Plínio
de Arruda Sampaio Jr – Facebook, 12/04/2018 – 15:35
O
processo que culmina com a condenação e prisão de Lula agrava a
crise terminal da Nova República e catalisa a derrocada do lulismo.
Os dois fenômenos confundem-se e reforçam-se reciprocamente. Eles
revelam a absoluta impossibilidade de conciliar capitalismo,
democracia e igualdade social nas economias de origem colonial
submetidas a violentos processos de reversão neocolonial.
A
falência do pacto político materializado na Constituição de 1988
transforma a política nacional num pântano. A célere punição de
Lula, quando os processos contra Renan, Juca, Temer e Aécio
permanecem indefinidamente engavetados, escancara os atropelos, a
seletividade e a impunidade que caracterizam um sistema judiciário
arbitrário que, no melhor estilo "para os amigos, tudo, para os
inimigos, a lei", funciona com rigor máximo para os pobres, com
total leniência para os ricos e de maneira casuística para os que
não são amigos do rei. As pressões sobre as decisões do Supremo,
tanto as oriundas das Forças Armadas pela punição de Lula como as
provenientes do partido da "estanca a sangria" pela
impunidade dos políticos corruptos, revelam a precariedade das
instituições que deveriam dar sustentação à República. A
indiferença, mas, sobretudo, a passividade da população em relação
à prisão do ex-presidente indicam a profunda descrença das massas
no sistema político. Por fim, a ausência do principal candidato do
pleito presidencial de 2018 compromete ainda mais a já ínfima
legitimidade do sistema político.
A
crise do padrão de dominação é estrutural e irreversível, pois,
nas condições de uma profunda crise econômica, a polarização da
luta de classes inviabiliza a conciliação entre o capital e o
trabalho.
Para
os de cima, a democracia brasileira é excessiva e deve ser reduzida.
A guerra aberta contra os trabalhadores como forma de recomposição
do padrão de acumulação de capital exige que a vontade política
da classe trabalhadora seja anulada. A preocupação política do
andar de cima é como conter a rebeldia dos de baixo.
Para
os de baixo, o espaço democrático é insuficiente e deve ser
ampliado. A materialização da luta por direitos sociais requer o
fim dos privilégios seculares responsáveis pela reprodução do
regime de segregação social. Foi essa a mensagem inequívoca da
juventude que protagonizou as Jornadas de Junho de 2013, da primavera
das mulheres de 2015 que contribuiu para a queda de Eduardo Cunha,
dos estudantes que ocuparam as escolas em 2016, dos trabalhadores que
fizeram a greve geral de abril de 2017, da população que saiu às
ruas em março de 2018 para protestar contra o assassinato de
Marielle e Anderson e dos funcionários públicos paulistanos,
professores da rede municipal à frente, que, com suas manifestações
maciças, derrotaram o projeto de reforma da previdência de Dória.
A
prisão do ex-presidente acelera a exaustão do lulismo como
referência política da classe trabalhadora brasileira. Mesmo com a
presença de três candidatos à Presidência da República e de toda
a liderança do movimento social que gravita em torno do PT, no
momento decisivo a massa trabalhadora não compareceu ao sindicato
dos metalúrgicos de São Bernardo. A liderança nas pesquisas
eleitorais para a Presidência da República não se traduziu em
solidariedade concreta. Os trabalhadores não perdoaram as traições
que os deixaram desarmados para enfrentar a ofensiva do capital
contra seus direitos.
Destituído
da energia que brota das ruas, o lulismo foi reduzido à absoluta
impotência. Pensando muito mais em sua própria conveniência do que
nos interesses estratégicos dos trabalhadores, Lula tirou as
consequências práticas da situação. No momento derradeiro, seguiu
as instruções de seus advogados e apresentou-se docilmente à
Polícia Federal. Sem coragem para ultrapassar os limites da ordem,
Lula caiu nos braços do Jucá. Seu destino depende agora do sucesso
da operação “estanca a sangria”, à espera de que "um
grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo" possa salvá-lo
de uma longa temporada na cadeia.
Na
esperança de virar semente, antes de abandonar o palanque Lula
passou o bastão para as novas gerações. No entanto, para além de
sua vontade, a crise do lulismo, com ou sem Lula, é estrutural. Ela
é determinada, de baixo para cima, pelo descolamento da classe
trabalhadora da ilusão de que soluções parlamentares, patrocinadas
pela esquerda de uma ordem capitalista particularmente antissocial,
antinacional e antidemocrática, possam resolver os problemas
fundamentais do povo. Sem capacidade de mobilização social, o
lulismo não sobrevive como projeto político.
A
criação, o auge e o ocaso do PT confundem-se com sua capacidade de
mobilização da classe trabalhadora. Nadando contra a corrente, na
década de 1980, o PT conquistou seu espaço na política brasileira
porque colocou o povo na rua. Acomodando-se às determinações da
ordem, trilhou seu caminho para o poder nos anos 1990 porque rebaixou
seu programa e desmobilizou os trabalhadores. Finalmente, em 2003,
chegou ao Planalto porque firmou o compromisso explícito,
formalizado na Carta aos Brasileiros, de seguir fielmente as
exigências do capital e conter o descontentamento das classes
subalternas. Em 2013, atropelado pelas Jornadas de Junho, o PT perdeu
toda sua funcionalidade para o capital porque não foi capaz de tirar
o povo da rua. Em 2016 foi apeado do governo, sem nenhuma resistência
real, porque não convocou o povo para defender sua presidente, pois
sabia que o povo não iria às ruas.
No
processo de progressiva acomodação às exigências do status quo, o
PT rebaixou seu programa até sua completa mutação em um
“melhorismo” esquálido, que o transformou na ala “menos pior”
do neoliberalismo. A metamorfose do PT num partido perfeitamente
enquadrado nas exigências da ordem, com todos os vícios e
distorções da política burguesa, e o acirramento da luta de
classes minaram as bases do longo ciclo político que transformou o
partido de Lula na principal referência política da classe
trabalhadora brasileira.
Nas
condições históricas extraordinariamente adversas de uma sociedade
integralmente submetida à lógica dos negócios, a estratégia de
fazer o possível em condições impossíveis - a quinta-essência do
lulismo - deu com os burros n’água. O círculo vicioso do
subdesenvolvimento é implacável. Não surpreende que tudo que
parecia sólido tenha se desmanchado no ar. As narrativas que
edulcoram os governos petistas ocultam a realidade. Os problemas que
envenenam a vida nacional, em todas as suas dimensões, são
incompreensíveis se desvinculados das terríveis contradições
gestadas nos treze anos de Lula e Dilma.
Os
elevadíssimos índices de abstenção e de votos nulo e branco e o
crescente recurso a formas de ação direta como meio de manifestação
política revelam que os brasileiros não se sentem representados
pelos partidos convencionais e buscam novas formas de expressão de
suas vontades políticas. Nessas condições, a redução da política
à opção binária Lula ou fascismo é uma perigosa armadilha.
Ao
negar a possibilidade de uma terceira via, desconsiderando qualquer
alternativa que questione os parâmetros da ordem estabelecida, a
consigna "Somos todos Lula" deixa a esquerda socialista
refém de uma institucionalidade historicamente condenada e de um
programa político rebaixado e anacrônico. Em nome da necessidade de
uma frente eleitoral entre os partidos de esquerda contra o fantasma
do fascismo, prioriza-se o campo minado da disputa parlamentar de
cartas marcadas, em detrimento da mobilização independente da
classe trabalhadora em defesa de seus direitos imediatos e por
reformas sociais estruturais.
Trata-se
de uma estratégia simplesmente desastrosa, pois o único antídoto
efetivamente capaz de deter a escalada autoritária é a mobilização
social. Na ausência dos trabalhadores nas ruas, a ruína do sistema
político abre espaço para aventuras autoritárias, seja por meios
civis velados, como os ensaiados por Temer na intervenção militar
na segurança do Rio de Janeiro, seja por meios militares abertamente
ditatoriais, como os sugeridos por Bolsonaro e alguns generais. No
entanto, sem colocar na ordem do dia a necessidade de mudanças
capazes de criar as bases reais de uma sociedade democrática -
programa que extrapola os limites da Frente Eleitoral -, não há
como sensibilizar os trabalhadores a lutar pelas liberdades
democráticas.
O
núcleo da luta política gira em torno da disputa sobre o que
colocar no lugar da moribunda Nova República. Existem três
possibilidades históricas. O partido que se articula em torno do
projeto “Estanca a sangria”, idealizado por Jucá, defende o
prolongamento da agonia da Velha República por meio de uma grande
conciliação nacional que coloque um ponto final na cruzada contra a
corrupção. O partido do “Fora Todos reacionário”, expresso de
maneira explícita por Bolsonaro e de maneira cada vez menos
envergonhada pelos chefes militares, propõe a negação do resíduo
democrático que ainda resta da Constituição de 1988 pela “solução
ditatorial”. Por fim, o partido das ruas, que se manifesta de
maneira ainda difusa e embrionária, como ocorreu nas Jornadas de
Junho de 2013 e nas crescentes manifestações de rebeldia contra o
status quo, bate-se por superar a Nova República pela via da
“ampliação da democracia e dos direitos sociais", combinando
Estado de direito e “igualdade substantiva”. O “Fora Todos”
de baixo para cima, com conteúdo democrático e socialista, é a
única resposta à crise política capaz de enfrentar a raiz dos
problemas nacionais e deter o avanço da barbárie que envenena a
sociedade brasileira.
O
antídoto à guerra contra os trabalhadores e aos ataques contra o
Estado de direito passa por mudanças econômicas, sociais e
políticas de grande envergadura. Na ausência de um programa que
postule abertamente a necessidade histórica da revolução
democrática como única resposta civilizada à crise política
nacional, o debate nacional será integralmente pautado pela agenda
do capital, polarizando-se entre “conservadores”, que buscam
protelar a agonia da Nova República, e “modernizadores”, que
buscam em soluções autoritárias uma forma de garantir a ordem e o
progresso.
No
momento em que a classe trabalhadora começa a se deslocar do
lulismo, em busca de outros caminhos para enfrentar a ofensiva do
capital e resolver os problemas nacionais, a decisão da direção do
PSOL de transformar a batalha eleitoral, organizada em torno da
bandeira pela liberdade de Lula, no centro da conjuntura compromete
perigosamente o mandato histórico de um partido que nasceu com a
tarefa de superar o lulismo. Mais do que nunca, a tarefa prioritária
da esquerda socialista é construir um programa político, colado nas
lutas concretas dos trabalhadores, que coloque na ordem do dia, como
primeiro passo para a solução dos problemas fundamentais do povo, a
urgência da luta por "Direitos Já!" e suas consequências
necessárias, "Fim dos privilégios Já!". A gravidade do
momento histórico exige a revolução democrática seja colocada
como elemento central da conjuntura.
Plínio
de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Unicamp
e militante do PSOL.
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