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A
crise financeira que eclodiu em 2008 se manifestou, no imediato, de
formas distintas em vários países pelo mundo. Isso possibilitou que
alguns governos tomassem medidas que na aparência e sob uma visão
superficial pareçam completamente opostas às tomadas nos países
mais afetados pela crise. Em algumas localidades há até a impressão
de que a crise sequer se fez presente.
Nos
fóruns nacionais e internacionais, o governo brasileiro, desde Lula,
tem feito discursos onde gaba-se de estar enfrentando a crise
financeira com eficiência e de forma distinta dos outros governos,
em particular os da Europa e dos Estados Unidos.
De
acordo com essa premissa, enquanto no exterior se ataca a produção,
o consumo e os direitos dos trabalhadores, por aqui se estaria
fazendo o inverso, sendo o governo brasileiro diametralmente oposto
aos governos estrangeiros.
Teria-se
encontrado aqui a fórmula mágica para debelar a crise capitalista
que só não é repetida lá fora por simples insensibilidade de
governos maldosos.
Mas
será assim mesmo? Será que as ditas medidas anticrise praticadas
pelo Brasil realmente se distinguem dos outros países?
É
o que pretende analisar o presente artigo.
A
crise
As
origens da atual crise financeira remontam aos anos 70 do século
passado. As mudanças no interior da base produtiva capitalista
aliada à crise de 1973 tornou a gestão keynesiana - encarnada no
chamado Estado de Bem-Estar Social - um obstáculo para a
continuidade da acumulação e reprodução capitalista, cedendo
lugar ao neoliberalismo.
Com
a gestão neoliberal serviços públicos essenciais foram sendo
privatizados e os direitos dos trabalhadores reduzidos contribuindo
para a queda da renda da classe trabalhadora. Paralelo a isso as
mudanças na base produtiva elevaram a produtividade deixando o
mercado cada vez mais inundado de mercadorias que tinham dificuldade
de serem consumidas.
Para
amenizar essa situação o crédito foi acionado e expandido causando
o endividamento da classe trabalhadora dos países capitalistas
centrais. Os banqueiros passavam a acumular não apenas mais dinheiro
mas poder.
Com
as dificuldades de acumulação e reprodução do capital na esfera
produtiva cresce a especulação. Karl Marx descreveu assim esse
processo:
"Com a queda da taxa
de lucro aumenta o mínimo de capital que tem de estar nas mãos de
cada capitalista para o emprego produtivo de trabalho; o mínimo
exigido para se explorar o trabalho em geral e ainda para que o tempo
de trabalho aplicado seja o necessário para a produção das
mercadorias, não ultrapassando a média do tempo de trabalho
socialmente necessário para produzi-las. Ao mesmo tempo aumenta a
concentração, pois, além de certos limites, capital grande com
pequena taxa de lucro acumula mais rapidamente que capital pequeno
com taxa elevada. A certo nível, essa concentração crescente de
capital por sua vez acarreta nova queda da taxa de lucro. A massa dos
pequenos capitais dispersos é assim empurrada para as peripécias da
especulação, das manobras fraudulentas com crédito e ações, das
crises." (O Capital - Livro 3 - Volume 4, p. 288. Civilização
Brasileira: Rio de Janeiro, 1974)
"Se
cai a taxa de lucro, o capital se torna tenso, o que transparece no
propósito de cada capitalista de reduzir, com melhores métodos,
etc., o valor individual de suas mercadorias abaixo do valor médio
social, e assim fazer um lucro extra, na base do preço estabelecido
pelo mercado; ocorrerá ainda especulação geralmente favorecida
pelas tentativas apaixondas de experimentar novos métodos de
produção, novos investimentos de capital, novas aventuras, a fim de
obter um lucro extra qualquer, que não dependa da média geral e a
ultrapasse." (O Capital - Livro 3 - Volume 4, p. 297.
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1974)
Ele
faz referência, ainda, a especulação com ferrovias no século XIX,
citando o relatório Commercial Distress, 1847-1848:
"(...)
o período de prosperidade de 1844 a 1847 na Inglaterra entrosou-se
com a primeira grande especulação ferroviária. Sobre o efeito dela
nos negócios em geral, o citado relatório diz:
'Em
abril de 1847, quase todas as firmas comerciais tinham começado a
exaurir mais ou menos seus negócios, aplicando parte do capital em
ferrovias'" (O Capital - Livro 3 - Volume 5, p. 474. Civilização
Brasileira: Rio de Janeiro, 1974)
Nos
últimos anos assistiu-se ao crescimento da especulação com
moradia, o que gerou nos países centrais a bolha imobiliária, que
estourou em 2007 nos Estados Unidos, sendo o estopim da atual crise
financeira.
Diante
dela os banqueiros e as grandes empresas estão sendo socorridos com
dinheiro dos contribuintes, o que tem feito elevar à estratosfera a
dívida pública, cuja conta os governos fazem recair sob os ombros
da classe trabalhadora que perde emprego, casa, salário, direitos
sociais, etc.
Como
se percebe a origem da atual crise, como a de toda crise capitalista,
está na sua base produtiva. A necessidade de elevação da produção
para reduzir custos e poder vender mais barato do que o concorrente
(o que é buscado por todas as empresas) leva ao que Marx definiu
como superprodução. Essa superprodução se transforma em crise
quando não encontra absorção no mercado.
"O
objetivo do capital não é satisfazer as necessidades, mas produzir
lucro, alcançando essa finalidade por métodos que regulam o volume
da produção pela escala da produção, e não o contrário. Por
isso, terá sempre de haver discrepância entre as dimensões
limitadas do consumo em base capitalista e uma produção que procura
constantemente ultrapassar o limite que lhe é imanente." (O
Capital - Livro 3 - Volume 4, p. 294. Civilização Brasileira: Rio
de Janeiro, 1974)
A
caracterização teórica dos fenônemos sociais e econômicos
determina a atuação política diante deles. Assim, se as crises
capitalistas iniciam-se no seu próprio modo de produção envolto em
suas relações sócio-econômicas, e a especulação é efeito dessa
contradição, não apenas essa última não é a causa da crise como
não será simplesmente com a regulação da mesma que se porá fim
às crises. Alguns não só acreditam nessa quimera como acham
possível aliar-se com o chamado capital produtivo para combater o
capital especulativo. Ignoram que o chamado capital produtivo possui
grande inserção especulativa. Por isso os grandes empresários
produtivos vibram tanto quanto os banqueiros diante dos planos de
ajustes dos governos que atacam a capacidade consumidora dos
trabalhadores.
O
"segredo" brasileiro
Até
2008 a prioridade no Brasil era a produção para exportação.
Quando a crise estoura essas ficam prejudicadas e o governo
brasileiro, para escoar essa produção, passa a tomar medidas para
estimular o consumo interno das famílias, o chamado mercado interno,
até então negligenciado.
Acreditando
na eficiência dessa "fórmula", o empresário Abílio
Diniz, afirmou, em apoio, mas corretamente, que o Brasil trocou "o
consumo externo pelo interno". [1]
Como
a valorização do salário mínimo não passa de um mito da
propaganda governista pois aumentou menos nas gestões petistas do
que na triste era FHC [2], adivinha qual tem sido o principal
instrumento utilizado para manter o consumo dos trabalhadores
brasileiros? Ele mesmo: o crédito!
De
acordo com a "Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do
Consumidor (Peic)" divulgado pela Confederação Nacional do
Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em maio de 2011, 64,2%
das famílias brasileiras já encontravam-se endividadas. [3]
Para
se ter uma ideia do crescimento do crédito no Brasil, em 2007 este
representava 34,2% do PIB. No ano seguinte já havia pulado para
41,3% [4] e em 2011 atingiu 49,1% [5]. O objetivo é chegar a 60% do
PIB até 2015! [6]
As
palavras do ex-presidente Lula não deixam dúvidas do crescimento
monstruoso do crédito no nosso país:
"Em
março de 2003, o crédito disponível no País era de R$ 380
bilhões. Hoje, o Brasil já tem R$ 1,5 trilhão em crédito"
[7] Éramos "um país capitalista sem capitalismo", disse
ainda o ex-presidente. [8]
Parte
desse crédito tem sido utilizado para inflar a bolha imobiliária.
Ainda que, em relação ao total do crédito, esse setor fique com
uma quantia pequena, o volume de crescimento do crédito para ele
também tem sido elevado.
Somente
em 2011 o crédito imobiliário cresceu 42% em relação ao ano de
2010, isso levando-se em conta apenas os financiamentos com recursos
da caderneta de poupança. [9] Em 2010 o aumento foi de 65% em
relação ao ano anterior. [10] Para este ano a estimativa de aumento
é de 30% a 40%. [11]
Mas
expandir o crédito e inflar a bolha imobiliária não foram,
conforme vimos, as medidas adotadas pelos países capitalistas
centrais?
Medidas
anticrise?
Como
o governo petista optou pela manutenção e administração da ordem,
quando a crise estourou em 2008, não viu outra alternativa senão a
de tomar medidas que mantivessem em funcionamento o processo de
acumulação e reprodução do capital.
Para
isso havia disponível um "segredo", já esgotado nos
países centrais: o consumo do mercado interno.
Este,
por sua vez, foi ativado pela "inovadora" expansão do
crédito:
"Segundo
técnicos do governo, o crédito foi fundamental na recuperação do
país após a crise de 2008". [12]
E
parece haver a disposição de se levar ao limite essa "inovação".
A pedido das classes dominantes, atualmente o Governo Dilma anda
empenhado em tomar medidas para aprofundar a política de facilitação
e expansão do crédito no país para evitar a crise de superprodução
do capital.
Em
recente reunião com o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, as
montadoras reclamaram mais crédito disponível para os trabalhadores
comprar seus carros. E, ao que parece, foram atendidas. Afinal, como
disse Cledorvino Belini, presidente da Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea):
"Os
presidentes das montadoras estavam lá e não houve nenhum tipo de
contestação." [13]
Mas
não é apenas o discurso de diferenciação em relação as medidas
de incentivo ao consumo que é irreal. O de ausência de ataques à
classe trabalhadora também.
No
país que alardeia bom momento econômico ocorrem privatizações e
ajustes fiscais (como o corte de mais de 55 bilhões do orçamento em
fevereiro deste ano) que atingem em cheio serviços públicos
essenciais como saúde e educação.
Este
corte recorde no orçamento é apontado por muitos economistas e
apoiadores do governo como pré-requisito para a redução das taxas
de juros recentemente praticadas pelo governo. Ou seja: os
trabalhadores perdem saúde, educação e ainda são chamados a se
endividar!
Quando
o limite do endividamento ultrapassar o suportável, e isso pode
ocorrer quando houver aumento das taxas de juros para segurar o
capital estrangeiro que inunda o país ou com a elevação do
desemprego, é provável que o governo brasileiro se mostre
"inovador" mais uma vez, resgatando bancos e grandes
empresas por um lado, e aprofundando o ataque aos direitos da classe
trabalhadora por outro. Já haveria até uma lista com os "bancos
brasileiros que não podem quebrar". [14]
As
medidas "anticrise" do governo petista, cópias retardadas
dos outros governos que gerem o capital mundo a fora, nada mais fazem
do que empurrar a crise capitalista com a barriga. Como constatou
Marx:
"De
que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado,
pela destruição violenta de grande quantidade de forças
produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela
exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de
crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios
de evitá-las." [15]
__________________________________
[1]
"Brasil não é o País do futuro, é o de agora", diz
Abilio Diniz (17/01/2012):
http://not.economia.terra.com.br/noticias/noticia.aspx?idNoticia=201201171717_TRR_80734639
[2]
Salário mínimo na era Lula aumentou MENOS que na era FHC
(22/11/2010):
http://blogdomonjn.blogspot.com/2010/11/salario-minimo-na-era-lula-aumentou.html
[3]
64,2% das famílias brasileiras estão endividadas, diz CNC.
(18/05/2011):
http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2011/05/646-das-familias-brasileiras-estao-endividadas-diz-cnc.html
[4]
Volume de crédito alcança 41,3% do PIB em 2008 e bate recorde.
(27/01/2009):
http://economia.uol.com.br/ultnot/valor/2009/01/27/ult1913u101066.jhtm
[5]
Pol. Monetária e Operações de Crédito do SFN. Banco Central do
Brasil. Nota para a Imprensa, 27/01/2012:
http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM
[6]
Crédito no Brasil vai se expandir para 60% do PIB até 2015.
(08/07/2011):
http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/infomoney/2011/07/08/credito-no-brasil-vai-se-expandir-para-60-do-pib-ate-2015.jhtm
[7]
Lula destaca aumento da oferta de crédito no País. (29/06/2010):
http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+brasil,lula-destaca-aumento-da-oferta-de-credito-no-pais,25237,0.htm
[8]
Brasil era um país 'capitalista sem capitalismo', diz Lula.
(23/09/2010):
http://www1.folha.uol.com.br/poder/803607-brasil-era-um-pais-capitalista-sem-capitalismo-diz-lula.shtml
[9]
Crédito imobiliário cresce 42% em 2011 ante 2010. (26/01/2012):
http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,credito-imobiliario-cresce-42-em-2011-ante-2010,100666,0.htm
[10]
Financiamento Imobiliário cresce 65% em 2010. (15/02/2011):
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI211372-15259,00.html
[11]
Em 2012, crédito imobiliário para pessoas físicas deverá crescer
de 30% a 40%. (07/12/2011):
http://casaeimoveis.uol.com.br/ultimas-noticias/infomoney/2011/12/07/em-2012-credito-imobiliario-para-pessoas-fisicas-devera-crescer-de-30-a-40.jhtm
[12]
Dilma pressiona por mais crédito (23/03/2012):
https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/3/23/dilma-pressiona-por-mais-credito
[13]
Montadoras se queixam ao governo de que bancos dificultam crédito a
veículos (12/04/2012):
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/4/12/montadoras-se-queixam-ao-governo-de-que-bancos-dificultam-credito-a-veiculos/
[14]
Vem aí uma lista de bancos brasileiros que não podem quebrar
(15/11/2011):
http://www.cartacapital.com.br/economia/vem-ai-uma-lista-de-bancos-brasileiros-que-podem-quebrar/
[15]
Manifesto Comunista, 1848.
http://www.culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm
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