente quanto é possível no seio das relações burguesas, não se pode falar de uma verdadeira revolução. Uma tal revolução só é possível nos períodos em que ambos estes factores, as modernas forças produtivas e as formas burguesas de produção entrem em contradição entre si. (…) Uma nova revolução só é possível na sequência de uma nova crise. (...)” [1]

Isso não significa que os pais do socialismo científico eram meros defensores do “ataque frontal”, como alegam alguns por aí. Eles achavam necessário apoiar as lutas defensivas e por melhorias parciais desatadas pela classe trabalhadora contra a burguesia para o acúmulo de forças:

Se em seus conflitos diários com o capital cedessem covardemente ficariam os operários, por certo, desclassificados para empreender outros movimentos de maior envergadura.” [2]

Mas para esse acúmulo de forças não se tornar uma condição infinita o papel das direções políticas era fundamental. Por isso propuseram, em várias ocasiões, medidas reformistas desde que estas carregassem em si um potencial transitório para o modo de produção socialista, como constata-se no Manifesto Comunista, apenas para ficar em um exemplo. [3]

A partir desses critérios, qual das duas propostas pode ajudar em uma estratégia socialista?

Foi a MMT que iniciou a polêmica com a ACD. O objetivo é evitar que as pessoas defendam a auditoria da dívida e reverter os que defendem. Em 2018, o candidato presidencial do PSOL, Guilherme Boulos, assessorado pelos “mmtistas” David Deccache e José Luis Fevereiro, não defendeu a auditoria, bandeira histórica do partido.

A MMT acusa a ACD de ser contra a dívida pública, o que é uma inverdade já que a ACD quer regularizá-la para evitar desvios. Tal proposta é apresentada pela MMT como “medida de ajuste” que “criminaliza a dívida”, a fraude já verificada na dívida é chamada de “teoria da conspiração” e, além disso, a MMT defende as “operações compromissadas” e nos chama a confiar na “auditoria” das instituições corrompidas do regime. [4]

Há quem tente dar umas pinceladas de marxismo na MMT. Porém, se a coerência fosse mantida as caracterizações de Marx e Engels sobre a dívida pública seriam facilmente enquadradas como “criminalização da dívida” a serviço do ajuste neoliberal [5]. Mas as incongruências não param por aí. Fevereiro tem a seguinte elaboração:

(...) Sem recuperar o crescimento econômico e retomar o emprego, não se consolida uma nova correlação de forças entre trabalho e capital no conflito distributivo. Sem retomar o crescimento econômico, não se acumula força para avançar em reformas estruturais capazes de impor derrotas efetivas á economia politica do capital.” [6]

A única forma de “impor derrotas efetivas à economia política do capital” é com a superação do capitalismo e isso não será alcançado retomando o crescimento econômico, como vimos em Marx e como nos mostra a história das revoluções. Com emprego e dinheiro no bolso as pessoas não se lançam em lutas insurrecionais. Esta poderia vir quando o ciclo de crescimento se esgotasse só que se daria contra o governo de Fevereiro por ser o gestor capitalista de plantão. E se não houvessem forças políticas anticapitalistas organizadas e com influência de massas tal descontentamento popular provavelmente seria canalizado pela direita.

Fica claro que a gestão monetária da MMT é incapaz de impulsionar um movimento anticapitalista. Não é por acaso que o banqueiro André Lara Resende [7] e especuladores de Wall Street [8] estão aderindo a ela. Mas mesmo nos marcos do capitalismo ela possui limitações graves: não tem uma linha para os Estados que não emitem a própria moeda; ignora as restrições impostas pelo capital internacional aos países periféricos, como o Brasil (incluindo o limite de endividamento); assim como o papel dos mesmos na dinâmica global do capitalismo.

A ACD tem trabalhos realizados no Equador, na Grécia e até no Brasil, sendo que nestes dois últimos países os governos não tomaram nenhuma providência diante dos apontamentos de fraudes constatadas. Dilma, em 2016, e Temer, em 2017, vetaram propostas de auditoria da dívida da União.

Ao mostrar didaticamente a trama do capital e sua ofensiva sobre o orçamento público e os povos, a ACD incomoda banqueiros e especuladores que, não raramente, a caluniam e tentam desacreditá-la, incluindo o pagamento de colunistas em jornais da grande mídia - ela própria parte da trama.

Em um mundo afogado no capital fictício, tendo a dívida pública como uma das principais fontes de sustenção do rentismo garantida com o ajuste fiscal neoliberal e um capitalismo em crise estrutural cada vez mais profunda, a proposta da ACD é um instrumento com potencial de mobilização para uma luta anticapitalista. Não há dúvida de que os marxistas devem estar com ela.


Leia também:

O “novo” e o “velho” capitalismo (parte 2). João Ricardo Soares. Teoria & Revolução, 29/05/2019.

Marxismo vs. Teoria Monetária Moderna. Adam Booth. Esquerda Marxista, 02/10/2019.

A Teoria Monetária Moderna não está ajudando. Doug Henwood. Jacobin Brasil, 25/06/2019.


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[1] MARX, Karl. As Lutas de Classes em França de 1848 a 1850. IV — A abolição do sufrágio universal em 1850.

[2] MARX, Karl. Salário, Preço e Lucro. 14 - A luta entre o capital e o trabalho e seus resultados.

[3] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. II - Proletários e Comunistas.

[4] Em duas postagens na Página “mmtista” Meu Professor de Economia no Facebook, do dia 02/02/2020, José Luis Fevereiro fez os seguintes comentários, em polêmica com outros leitores da página (reproduzimos com os erros de digitação):

Francisco Cícero nada há a ser auditado. Todas as informações relevantes são públicas. Igual á auditoria do BNDES. Gastou-se 48 milhões para nada. Fake News e teorias da conspiração saem caro

Lise Longo sim. Estão errados. O problema real sempre foi a taxa de juros elevada durante décadas. Esse sempre foi o problema. O resto é teoria da conspiração

Teixeira Ffas bobagens. Operacoes compromissadas são mecanismo de fixação da taxa basica de juros. Nada de errado com isso. política de esquerda é ampliar gastos públicos com emissão de moeda e emissão de dívida

Claudio Siqueira não. Tudo isso é público. Não há dados ocultos. Remunerar a sobra de caixa é a forma do banco central ficar a taxa básica de juros sem o que a taxa cairia a perto de zero com consequências especulativas incontroláveis. Isso é fazer política monetária. O problema é que por décadas a nossa taxa básica foi excessivamente alta

[5] MARX, Karl. O Capital. A Chamada Acumulação Original. 6. Génese do Capitalista Industrial.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas. Março de 1850.

[6] Plínio Jr e os diagnósticos errados. José Luis Fevereiro, 07/02/2018.

[7] RESENDE, André Lara. Consenso e Contrassenso: deficit, dívida e previdência.

[8] Modern Monetary Theory Finds an Embrace in an Unexpected Place: Wall Street. The New York Times, 05/04/2019.



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