Por Silvio Luiz de Almeida.
Os gritos de
“macaco” e “preto fedido” dirigidos ao goleiro Aranha, do Santos – um
dos poucos goleiros negros nos times de ponta do futebol mundial –
colocaram, mais uma vez, o racismo no esporte no centro do debate
público. Vítima de ofensas racistas por parte da reincidente torcida do
Grêmio, Aranha contou em entrevista concedida após o fim da partida que
tentou alertar o árbitro, mas foi ignorado. Na súmula do jogo não foi
feita menção ao episódio e o assistente, por sua vez, relatou que “nada
houve de anormal”.
Assim que o caso ganhou repercussão nacional, as reações do público, da imprensa e das entidades esportivas seguiram o script usual:
declarações de dirigentes, treinadores e jogadores condenando a atitude
racista da torcida do time gaúcho; o árbitro emendando posteriormente a
súmula para incluir o ato racista, com o intuito de se precaver de
críticas e de eventual responsabilização jurídica; o linchamento moral
de uma torcedora em particular que, para seu azar, foi flagrada pelas
câmaras de TV enquanto gritava na direção do goleiro santista. A isso se
seguiram reportagens mostrando o quanto a atitude da jovem torcedora
gremista surpreendeu seus “amigos negros” (nestes casos, quase sempre
aparecem amigos negros para relativizar o racismo), além, é claro, de
especulações sobre como a justiça desportiva trataria “esse” caso, como
se casos de racismo fossem ocorrências inusitadas.
Para se
entender a dinâmica macabra com que estes eventos vêm se repetindo, é
necessário entender que o racismo é um processo e não um ato ou conjunto
de atos isolados. Assim, os atos racistas são apenas o modo como o
racismo, enquanto processo que reafirma a inferioridade de negros e
negras, manifesta-se na vida social. Por isso, é possível identificar
determinados atos de violência, ainda que isolados, como manifestações
de um tipo específico de relação de dominação a que chamamos de racismo.
Mesmo
ocorrendo cotidianamente, é curioso que atos de racismo sejam tratados
como atos isolados. É com freqüência que a imprensa nacional e
internacional noticia casos de jogadores de futebol negros que são
agredidos por torcedores. E apesar do relato de diversos atletas de que
nas partidas ofensas raciais são corriqueiras, as entidades
organizadoras, as autoridades governamentais, a imprensa e até os
próprios jogadores tratam os sucessivos episódios como “casos isolados”,
que jamais “refletem a postura dos clubes e da maioria da torcida”.
Todavia, a ideia de excepcionalidade das agressões racistas não resiste a
uma simples olhadela no noticiário: o caso do goleiro santista é mais
um dos inúmeros “atos isolados” de agressão racial no futebol ocorrido
somente este ano.
Tratar atos racistas como isolados revela-nos um dos efeitos mais nefastos do racismo: a ocultação e a negação de
seu caráter processual e sistêmico. Com isso, o racismo aparece
enganadoramente como tendo origem no sujeito que pratica o ato racista e
não como um elemento estruturante das relações sociais. Surge então a
tendência a fulanizar o racismo, a atribuir culpa individual, a
julgar o problema como inerente à natureza humana ou creditá-lo a um
desequilíbrio momentâneo do sujeito racista, sem que se cuide da forma
como as relações sociais são permeáveis ao racismo. Esse tipo de
abordagem do racismo equivale a tratar apenas o sintoma sem pensar na
doença. E o sujeito racista é um sintoma do racismo. Portanto, não é simplesmente o racista que dá origem ao racismo, mas é o racismo que cria o racista.
Com isso
quero dizer que o racismo se reproduz porque encontra condições
favoráveis para isso. Não é só a violência de quem chama negros e negras
de macacos que configura a processualidade do racismo, mas, igualmente,
a omissão de quem nada faz para interromper o andamento desse processo.
O racismo está principalmente nos silêncios, nas ausências e nos
“não-ditos”. Diante da ofensa racista, o rosto que se vira covardemente
para o lado contrário, a cabeça que se abaixa na vergonha conveniente e o
sorriso de cumplicidade formam o “vazio” por onde escorre o sangue da
vítima que irá nutrir o monstro do racismo. É a hesitação diante do
pedido de socorro e é o calar-se diante da ofensa que permite ao racismo
se enraizar nas relações, normalizando a destruição do corpo e o tormento da alma.
Nesse
sentido, pode-se dizer que o futebol profissional se alimenta do racismo
e da violência. O estímulo à competitividade sem limites e a busca de
lucros extraordinários são parte da realidade do esporte contemporâneo,
romantizada pela falácia do “amor à camisa”, do fair play e pelas pífias
declarações de “diga não ao racismo”, como se racismo fosse uma questão
moral e não uma questão de poder. As inúmeras denúncias de corrupção
nas principais entidades organizadoras, assim como a persistência do
racismo, demonstram que se está diante de um problema que deita suas
raízes mais profundas nas grandes disputas políticas e econômicas do
nosso tempo.
Nas análises
da relação entre o racismo e as práticas esportivas tem-se
frequentemente desconsiderado as relações com a ordem econômica. Há que
se observar que a mercantilização do futebol empurrou a disputa
esportiva para além dos campos. O torcedor-consumidor é mobilizado pelo
clima de disputa e não pela beleza do futebol. A rivalidade entre
torcidas que, em última instância, é a extensão da concorrência
mercantil entre clubes e empresas patrocinadoras, faz com que acima da
vitória de seu time, o torcedor busque seu maior regozijo na derrota e
no lamento adversário, transformado em inimigo por narrativas que,
repetidas à exaustão, criam rivalidades aparentemente irracionais e
insuperáveis: corintianos x palmeirenses, brasileiros x argentinos,
flamenguistas x vascaínos, atleticanos x cruzeirenses, colorados x
gremistas etc. Muitas destas rivalidades, tão úteis para aumentar a
audiência de jogos e “mesas redondas”, além, é claro, dos lucros, são
ideologicamente sustentadas por antagonismos de classe, de raça e de
origem social, surgidos fora dos campos de futebol. É desse modo que
nacionalismos, regionalismos e racismos ajudam a demarcar a diferença
entre torcidas, cujos integrantes pagarão ingressos caríssimos para
adentrar as “arenas” cada vez mais exclusivas e elitizadas, com suas
camisetas e acessórios e com seus hinos e cânticos, para eventualmente
fazer de modo livre o que não seria visto com bons olhos na vida
cotidiana, como, por exemplo, chamar de “macaco” um desconhecido que
nunca lhe fez mal e que, provavelmente, nunca mais encontrará na vida.
Também é
interessante notar que nos países do capitalismo central, sofisticados
aparatos de vigilância e repressão conseguem limitar a externalização de
impulsos mais extremos por parte da torcida; mas ao mesmo tempo em que
parte da violência física entre torcidas está contida, o racismo se
torna um problema cada dia mais presente.
O futebol
deu ao racismo um tom “recreativo”, na feliz expressão do professor
Adilson Moreira, ao se referir a um tipo de violência racial vista como
natural e aceitável em momentos de descontração. Assim, o xingamento da
torcida passa a fazer parte do jogo. O futebol cria, assim, um espaço
próprio, uma espécie de livre mercado do ódio em que a ofensa
racial se torna a expressão do torcedor apaixonado, que pagou o ingresso
justamente para ter o “direito” de extravasar seus piores sentimentos.
Já o jogador negro que se cale, pois está sendo pago para jogar (bem) e
para suportar os insultos de ambas as torcidas (o que entender quando o
árbitro ignorou a reclamação do goleiro Aranha?). E a fim de evitar que
esse processo de catarse seja interrompido por quem desconhece a lógica
desse consenso às avessas que impera no futebol, até o julgamento dos
conflitos é tratado de modo distinto: cabe aos tribunais desportivos
resolver conflitos conforme as regras do mundo encantado e “livre” do
futebol. Por esse motivo é muito raro que atos de racismo ocorridos no
campo, salvo os de enorme repercussão, sejam tratados pelas leis penais.
E mesmo quando alcançados pelas leis penais, restringem-se ao tipo da
injúria racial, que faz parecer que o racismo, mais uma vez, é tão
somente uma questão moral. Tratar os casos de racismo no âmbito
desportivo é uma forma sutil de dizer que no futebol o racismo é
permitido, mas desde que com certos limites.
Porém,
muitos daqueles que agora demonstram indignação com as atitudes de parte
dos gremistas, em particular da infeliz torcedora enxovalhada até com
ofensas machistas, estão com ela e com os demais torcedores racistas
acumpliciados. São igualmente racistas porque sustentam-se, servem-se e
garantem seu modo de vida com o sofrimento de negros e negras, dentro e
fora dos gramados, seja por ação, seja por omissão.
São
cúmplices e, portanto, racistas, a FIFA, as federações de futebol, os
clubes, as comissões de arbitragem e as comissões técnicas que com sua
leniência, incentivam a violência racista nos estádios e fora deles. Não
custa lembrar que os dirigentes destas entidades são na sua maioria
homens brancos, o que ajuda a explicar em parte a total insensibilidade
para com o racismo no futebol.
São
cúmplices do racismo, dentro e fora dos campos, as autoridades do
Estado, com destaque especial para membros do Judiciário e do Ministério
Público, que quando não são omissos, mostram-se, muitas vezes,
condescendentes com atos racistas, ajudando a legitimar, legalizar e a
propagar a violência racial travestida de “liberdade de expressão”.
São
cúmplices do racismo as redes de comunicação, bem como seus jornalistas,
cronistas esportivos e apresentadores que ajudam a reforçar a visão
individualista e idealista do racismo como “ação isolada” e problema
moral, fabricando falsas rivalidades geradoras de violência e
concorrendo para a interdição do debate político tanto em relação à
importância social do esporte, quanto em relação ao racismo.
São
cúmplices do racismo os treinadores – quase todos brancos, o que reforça
a imagem do negro como comandado e subalterno –, além dos jogadores de
futebol, em especial, os grandes astros, negros e brancos, que poderiam e
deveriam interromper as partidas e até mesmo abandonar o campo diante
de casos de racismo. Isso teria um forte impacto, muito mais do que
comer bananas lançadas no campo por torcedores racistas, ato que só
reafirmou o caráter recreativo do racismo no futebol e propicia algum
lucro e momentos de fama nas redes sociais aos mesmos racistas e
oportunistas de plantão. Mas que jogadores terão a coragem necessária de
dar esse passo e entrar para história depois de enfrentar os clubes, as
entidades, parte da imprensa e, principalmente, os interesses políticos
e econômicos que se formam em torno do racismo?
Nesse momento, seria interessante saber dos líderes dos movimentos Bom Senso Futebol Clube e
Atletas pelo Brasil se há propostas para coibir o racismo. Persistindo o
silêncio, já se poderá concluir que a lógica racista do futebol
profissional interdita qualquer espécie de bom senso.
Extraído de:
http://blogdaboitempo.com.br/2014/09/01/racismo-futebol-e-o-livre-mercado-do-odio/
.