A
tragédia na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, na madrugada de
domingo (27/01), vitimizando mais de 230 pessoas (a esmagadora
maioria jovens), repercutiu fortemente em todo o Brasil e até no
mundo.
Como não
poderia deixar de ser, as pessoas tem se perguntado, chocadas, sobre
as causas e os responsáveis, mas só chegam nas consequências e as
confundem com as causas.
No
entanto, se não chegarmos nas causas reais, qualquer lei ou proposta
será ineficaz, até porque, como veremos, há outras tragédias
ocorrendo à nossa volta.
Uma
tragédia social
É
importante observar que a tragédia ocorrida na boate Kiss não pode
ser nivelada a uma tragédia causada por um fenômeno da natureza
como um tsunami, um terremoto, etc. Esses têm causas naturais e não
sociais. Nesses casos só pode haver punição humana se sua
ocorrência já era prevista por técnicos e de conhecimento das
autoridades e nada foi feito para salvar as vidas das pessoas.
No caso
da boate Kiss é notório os pedidos por punições, revisões
legais, fortalecimento da fiscalização, etc. A ação ou omissão
evidencia a mão humana na tragédia. Isso, por si só, já demonstra
a diferença entre um tipo de tragédia e outro mas é insuficiente
para a visualização das verdadeiras causas da tragédia - que são
sociais.
Para
identificarmos as causas sociais devemos começar olhando para o tipo
de sociedade em que vivemos: a sociedade capitalista.
Nessa
formação social o objetivo central é o lucro. Na internet alguns
comentários do senso comum apontavam para essa característica mas
obviamente a tratavam de forma moral. As relações sociais que fazem
a roda girar nessa direção não podem ser percebidas pelo senso
comum por estarem naturalizadas na prática social. Isso é trabalho
para os cientistas sociais, mas infelizmente muitos deles têm
vacilado em suas análises, esclarecendo pouco ou nada, ou até mesmo
capitulando às teses do senso comum, conforme veremos mais adiante.
Na
sociedade capitalista a forma mercadoria necessita se ampliar cada
vez mais para acumulação e reprodução do sistema e para isso não
poupa nem o lazer. O capital não se apropria apenas do tempo de
trabalho mas busca o lucro também com o momento de ócio da
juventude e dos trabalhadores.
Nesse
contexto as regras sócio-econômicas que subordinam as empresas
comuns também se aplicam às boates. Os custos de operação devem
ser reduzidos e os lucros ampliados, caso contrário a falência será
inevitável. Por isso a Kiss utilizava como isolante acústico um
material altamente inflamável como a espuma, que de acordo com a
perícia policial foi decisiva para a tragédia. [1] Há outros
materiais isolantes mas são mais caros. A mesma lógica teria sido
utilizada para a aquisição dos extintores de incêndio, que
suspeita-se serem falsos. [2]
A atitude
da boate não é um fato isolado. Em 2010, Vitor Noer, então
presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre,
declarou no programa de debates Conversas Cruzadas da TVCOM (emissora
da RBS TV - filial da Rede Globo no Rio Grande do Sul) que era comum
a utilização de produtos e materiais de baixa qualidade para
reduzir os custos de produção e operação. [3]
A
sociedade capitalista também reduz o espaço para se pensar
humanamente no outro. Ou ele aparece como um concorrente a ser batido
ou só é valorizado caso sua atuação seja funcional ao sistema. A
psicóloga Valeska Rodrigues justifica a discriminação e exclusão
de pessoas obesas do mercado de trabalho pelo fato delas apresentarem
doenças:
"Os empresários não estão totalmente errados em deixar de
contratar os obesos. Um obeso tem hipertensão, problemas de coluna e
várias outras coisas. O empresário vai querer contratar um
funcionário para viver faltando?" [4]
A lógica
do lucro na sociedade capitalista é sagrada para a própria
sobrevivência do sistema e tudo e todos que se coloquem como
obstáculo a ela devem ser evitados, removidos e abolidos. Foi ela
que prevaleceu na superlotação e principalmente quando os
seguranças da boate Kiss, a pedido de seus patrões, bloquearam a
saída da casa noturna para evitar que os frequentadores saíssem sem
pagar.
Foram
ainda encontrados problemas estruturais e legais na boate como alvará
vencido e ausência de saídas de emergência. Essas questões nos
remetem diretamente ao poder público, ou seja, ao Estado e a
política.
O Estado
é, conforme demonstraram Marx e Engels, um instrumento de dominação
do setor dominante da sociedade sobre os setores dominados. Os
regimes políticos, podem variar de forma, mas têm como essência
trabalhar para garantir a manutenção e a reprodução do sistema -
no nosso caso em particular, do sistema capitalista.
Nos
marcos do capitalismo mesmo os regimes políticos que se dizem
democráticos representam na prática as classes dominantes, ou seja,
os capitalistas. A crescente percepção de que a maioria não é
representada nos executivos e nos parlamentos tem contribuído
decisivamente para o descrédito cada vez maior, em escala global,
das democracias burguesas e suas instituições políticas.
Quando
não estão diretamente atuando na política do Estado aplicando seus
planos as classes dominantes compram os políticos, seja de forma
legal (financiamento de campanha) ou ilegal (pagamento de propina)
para assegurar os seus interesses seja com leis, empréstimos e até
mesmo no relaxamento de fiscalizações e vistorias. Ou seja, além
de transferir recursos públicos para os bancos e as grandes empresas
- sucateando os serviços públicos e produzindo a sua
"incompetência" - a "negligência" do Estado
ainda pode ser comprada!
No caso
particular de Santa Maria não é possível afirmar ainda se havia
uma relação dos proprietários da boate com o poder público. Mas
os fatos intrigam: como a boate tinha permissão para funcionar com
os problemas estruturais que possuía? Como foi permitido o seu
funcionamento com alvará vencido? E por que, a mesma prefeitura que
fechou a boate do DCE, manteve a Kiss aberta? [5]
Atualmente,
o prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer (PMDB), é investigado
pelo Ministério Público por improbidade administrativa por ter
prorrogado, em 2010, os contratos das empresas de transporte público
da cidade em vez de abrir um processo licitatório. [6]
Antagonismo
de classes e interesses
Procurei
pela internet e encontrei pouquíssimos artigos de cientistas sociais
sobre a tragédia em Santa Maria. E dos poucos que encontrei nenhum
buscou consequentemente as raízes sociais para esclarecer o trágico
evento, conforme eu já havia mencionado.
O artigo
"Lições da tragédia de Santa Maria", de Valmor Bolan,
doutor em Sociologia e presidente da Comissão Nacional de
Acompanhamento e Controle Social do Programa Universidade para
Todos-Prouni (Conap/MEC), foi o único que encontrei que ia de certa
forma nessa direção.
Bolan
responsabiliza a "cultura da permissividade" e "do
improviso":
"O que acontece é a cultura da permissividade que grassa hoje
por toda a sociedade. Muitas vezes faz-se vista grossa, aqui e ali, e
depois vem as consequências, com danos irreparáveis para a
população. Pagam-se impostos e não há retorno devido dos serviços
públicos. As empresas deveriam cumprir os pré-requisitos
necessários para seus funcionamentos, mas muitos preferem fazer a
lógica da esperteza. E logo vêm os resultados: acidentes fatais.
Esta foi a mesma lógica que ocasionou o desabamento de um prédio,
ano passado, no Rio de Janeiro, perto do Teatro Municipal. Um dos
sobreviventes foi salvo porque entrou no elevador. Estas situações
são diferentes dos casos de calamidades provocadas por desastres
naturais, como no caso do tsunami no Japão. Os japoneses mesmo assim
mostram que é possível estar prevenidos para minimizar os danos de
tais ocorrências. Mas nós, que não temos problemas de terremotos,
maremotos ou furacões, penalizamos a nossa população por descaso
do cumprimento do mínimo das regras exigidas para o bom
funcionamento dos empreendimentos e serviços. Mais uma vez fica
comprovado que se nem em situações como estas, que requerem
providências técnicas preventivas, imagine só se teríamos preparo
para enfrentar - como os japoneses enfrentam - os furores da
natureza.
Temos muito que aprender e mudar nossa forma de enfrentar os desafios
do cotidiano. Chega de cultura do improviso. O Brasil está na hora
de banir a mentalidade permissiva, pois com tal amadorismo, até
quando continuaremos vitimando a nossa população? Que a tragédia
de Santa Maria sirva de lição para que prevaleça o que Capistrano
de Abreu pediu a todo brasileiro, ainda no século XIX, que
tivéssemos uma única coisa: vergonha na cara." [7]
E quais
seriam as causas da "permissividade" e do "improviso"?
Fica o mistério para os menos informados. O mesmo mistério que o
sociólogo lança em relação ao não retorno em serviços públicos
dos impostos pagos pelos brasileiros. No segundo caso basta olhar
para os orçamentos da União para desvendar o mistério, no primeiro
para as relações sociais de forma mais ampla.
É
verdade que há diferenças culturais entre os países e que estas
influenciam nas relações sociais. Mas abordar as relações sociais
apenas pelo prisma da cultura é vê-las de forma limitada e
incompleta, ainda mais em uma formação social como a nossa,
dominada pela forma mercadoria e dividida em classes.
A tese da
cultura, utilizada de forma simplificadora, tem sido a preferida de
um certo senso comum que se pensa esclarecido, e termina por produzir
uma visão estigmatizada de determinados povos, indivíduos, grupos,
etc e divinizadora de outros.
Se
olhasse para as relações sociais de forma ampla, Bolan veria que o
cenário japonês não é tão luminoso quanto ele acredita. Por lá
foram desviados bilhões de dólares destinados a reconstrução após
a tragédia por ele referida.
Recentemente
o Ministro das Finanças do país venerado por Bolan declarou que os
idosos doentes deveriam se apressar em morrer para aliviar as contas
do Estado. Esse mesmo Ministro despejou trilhões de ienes para as
grandes empresas não quebrar quando ocupou o posto de Primeiro
Ministro no período de 2008-2009. [8]
Embora o
tipo de declaração como a proferida pelo Ministro japonês não
seja comum, ela foi sinistramente sincera e jamais pode ser atribuída
a uma mente perturbada, maluca ou insana. A lógica de sacrificar os
extratos inferiores da sociedade para salvar o andar de cima tem sido
a regra praticada em todos os países capitalistas, independente das
diferenças culturais. Muda apenas a forma como os governos a
anunciam aos seus povos.
Em uma
sociedade dividida em classes como a nossa, cada classe social possui
interesses próprios e antagônicos aos de outras classes, como já
havia constatado o próprio homem da mão invisível do mercado:
"Quais são os salários comuns ou normais do trabalho? Isso
depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos
interesses, aliás, de forma alguma são os mesmos. Os trabalhadores
desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo
possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar
os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-los."
(Adam Smith. A Riqueza das Nações, Vol. 1, CAP. VIII - Os Salários
do Trabalho)
Atualmente,
com a crise financeira, as classes dominantes estão associadas para
salvar-se e para isso necessitam sacrificar as classes populares
mesmo que isso tenha representado instabilidade política, econômica
e social. A vida humana acaba relegada para manter a lógica do lucro
do andar de cima. Para isso até mesmo a novas guerras coloniais as
classes dominantes têm apelado.
Mais
do que punir o individual é preciso atacar o social
Os
ajustes fiscais e as novas guerras coloniais têm arruinado e
liquidado a vida de milhões de pessoas. São tragédias sociais do
dia a dia, muitas vezes aceitas e justificadas "técnica",
"científica" e até "humanitariamente".
Para nós
que vivemos no Brasil são coisas que parecem distantes. Até nos
esquecemos da lamentável ocupação do Haiti que o nosso país
lidera (com fins e atuação nada humanitária) e dos cortes no
orçamento praticados pelos nossos governos que retiram dinheiro da
saúde e da educação para entregar aos especuladores.
A
tragédia social originada de uma lógica que coloca o lucro acima da
integridade humana está mais próxima de nós do que imaginamos.
Vejam-se as remoções forçadas e por vezes brutais de comunidades
inteiras como a do Pinheirinho no ano passado, onde milhares de
pessoas foram jogadas na rua e viram o pouco que adquiriram na vida
ser destruído impiedosamente. Vejam-se os sucessivos incêndios em
favelas de interesse da especulação imobiliária [9]. Vejam-se as
condições degradantes de trabalho que imperam nas grandes obras do
país onde os operários sofrem repressão, perseguição, tortura e
até prisão quando resolvem reagir à exploração absurda. Uma
exploração que não raramente resulta em cadáveres.
As
relações sociais que produzem todas essas tragédias são as mesmas
que produziram a tragédia em Santa Maria.
Mas o
sistema capitalista não pode abolir suas próprias contradições.
Quando as consequências de algumas delas extrapolam os limites
mínimos do aceitável e a pressão popular ganha envergadura, alguns
indivíduos podem ser sacrificados para que a sua reprodução seja
mantida.
Só que a
reprodução de uma lógica que coloca o lucro acima da vida humana
seguirá criando novas tragédias sociais se não for contida. As
relações sociais não podem ser encarceradas mas podem ser mudadas.
Ou as mudamos o quanto antes ou ainda derramaremos muitas lágrimas.
Isso se as próximas vítimas não for nós mesmos.
_____________________________________________
[1]
Espuma do teto da boate foi a causa da morte das 236 pessoas, diz
delegado (31/01/2013):
http://oglobo.globo.com/pais/espuma-do-teto-da-boate-foi-causa-da-morte-das-236-pessoas-diz-delegado-7457973
[2]
Polícia vê indício de que boate Kiss usou extintores falsos
(29/01/2013):
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130129_extintores_boate_kiss_cq_cc.shtml
[3] O
cliente tem sempre razão? (10/02/2010):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2010/02/o-cliente-tem-sempre-razao.html
-->
Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre. RELATÓRIO DE
ATIVIDADES E COBERTURA DE IMPRENSA FEVEREIRO 2010. Uffizi Consultoria
em Comunicação.
http://www.uffizi.com.br/Documentos/documento571.pdf
[4]
Políticos e sociedade (29/09/2012):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2012/09/politicos-e-sociedade.html
[5]
Prefeitura fechou Boate do DCE em Santa Maria dias antes de incêndio
na Kiss (01/02/2013):
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-02-01/prefeitura-fechou-boate-do-dce-em-santa-maria-dias-antes-de-incendio-na-kiss
[6]
ENTREVISTA COM O PROMOTOR ADEDE Y CASTRO (15/01/2011):
http://www.revistaovies.com/entrevistas/2011/01/entrevista-com-o-promotor-adede-y-castro/
[7]
Lições da tragédia de Santa Maria (31/01/2013):
http://www.diariopopular.com.br/index.php?n_sistema=3051&id_noticia=MzIxMg==&id_area=NA==
[8]
Ministro japonês defende a morte para idosos doentes (26/01/2013):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2013/01/ministro-japones-defende-morte-para.html
[9] Mapa
relaciona incêndios em favelas e especulação imobiliária
(12/09/2012):
http://olhardigital.uol.com.br/jovem/digital_news/noticias/mapa-colaborativo-relaciona-incendios-em-favelas-e-especulacao-imobiliaria
Setor imobiliário financiou todos os vereadores da CPI dos Incêndios, em São Paulo; total chega a R$ 700 mil (05/10/2012):
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/05/vereadores-da-cpi-dos-incendios-em-favelas-de-sp-receberam-doacoes-de-construtoras-em-2008.htm
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