.
Em janeiro de 2003,
poucos dias após receber a faixa presidencial cercado por um clima
de euforia e esperança, Lula anunciava uma Reforma da Previdência
que aumentava a idade mínima, introduzia a taxação dos
aposentados, acabava com a aposentadoria integral, criava um fundo
complementar que privatizava parte da previdência, acabava com a
paridade nos reajustes dos servidores da ativa com os aposentados e
reduzia as pensões aos dependentes.
Tal reforma, cujas
mudanças elencadas acabaram sendo aprovadas no mesmo ano,
constituiu-se na primeira grande desilusão dos governos petistas no
Palácio do Planalto para setores da sociedade brasileira que por
anos lhe haviam depositado confiança e esperança.
A direita tentou
canalizar esse primeiro grande desgaste mas acabou neutralizada pela
esquerda com o bloco formado pela resistência de alguns
parlamentares do próprio PT que não apenas se recusaram a votar a
favor da referida reforma como ainda lideraram atos contra ela.
Por tal atitude Luciana
Genro, Babá, Heloísa Helena e João Fontes terminaram expulsos por
figuras como José Dirceu, Delúbio Soares e Sílvio Pereira
acusados, pela Comissão de Ética do partido, de infidelidade
partidária! Conhecidos na época como os “parlamentares radicais”
se aliaram a outros militantes e lutadores sociais e fundaram em 2005
o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
No ano da sua fundação,
ainda antes da obtenção do seu registro definitivo na Justiça
Eleitoral, o PSOL se defrontou com o seu primeiro grande desafio: o
estouro do escândalo do mensalão no governo Lula.
Ainda que após a Reforma
da Previdência o governo Lula houvesse seguido aplicando medidas que
contrariavam o discurso petista, como privatizações e o
prosseguimento da política econômica do tucano Fernando Henrique, o
envolvimento do PT em um escândalo de corrupção constituiu-se na
segunda grande desilusão para setores que historicamente confiaram
no partido e muitos acabaram rompendo com ele.
O episódio poderia ter
gerado um Kim Kataguiri, um Fernando Holiday ou turbinado Jair
Bolsonaro. Mas, novamente a direita não conseguiu canalizar o
desgaste petista devido à ação da esquerda: PSOL e PSTU
organizaram atos unitários contra a corrupção e pelo “Fora Lula”
(no caso do PSOL) e “Fora Todos” (no caso do PSTU). PT, PCdoB e
movimentos sociais aliados também organizaram atos em defesa do
governo mas em menor número.
O enfrentamento que essa
parcela da esquerda realizava com o petismo era corajoso e admirável
uma vez que se dava em um momento em que Lula e o PT gozavam de amplo
apoio e prestígio o que tornava a pressão dos petistas e seus
aliados terrivelmente forte.
Curiosamente, quando as
contradições sociais se agudizaram, a sociedade brasileira se
polarizou e o PT iniciou o seu enfraquecimento é que a esquerda
brasileira começou a retroagir no seu correto enfrentamento ao
petismo, permitindo que figuras da direita até então marginais
crescessem e aparecessem. Por que isso ocorreu?
Ainda que ao longo dos
anos mesmo alguns setores da esquerda que enfrentavam o petismo por
vezes votassem nele nas eleições como um “mal menor” ou “menos
pior” foi em junho de 2013 que a capitulação ganhou um salto de
qualidade e a adesão de novas organizações políticas.
Perdida em meio a um
fenômeno de massas que deixou de dirigir parte da esquerda
assustou-se quando a direita entrou para disputar o movimento.
Desacostumada ao enfrentamento de rua com a direita houve setores que
simplesmente abandonaram as ruas. Teve ainda o episódio da
hostilidade às bandeiras dos partidos na Avenida Paulista, que foi
interpretado de forma simplista como “um ataque fascista”,
rendendo uma ampla unidade de partidos que ia de organizações que
se reivindicam revolucionárias até o próprio PT. Nos parece que
neste fato encontra-se o embrião do discurso de “onda
conservadora”.
Esses acontecimentos de
junho de 2013 fortaleceram a visão daqueles que já analisavam a
conjuntura como extremamente difícil, de que a classe trabalhadora
estava derrotada e de que era apenas a direita que se fortalecia. O
impressionismo que prevaleceu jogou a maior parte da esquerda na
defensiva deixando-a cega para as contradições da realidade que
mostrava a eclosão de greves pela base, o crescimento do
autonomismo, do anarquismo e da própria esquerda socialista (e não
apenas da direita) - fenômenos mais do que previsíveis em
conjunturas de crise capitalista.
Ora, se enxerga-se apenas
derrotas da classe, crescimento da direita, onda conservadora e que o
nazismo e fascismo estão na nossa porta não resta dúvidas de que a
ação política prioritária é a derrota desses “monstros” e a
defesa das conquistas democráticas o que envolveria a formação de
uma “frente ampla” com todos os setores que defendem as bandeiras
democráticas. O PT, que tem explorado com êxito essa elaboração,
deixava de ser combatido para se tornar aliado.
Assim, se em eleições
passadas o PT, encarado como “mal menor” ou “menos pior”,
recebia o voto envergonhado de parcelas da esquerda e lutadores
sociais que se enfrentavam com seus governos nos anos anteriores, o
segundo turno das eleições de 2014 assistiu a um engajamento
militante de alguns desses mesmos ativistas que só encontrava
paralelo na primeira vitória de Lula. A esquerda majoritária
capitulava a falsa polarização e, em vez de neutralizar o campo
para o crescimento da direita, jogava adubo nele.
A Dilma “Coração
Valente” reeleita em um pleito apertado só mostrou coragem para
atacar a classe trabalhadora e as classes populares. Como quase todos
os governos que aplicam ajustes fiscais viu seu apoio popular se
esvair rapidamente. A crise econômica e a crise política,
alimentando-se mutuamente, fez evaporar a sua base política. Sem
condições de governar foi retirada do poder pela classe dominante
em uma manobra que previa um grande acordo nacional posterior para
“salvar todo mundo”, inclusive ela e Lula, como fica claro nos
áudios de Sérgio Machado com Renan Calheiros e Romero Jucá. Dilma
sofreu impeachment mas não teve os direitos políticos suspensos
provavelmente devido a este acordo.
Para uma esquerda
amedrontada e na defensiva era inútil tentar demonstrar que a saída
de Dilma não se tratava de um golpe de Estado; que não era um
ataque a um governo popular e de esquerda; que não se tratava de
mudanças nos rumos da economia e de que as classes dominantes fritam
os políticos da sua própria classe quando não mais lhes
interessam, como aconteceu com Silvio Berlusconi na Itália que,
desgastado e sem base política para aplicar o ajuste fical, acabou
substituído por um representante direto dos banqueiros - fato cuja
essência da queda se assemelha muito ao de Dilma.
Assim, a esquerda
majoritária no Brasil mergulhou de cabeça no “Fica Dilma”,
ainda que tentassem alegar estar apenas defendendo a legalidade,
argumento facilmente quebrado quando se perguntava se tratando-se de
um governante do PSDB, DEM, PMDB, ou outro da mesma estirpe em
situação similar, se a oposição ao “golpe” teria o mesmo
vigor e se ocuparia as ruas.
E enquanto atuava como
bote salva-vidas do PT em seu momento de naufrágio cabia a Kim
Kataguiri, Fernando Holiday, Jair Bolsonaro, entre outros, a crítica
dos governos petistas. Sem contraponto à esquerda cresceram e
apareceram como figuras destacadas da direita.
A sequência da história
mostrou que o ajuste fiscal de Temer nada mais era do que a
continuidade do ajuste de Dilma e do PT; de que enquanto gritava “não
ao golpe” nos palanques, nos bastidores a direção petista fazia
alianças eleitorais com os “golpistas” e votava neles para
presidir as casas legislativas do país, incluíndo apoio aos
candidatos de Temer no Congresso Nacional; que Lula já dá conselhos
e se oferece para ajudar Temer e até busca apoio eleitoral para 2018
entre aqueles que votaram a favor do impeachment e a própria Dilma
andou se opondo à cassação de Temer pelo Tribunal Superior
Eleitoral.
Por
falar em 2018 há os que, dada a última sondagem eleitoral, já
manifestaram o desejo de votar em Lula para derrotar a direita, no
caso Jair Bolsonaro, que aparece em terceiro lugar. Pródiga em
espalhar o medo a militância petista já aponta o dedo para
Bolsonaro na tentativa de angariar os amedrontados da esquerda.
Se
o êxito eleitoral de uma possível candidatura de Bolsonaro ainda
não possa ser medido com precisão o certo é que tentar
enfraquecê-lo jogando-se no colo de Lula provavelmente produzirá o
efeito contrário.
As experiências de 2003
e 2005 demonstraram que o melhor caminho para neutralizar ou reduzir
as chances da direita é a oposição política firme e decidida da
esquerda em relação ao petismo aliada a apresentação de uma
alternativa. Colar-se nele serve apenas para inflar a falsa
polarização e enfraquecer a esquerda como alternativa política já
que ela acaba aparecendo aos olhos de milhões como aliada do PT e,
portanto, semelhante a ele.
Felizmente como vivemos
uma conjuntura de polarização social, e não uma onda conservadora,
os rumos ainda podem ser corrigidos. As medidas de ajustes fiscais
são rechaçadas pela maioria da população brasileira e tem gerado
crise mesmo na base do Movimento Brasil Livre (MBL), do Vem Pra Rua e
até de Jair Bolsonaro.
A luta contra o ajuste
fiscal precisa estar colada no “Fora Temer” e pela continuidade
das investigações contra a operação abafa do governo e necessita
da unidade da esquerda que deve ter uma atuação política que não
se deixe capitular ou desviar pelo oportunismo petista, que em última
instância deseja a aplicação do ajuste e visa apenas tentar
canalizar para as próximas eleições o desgaste do governo que o
aplica. Neste sentido, a vitoriosa greve dos servidores de
Florianópolis, que passando por cima da direção burocrática do
sindicato derrotou os ataques da prefeitura, é uma inspiradora
lição.
.