Como boa parte dos crimes
perversos e dos atos lesivos realizados contra o povo foi na calada
da madrugada do dia 8 de fevereiro que a Assembleia Legislativa
aprovou a adesão do Estado do Rio Grande do Sul ao mal chamado
“Regime de Recuperação Fiscal (RRF)” do governo Temer [1]. A
sessão foi convocada às pressas, logo após a decisão do
desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, do Tribunal de Justiça, ter
sido revista por ele mesmo [2] – antes ele havia aceitado o mandado
de segurança impetrado por alguns deputados da oposição impedindo
a votação. [3]
Para atingir tal objetivo
o governo Sartori empreendeu uma verdadeira guerra que já conta com
algumas batalhas, e que ainda não está ganha, como alerta o jornal
Zero Hora de Porto Alegre, do Grupo RBS (afiliada da Rede Globo), que
tem atuado como uma espécie de Diário Oficial do Piratini:
“Pelas normas
impostas pela União, os Estados interessados no auxílio precisam
ter ao menos 70% de suas receitas correntes líquidas comprometidas
com as duas despesas. Entretanto, certidão anual do TCE, que será
emitida nos próximos dias, apontará que o comprometimento da
receita com pessoal em 2017 atingiu o índice de 54,7%. Mesmo se
somados os gastos da dívida com a União, no ano passado, o índice
sobe para 58,4%, distante do percentual exigido.” [4]
Esses dados já haviam
levado o Tesouro Nacional a negar pedido de pré-adesão solicitado
pelo governo gaúcho em novembro [5]. Como a forma atual de cálculo
não lhe favorece o Piratini busca mudar a fórmula para fazer os
números caberem nos critérios do Planalto [6]. É a velha arte de
“torturar os números” até que eles digam o que convém.
Por outro lado, a
oposição parlamentar, que apesar de pequena vem se beneficiando das
contradições políticas da base governista para impor derrotas ao
objetivo do governo desde dezembro, já anunciou que tentará anular
judicialmente a sessão que aprovou a adesão do Estado ao RRF, pelo
fato de não ter sido apresentado o contrato de adesão com as
garantias, critério exigido pelas regras do parlamento. Sim, os
deputados aprovaram um projeto que impactará por anos a vida da
sociedade gaúcha sem sequer conhecer os termos do contrato!
O que se sabe é que com
o RRF de Temer [7], que tem a sua origem no PLP 257/16 de Dilma [8],
os servidores públicos ficarão pelo menos 3 anos sem qualquer
reajuste (independente da situação econômica do Estado), novos
servidores não poderão ser contratados, os serviços públicos
serão sucateados e privatizados, haverá aumento de tributos (como o
ICMS e até mesmo o fim do desconto no IPVA para bom motorista [9]) e
a dívida pública estadual além de explodir (poderá chegar aos R$
100 bilhões) não poderá mais ser contestada – e assim uma
possível investigação do acordo da dívida de 1998, o qual Sartori
apoiou como líder do PMDB na Alergs na época, e ainda defende [10],
é jogada para debaixo do tapete.
Como se percebe o RRF
formaliza o estabelecimento de um ajuste fiscal permanente para o
andar de baixo independente do governador e do Estado apresentar
crescimento econômico ou não enquanto eleva o endividamento público
a patamares insuportáveis e leva a novas privatizações, ampliando
os ganhos do capital financeiro e do grande empresariado, também
independente da situação econômica do Estado ser de crescimento ou
não.
A crise estrutural e
social do Rio Grande do Sul se agravará ainda mais com tais medidas.
O ajuste fiscal não visa “colocar as contas públicas em ordem”,
como cinicamente se diz por aí. Seu objetivo é manter em ordem os
lucros do grande capital mesmo que às custas de arrebentar cada vez
mais com as contas públicas. É surreal a afirmação de Sartori de
que com a aprovação do RRF “a proteção aos menos favorecidos
venceu a defesa dos privilégios.” [11]
O empenho do governador
em aprovar a adesão ao RRF de Temer possui basicamente dois
interesses, não abertamente declarados: um econômico e outro
político.
Do ponto de vista
econômico, como todo o governo que defende o modo de produção
capitalista e tendo em vista a sua crise estrutural, temos o
compromisso de Sartori com as medidas de ajustes em benefício do
grande capital, que está devidamente representado no seu governo
pelo vice-governador, José Paulo Cairoli. Em outro artigo [12] já
analisamos a influência do empresariado nas medidas de ajustes do
governo gaúcho.
Como já afirmamos
anteriormente os planos de ajustes não visam organizar as contas
públicas mas manter em ordem os lucros do grande capital. É por
isso que desde 2015 o Piratini vem tentando derrubar a exigência de
plebiscito popular, previsto na constituição estadual, para
privatizar estatais rentáveis.
O Grupo CEEE apresentou
lucro líquido de quase 400 milhões em 2016 [13], a Sulgás em torno
de 120 milhões [14] e a CRM detém um potencial de 3 bilhões de
toneladas de carvão mineral já que o Rio Grande do Sul possui 80%
das reservas do mineral do país [15]. Não é difícil entender o
interesse do grande capital por essas estatais. E como o compromisso
do governo Sartori é com os lucros deste e não com o bom andamento
das contas públicas não é difícil entender porque ele está
disposto a ingressar até no Supremo Tribunal Federal (STF) para
buscar legitimidade para atropelar a constituição estadual e assim
garantir a venda dessas empresas sem passar por um crivo popular que
certamente lhe derrotaria. [16]
Ainda do ponto de vista
econômico é preciso falar um pouco sobre a dívida estadual com a
União, ponto central do RRF. De acordo com o Relatório Anual da
Dívida, elaborado pelo Tesouro Estadual, esta fechou 2016 na casa
dos R$ 57,4 bilhões [17]. As receitas do orçamento público para o
mesmo ano foram estimadas em R$ 58,8 bilhões [18], em suma, pouco
acima da dívida com a União. Se somarmos o restante da dívida
interna e a externa, o total da dívida pública estadual em 2016 foi
de R$ 66,2 bilhões [idem 17], superior a toda a arrecadação
prevista naquele ano. É maior até mesmo que as receitas de R$ 63,2
bilhões estimadas para o orçamento de 2018. [19]
Com o RRF o governo alega
que terá um “alívio financeiro de R$ 11,3 bilhões até 2020”
[idem 11] com a suspensão temporária dos pagamentos das parcelas da
dívida estadual. Não menciona que as projeções dos seus próprios
técnicos indicam um aumento de até R$ 30 bilhões [20] da dívida e
que o seu governo tem a intenção de adquirir um novo empréstimo de
quase R$ 10 bilhões [21] para, entre outras coisas, financiar PDVs
que certamente antecederão as privatizações, já que os passivos
sempre são estatizados nesses processos, que, não por acaso,
receberam corretamente o nome de privatarias.
Não haverá “tortura
numérica” capaz de esconder a explosão da dívida do Rio Grande
do Sul com este acordo. Ele enfrenta tanto este problema quanto
enfrentava em 1998. Sartori e o PMDB conseguiram a proeza de repetir
a história como farsa sem sequer mudar os protagonistas. O problema
do endividamento será aprofundado drasticamente e servirá de
justificativa para novos planos de ajustes, independente do RRF ainda
estar em vigência.
Do ponto de vista
político Sartori visa buscar a reeleição e sabe que não pode
chegar no pleito com os salários dos servidores atrasados. Com o RRF
visa obter uma margem financeira para terminar com os atrasos e até
realizar algum projeto. Esse é outro motivo que explica a busca pelo
empréstimo de quase R$ 10 bilhões -- mais precisamente R$ 9,8
bilhões.
Sartori quer chegar na
campanha eleitoral com o discurso de que “colocou a casa em ordem”.
Se isso vai emplacar são outros quinhentos mas é a única
possibilidade de reeleição para o governador. É uma tática cujo
êxito não deve ser desprezado já que estamos falando de um dos
maiores partidos do Estado, com uma estrutura gigantesca, com apoio
da grande mídia, dentro de um quadro eleitoral cujos concorrentes
viáveis operam na mesma lógica de defesa do capital (portanto nos
marcos do ajuste fiscal) e marcado por uma justa desilusão profunda
das massas com os políticos e o regime – ainda que haja
diferenças, principalmente na profundidade do ajuste, cabe destacar
que foram alguns desses elementos que ajudaram na reeleição, em
primeiro turno, de José Fortunati para a Prefeitura de Porto Alegre
em 2012. Era muito comum ouvir de populares na época que, dado que
são todos iguais e que nada mudará, então que se deixasse o
Fortunati, até para não ter que ir votar novamente em um segundo
turno inútil e estéril.
Assim, o oportunismo
eleitoral do PT e do PCdoB -- que vendem a ilusão da redenção nas
urnas através dos seus candidatos -- pode terminar sendo
surpreendido negativamente. Integrados ao regime ao ponto de Sartori
e Temer utilizarem um instrumento de ajuste elaborado pelo governo
Dilma, sua tática eleitoral de simples “desgaste” do governo
tem sido cúmplice da aprovação dos planos de ajustes do PMDB
gaúcho.
Seus dirigentes sindicais
atuam para derrotar greves cada vez que a base se rebela e quer
travar uma luta consequente, como tem sido no sindicato dos
profissionais da educação estadual (CPERS). Seus parlamentares
atacam duramente a base dos servidores quando sua mobilização
incomoda o normal funcionamento das instituições que aprovam o
ajuste como fizeram os deputados Edegar Pretto [22] e Luiz Fernando
Mainardi [23] quando professores estaduais bloquearam as entradas da
Assembleia Legislativa.
É necessário um novo
levante da base para organizar uma grande greve geral dos servidores
estaduais já no início do ano para derrotar nas ruas o RRF de
Sartori-Temer e qualquer outra medida de ajuste fiscal desses
governos, como a contra-reforma da previdência. Um movimento que
inclua na aliança a população que depende dos serviços públicos
e que tem se deparado com o seu sucateamento e a redução da sua
oferta, como as comunidades que estão sofrendo com os fechamentos de
escolas.
______________________________________________________
[1] Assembleia aprova, na
madrugada, adesão do RS ao “Regime de Recuperação Fiscal”.
08/08/2018.
[2] Desembargador volta
atrás e autoriza votação do RRF na Assembleia gaúcha. 07/02/2018.
[3] TJ derruba pauta do
Plano de Recuperação Fiscal na Assembleia. 06/02/2018.
[4] Dados oficiais podem
emperrar adesão do RS ao regime de recuperação fiscal. 10/02/2018.
[5] Tesouro Nacional nega
pedido de pré-acordo de recuperação fiscal ao RS. 23/11/2017.
[6] Piratini agenda
reunião com TCE para avaliar troca de metodologia de cálculo de
gastos com pessoal. 06/01/2018.
[7] LEI COMPLEMENTAR Nº
159, DE 19 DE MAIO DE 2017.
[8] PLP 257/2016. Projeto
de Lei Complementar.
[9] RRF prevê fim do
desconto no IPVA para bom motorista. 23/11/2017.
[10] Sartori defende
acordo da dívida firmado por Britto em 1998: ‘foi vantajoso para o
RS’. 09/03/2018.
[11] A mudança venceu o
atraso e a responsabilidade venceu o radicalismo, diz Sartori.
08/02/2018.
[12] Pacote de Sartori é
receita dos empresários. 28/11/2018.
[13] Grupo CEEE registra
lucro líquido de quase R$ 400 milhões em 2016. 29/03/2017.
[14] Lucrativa, Sulgás
pode ser privatizada por menos de 1% da dívida com a União.
20/12/2016.
[15] Lucrativas, Sulgás
e CRM na lista de vendas do governo gaúcho. 27/07/2015.
[16] Sartori pretende
ingressar com ação no STF para garantir venda de estatais.
02/02/2018.
[17] Relatório Anual da
Dívida Pública Estadual do RS 2016 - 8ª Edição. Elaborado pela
equipe da
Divisão da Dívida
Pública (DDIP) do Tesouro do Estado. Porto Alegre, 2017, p.11.
Dívida Pública.
Relatório Anual da Dívida Pública do RS.
[18] Orçamento do RS
para 2016 é aprovado na Assembleia Legislativa. 02/12/2015.
[19] AL aprova Orçamento
de 2018 do RS, com déficit de R$ 6,9 bilhões. 06/12/2017.
[20] Dívida do Rio
Grande do Sul com União pode crescer em até R$ 30 bilhões.
13/03/2017.
[21] Governo gaúcho
pretende contratar quase R$ 10 bilhões em empréstimos. 22/11/2017.
[22] Presidente da
Assembleia considera inaceitável Cpers bloquear acessos ao
Legislativo. 21/11/2017.
[23] Mainardi gravou um
vídeo e fez uma postagem em sua rede social atacando os professores
mas excluiu ambas publicações após repercussão negativa.
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