Por Gabriel Landi Fazzio
A prisão de Antonio Gramsci, em 8 de novembro de 1926, marca também o auge da repressão fascista, após o terceiro atentado contra Mussolini. O comunista foi sentenciado a cinco anos de confinamento e, no ano seguinte, a 20 anos de prisão em Turi. Em 1934, já bastante doente, foi libertado condicionalmente para tratar-se. Morreu em Roma, três anos depois, aos 46 anos. Em seu julgamento, o promotor teria afirmado que “é preciso impedir este cérebro de pensar por vinte anos”. Na verdade, só o que o fascismo pôde neste momento foi impedir Gramsci de participar ativamente da resistência. Então, por onze anos, Gramsci seguiu pensando, e escreveu os milhares de rascunhos que constituem seus chamados “Caderno do Cárcere”. Ao longo de todo esse tempo, vítima da tortura e da degradação da prisão, foi morrendo aos poucos – e finalmente foi impedido de desenvolver e defender suas ideias, falecendo de hemorragia cerebral.
A despeito de ter
destroçado fisicamente Gramsci, os fascistas não puderam impedir
que suas ideias se difundissem, e se tornassem força física
novamente na mão de centenas de pessoas. Mesmo no senso comum do
socialismo brasileiro, poucos pensadores marxistas estão tão
presentes como o comunista italiano (esta difusão, que salta aos
olhos, é inclusive objeto de uma importante obra do companheiro
Lincoln Secco). Mas não é de se espantar que, diante de tão ampla
difusão, o nome de Gramsci seja mais conhecido que a profundidade de
suas ideias. Da mesma forma, a escolha do autor como inimigo maior da
cruzada de muitos ideólogos reacionários não é lá grande
novidade.
No Brasil, o ataque
teórico a Gramsci o acusa de ser o gênio por trás do que os
anticomunistas chamam de “marxismo cultural”: segundo um dos
inquisidores, Gramsci representaria uma ruptura com o leninismo
em direção ao pensamento da Escola de Frankfurt. Essa guinada seria
resultado de uma desilusão com o proletariado, que teria levado a
uma reorientação estratégica: “em vez de transformar a
condição social para mudar as mentalidades, iria mudar as
mentalidades para transformar a condição social. […] Gramsci
descobriu a “revolução cultural”, que […] faria dos
intelectuais, em vez dos proletários, a classe revolucionária”.
Continuando em sua
pregação anti-sistêmica reacionária, concluem que todas as
universidades, meios editoriais e de comunicação, em suma, a
cultura ocidental está, desde tal giro estratégico, infestada pelo
marxismo cultural. O que espanta aqui não é tanto a má-fé que
escorre com a baba dessas bestas, mas a impressão de que boa parte
de tais bobagens poderiam muito bem vir da boca de um militante de
esquerda!
Um exemplo que seria
cômico pelo rechaço que encarou, se não fosse trágico pelo eco
que segue encontrando, é o texto que acusa as feministas e lgbts
“radicais” de não terem entendido Gramsci. Seriam totalitárias
suas pretensões de “impor, através do estado, a moral” –
e o exemplo criticado são as políticas penais e educacionais
anti-homofobia. Então, o autor nos “explica” como pensava
Gramsci:
“Caberia então às
classes subalternas se organizarem para conquistar uma hegemonia
laica e marxista ocupando as mesmas instituições [da classe
dominante]. Notem, em todo o momento Gramsci fala em
hegemonia, não em imposição.”
É, no fundo, o mesmo
tipo de raciocínio de quem acha que, para disputar ideias em meio a
um senso comum conservador, é preciso aprender a conversar com o
fascista [1]. Será que essa compreensão (que “pacificamente”
recua frente qualquer violência e que parece propor uma ação
comunicativa em favor de um pacífico consenso geral) acerta ao
atribuir ao conceito gramsciano de hegemonia sua legitimidade?
Gramsci como leninista
Talvez o equívoco mais
comum seja atribuir a Gramsci a criação do conceito de hegemonia.
Na verdade, o termo era utilizado desde a antiguidade grega para
descrever a influência e o domínio de uma ou mais cidades-estados
por determinada “potência” regional. Por outro lado, caberia aos
marxistas russos, como Martov, Plekhanov e Lenin, iniciar a utilizar
a noção de hegemonia para refletir sobre o papel dirigente do
proletariado na aliança com o campesinato, a fim de estabelecer
a ditadura do proletariado.
O próprio Gramsci não
permite dúvidas ao atribuir a Vladimir Ilitch Ulianov, Lenin, a
originalidade na introdução do conceito de hegemonia no marxismo:
“Disto decorre que o
princípio teórico-prático da hegemonia possui também um alcance
gnosiológico; e, portanto, é nesse campo que se deve buscar a
contribuição teórica máxima de Ilitch à filosofia da práxis
[como Gramsci se refere ao marxismo, a fim de escapar à censura de
seus carcereiros] [2]. Ilitch teria feito progredir efetivamente a
filosofia como filosofia na medida em que fez progredir a doutrina e
a prática política. A realização de um aparelho hegemônico,
enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das
consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de
conhecimento, um fato filosófico.
[…] Em outro local,
assinalei a importância filosófica do conceito e da realidade da
hegemonia, devido a Ilitch. A hegemonia realizada significa a crítica
real de uma filosofia, sua real dialética.” [Livro 1 dos
“Cadernos do Cárcere”].
Não há fundamento,
portanto, no discurso dos “democratas ocidentais” que, ao lado
dos reacionários, apresentam a formulação de Gramsci sobre
“hegemonia” como uma ruptura (uma “modernização”) do
marxismo, afastado do “radicalismo impositivo” do leninismo.
Chris Harman nota, a esses respeito, que a raiz da distorção
reformista do pensamento gramsciano estaria atribuir ao bolchevique
sardo a ideia de que:
“o poder da classe
dominante no Ocidente se assenta, principalmente, não no controle
físico através do aparelho policial-militar, e sim na dominação
ideológica exercida através de uma rede de instituições
voluntárias que se estendem através da vida cotidiana
(“sociedade civil”): os partidos políticos, os
sindicatos, as igrejas, os meios de comunicação. O aparelho
repressivo do Estado é apenas uma dentre as muitas defesas da
sociedade capitalista. Depreende-se disto que a luta chave para os
revolucionários não é um ataque direto contra o poder estatal, e
sim uma luta pelo domínio ideológico, por aquilo que Gramsci chama
de “hegemonia”. A hegemonia se conquista através de um processo
prolongado por muitos anos, e exige paciência e sacrifícios
ilimitados por parte da classe operária. […] E enquanto não
haja realizado esta tarefa, ou seja, enquanto não tenha se tornado
classe “hegemônica“, as tentativas de tomar o poder estatal não
acabarão senão em derrota.“
Esse tipo de
entendimento, evidentemente, joga a revolução para um futuro
distante, ao qual se precederia um prolongado processo de
convencimento. Assim, não é de espantar que esse tipo de
perspectiva “revolucionária” nem tenha dirigido qualquer
processo de transformação radical da sociedade desde seu surgimento
nas teorias do PCI pós-Gramsci; nem bem tenha conseguido convencer
ninguém de qualquer coisa – senão seus próprios militantes da
“necessidade” de baixar, uma a uma, todas as suas bandeiras mais
radicais e pactuar compromissos com os liberais e conservadores,
conforme a conveniência e o senso de oportunidade. Talvez
seja essa a maior característica do oportunismo: mais do que o
proveito pessoal obtido por cada um de seus dirigentes em tais
políticas, a resignação ao limite das oportunidades do presente.
Fala-se em correção de forças para justificar os limites de uma
ação política – mas não se leva em conta que só pela ação
política é possível mover os limites de uma dada correlação de
forças.
Na verdade, é um erro
temerário, na teoria e na prática, entender a luta pela hegemonia
como o avesso de uma suposta “imposição totalitária”, ou seja,
a renúncia da violência revolucionária, da força, em favor apenas
da “disputa de ideias”. Assim, separa-se mecanicamente duas
tarefas do partido revolucionário, da mesma forma que
artificialmente separa-se as reflexões dos “Cadernos do Cárcere”
do pensamento e da prática pregressa de Gramsci, seja nos seus
negligenciados escritos de juventude [3], ou mesmo nas Teses de Lyon
do PCI e em seu texto inconcluso sobre a “questão meridional”,
ambos do mesmo ano de sua detenção, e nos quais suas ideias sobre
hegemonia e guerra de posições se expõe já com alguma
centralidade.
Disputa de hegemonia
ou adesismo ao Estado?
Não é possível, em
poucas linhas, uma profunda reflexão sobre os conceitos de
hegemonia, Estado, partido e estratégia em Gramsci. Buscando
delimitar o objeto da presente exposição, parece ser indispensável
repelir a concepção de Gramsci enquanto um culturalista, um
defensor do reformismo democrático, crente numa suposta primazia
do convencimento ideológico sobre a força física. São tais
noções que impregnam, à direita e à esquerda, as falas sobre “em
vez de transformar a condição social para mudar as mentalidades,
mudar as mentalidades para transformar a condição social” [4], ou
as que advertem que “caberia então às classes subalternas se
organizarem para conquistar uma hegemonia laica e marxista ocupando
as mesmas instituições [da classe dominante]. Gramsci fala em
hegemonia, não em imposição.” Cabe demonstrar o equívoco de
tais concepções [5], bem como recobrar a legitimidade de Gramsci
como o defensor convicto da estratégia da tomada revolucionária do
poder político.
“Para a filosofia da
práxis, as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são
fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua
natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade,
etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os
governados intelectualmente independentes dos governantes, para
destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento
necessário da subversão da práxis. Ao que
parece, Croce se aproxima mais da interpretação materialista vulgar
do que a filosofia da práxis. […] A filosofia da práxis, ao
contrário, não tende a resolver pacificamente as
contradições existentes na história e na sociedade, ou,
melhor, ela e a própria teoria de tais contradições; não
é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o
consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas;
é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si
mesmas na arte de governo e que têm interesse em conhecer todas as
verdades, inclusive as desagradáveis.” [Livro 1 dos “Cadernos
do Cárcere”].
Ou seja: quem não
entendeu Gramsci parece ter sido o colega que chama as classes
subalternas a “conquistar a hegemonia ocupando as mesmas
instituições [da classe dominante].” A proposta aqui parece cheia
de ilusões sobre uma suposta neutralidade instrumental do Estado,
tudo restando definido só pela “hegemonia” – algo que não tem
qualquer semelhança com a compreensão de que é necessário
“destruir uma hegemonia e criar uma outra”. Os
reformistas e conciliadores que se aventuram por esse caminho parecem
dizer: “sim, reconhecemos que o Estado burguês é um tanque de
guerra contra as massas oprimidas; mas só porque quem o dirige
(“hegemoniza”) é a burguesia! Estivéssemos nós à frente da
direção, araríamos a terra e semearíamos um mundo novo com esse
mesmo tanque de guerra”!. Gramsci nos adverte a não enfrentar
apenas o aparato repressivo estatal, mas mesmo a totalidade da
hegemonia burguesa. Isso não é um convite a deixar a luta pelo
poder para depois de resolvida a luta pelo “consenso”. Inclusive,
a posição de Gramsci sobre a opinião pública chama a atenção
para o quanto ela envolve de imposição:
“O que se chama
“opinião pública” está estreitamente vinculado com a hegemonia
política, ou seja, é o ponto de contrato entre a “sociedade
civil” e a “sociedade política”, entre o consenso e a força”.
[Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
Para quem já delirou até
aqui, não surpreende que se iluda em estar embasado em Gramsci.
Aparentemente, tal ilusão teria algo a ver com a confusão entre
guerra de posições e ocupação indiscriminada de
posições no interior do Estado.
Guerra de posições
ou ocupação de espaços?
Quando se perde de vista
que Gramsci fala em “derrubar uma hegemonia e criar outra”, seu
pensamento facilmente é invocado para justificar a “disputa de
hegemonia” – que daqui em diante se confunde com todo tipo de
compromisso para “influenciar” (“hegemonizar”) instituições
sociais e estatais. Talvez seja preciso insistir que o italiano, como
leninista, condenava a recusa por princípio da disputa
eleitoral. Mas, nas masmorras do fascismo, Gramsci esteve muito
distante de vislumbrar a chegada ao poder pacífica e eleitoral
(“democrática”) de partidos populares.
Parece, por isso, haver
bastante confusão no que significaria a distinção entre “ocidental
e oriental” em Gramsci. Muito dessa confusão se centra no que
signifique a “guerra de posições”. Como aponta Harman, Gramsci
faz nos Cadernos do Cárcere uma distinção entre dois tipos de
guerra:
“1. A guerra de
manobra ou de movimento, que implica o movimento rápido por parte
dos exércitos inimigos, com repentinos avanços e retrocessos, em
que cada um procura adentrar o flanco do outro exército, e cercar
suas cidades;
2. A guerra de
posição, uma luta prolongada em que os dois exércitos em batalha
chegam em um impasse, cada um quase incapaz de avançar, como nas
guerras de trincheira de 1914-1918.”
“Os técnicos
militares [consideram] que nas guerras entre os Estados mais
adiantados industrialmente e em civilização, a guerra de movimento
tem que se considerar reduzida já a uma função tática mais que
estratégica. […] “A mesma redução há que praticar na arte e
na ciência da política, pelo menos pelo que faz aos Estados mais
adiantados, nos quais a “sociedade civil” tornou-se uma estrutura
muito complexa e resistente aos “ataques” catastróficos do
elemento econômico imediato (crises, depressões etc.)”.
No entanto, não é por
falta de explicações de Gramsci que os reformistas distorcem o
significado dessa guerra de posições:
“A guerra de
posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode
nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as
grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as
“trincheiras” e as fortificações permanentes da guerra de
posições. […]
Já assinalei em outra
ocasião que em uma determinada sociedade ninguém está
desorganizado e sem partido, sempre que se entenda organização e
partido em sentido amplo e não formal. Nesta multiplicidade de
sociedades particulares […] uma ou mais delas prevalecem relativa
ou absolutamente, constituindo o aparato hegemônico de um
grupo social sobre o resto da população (ou sociedade
civil), base do Estado entendido estritamente
como aparato governativo-coercitivo.
Tática das grandes
massas e tática imediata de pequenos grupos. Entra na discussão
sobre a guerra de posições e a de movimentos […]. É também,
(pode dizer-se) o ponto de conexão entre a estratégia e a tática,
tanto em política como na arte militar. Os indivíduos isolados
(inclusive como componentes de vastas massas) tendem a conceber a
guerra instintivamente como “guerra de guerrilhas” […] Na
política o erro se produz por uma inexata compreensão do que é o
Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia).”
[Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
É inexata, portanto
(para dizer o mínimo), a compreensão de que “Gramsci fala em
hegemonia, não em imposição” – não é uma compreensão
integral. Mas mais inexata ainda é a compreensão que busca nos
órgãos do Estado, e não nas grandes organizações populares,
as trincheiras da guerra de posições. Ao contrário disso, Gramsci
parece estar em consonância com a tese leninista de que a ditadura
do proletariado seria, nos termos do Manifesto Comunista, “a
conquista da democracia pela luta”. Sobra pouco espaço, assim,
para o idealismo que, flertando com o jusnaturalismo, busca vincular
Gramsci a um suposto “valor universal” da democracia. Na verdade,
o próprio Gramsci chegou a criticar o idealismo tão comum no trato
da questão da democracia:
“Entre tantos
significados de democracia, o mais realista e concreto me parece que
se pode extrair em conexão com o conceito de hegemonia. No sistema
hegemônico, existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos
dirigidos, na medida em que [o desenvolvimento da economia e, por
tanto] a legislação [que expressa tal desenvolvimento] favorece a
passagem [molecular] dos grupos dirigidos ao grupo dirigente. No
Império Romano existia uma democracia imperial-territorial na
concessão da cidadania aos povos conquistados, etc. Não podia
existir democracia no feudalismo pela constituição de grupos
fechados, etc.” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
Athos Lisa, companheiro
de Gramsci na prisão de Turi, relata em 1933 algumas das discussões
na prisão. Seu relato reitera sempre que pode estar sendo inexato
nos conceitos, mas afirma que:
“Com respeito ao
“problema militar e o partido”, estabelecia os seguintes
conceitos: a conquista violenta do poder exige do partido do
proletariado a criação de uma organização de tipo militar que,
apesar de sua forma molecular, se difunda em todas as ramificações
da organização estatal burguesa e seja capaz de torná-la
vulnerável de acertá-la com golpes fortes no momento decisivo da
luta. […]
O partido tem como
objetivo a conquista violenta do poder, a ditadura do proletariado,
mas deve realizá-lo usando a tática que melhor corresponda a uma
determinada situação histórica e na realização das forças de
classe existentes nos diversos momentos de luta.
Da aptidão do partido
para manobrar nestas fases de luta […]
dependerão as possibilidades de superar as alianças intermediárias
que assinalaram as etapas do desbloqueio dos estratos sociais a
conquistar e à modificação das relações de forças”.
Provavelmente é a esse
relato que Harman se refere quando afirmar:
“Gramsci nunca
sugere nos Cadernos do Cárcere que a luta pela hegemonia possa
resolver, por si só, o problema do poder estatal. Inclusive em um
período no qual a “guerra de posição” cumpre um papel
dominante, Gramsci fala de um “elemento “parcial” de
movimento”, e diz que a “guerra de movimento” cumpre “mais
uma função tática que uma função estratégica”.
Em outras palavras: na
maior parte do tempo, os revolucionários se ocupam da luta
ideológica, usando a tática da frente única em lutas parciais para
tomar a direção das mãos dos reformistas. Ainda há momentos
periódicos de violenta confrontação, nos quais um dos lados tenta
romper as trincheiras do outro por meio de um ataque frontal. A
insurreição armada seguia sendo, para Gramsci, como deixou claro
nas conversas que teve na prisão, “o momento decisivo da luta”.”
Essa discussão sobre a
guerra de posições, no fim das contas, remonta pelo menos o fim do
século XIX, como apontado em outra ocasião. Engels afirmava, em uma
introdução à obra de Marx “Luta de Classes na França”:
“Quer isto dizer que
no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo
nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram
muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais
favoráveis para a tropa. Por conseguinte, uma futura luta de ruas só
poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por
outros fatores. Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande
revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo
com maiores forças. Estas, porém, hão de preferir a luta aberta à
táctica passiva da barricada como aconteceu em toda a grande
Revolução Francesa.”
Enquanto, de suas
“posições”, os gramscianos vulgares buscam separar a arma da
crítica da crítica das armas, chama a atenção que o Sr Olavo
de Carvalho atribua a Gramsci, excentricamente, a autoria pela
concepção de “revolução cultural”, tradicionalmente associada
ao maoismo. Às vezes chega a ser espantoso como suas cretinices
encontrariam eco, descontextualizadas, em discurso de muitos
reformistas. Não é o caso aqui.
O “marxismo ocidental”
(como aponta Domenico Losurdo, em seu “Luta de Classes”) do senso
comum militante ignora que, nos Cadernos, muito do que Gramsci
questiona sobre a hegemonia se liga às suas reflexões sobre o papel
do Partido Comunista na aliança entre os proletários e os
camponeses após a chegada dos bolcheviques ao poder na oriental e
“gelatinosa” Rússia – ou seja, na construção de um aparelho
estatal proletário que detivesse a hegemonia sobre as demais
classes. Prefere não perceber que se, por um lado, a última metade
do século passado assistiu a um relativo compromisso entre o
proletariado dos países centrais e seus respectivos governos
burgueses, o “oriente” foi o palco de centenas de revoluções,
de todos os tipos e resultados. Assim, embasbacados, devem ver a
afirmação do Sr Olavo de Carvalho como apenas uma bizarrice. E
provavelmente é mesmo. Mas, se formos verdadeiramente consequentes
com Gramsci, talvez aqui o situássemos melhor do que ao lado da
política parlamentar: é certo que as questões da hegemonia do
Partido Comunista na China camponesa intrigariam muito mais o
italiano do que toda a fraseologia sobre como é preciso abrir mão
de afirmar a necessidade da revolução (mesmo em discursos que dizem
reconhecer tal necessidade!) em nome do convencimento e da
“hegemonia”.
Infelizmente para os
reformistas, não há em nenhum lugar dos Cadernos uma receita para
como equacionar essa contradição: submergir no estado e em sua
hegemonia, e esperar movê-la de dentro. No fim, o que resta é o
desespero, quando é preciso manobrar para fora de suas “posições”,
diante dos avanços da reação. Por isso os conciliadores, mesmo os
mais bem intencionados, acabam por ser oportunistas: esperam uma
oportunidade fantástica, enquanto a direita lhes impõe sua vontade
nas oportunidades que cria. Como Gramsci diria, a postura reformista
diante da violência fascista lembra a do castor que “seguido pelos
caçadores que querem lhe arrancar os testículos dos quais se
extraem remédios, para salvar sua vida, ele mesmo os arranca”.
[1] Sobre o tema, melhor
seria concordar com a máxima de que “com o fascismo não se
dialoga nem se negocia: se esmaga, ou nos esmaga”.
[2] Como bem lembrar
Chris Harman: “A primeira e mais óbvia limitação era a de que o
Estado fascista lhe vigiava noite e dia, e lia cada palavra que
escrevia. Para evitar a censura da prisão tinha que ser vago quando
se referia a alguns dos mais relevantes conceitos do marxismo. Tinha
que usar uma linguagem ambígua esopiana que ocultava seus reais
pensamentos, não somente de seus carcereiros, mas também
frequentemente de seus leitores marxistas e, às vezes, suspeita-se,
de si mesmo.
Para tomar um ponto
decisivo: Gramsci frequentemente usa a luta da burguesia pelo poder
contra o feudalismo, como uma metáfora para se referir à luta dos
trabalhadores pelo poder e contra o capitalismo. Contudo, a
comparação é perigosamente enganosa. Uma vez que as relações de
produção capitalistas têm como ponto de partida a produção de
mercadorias – a produção de bens para o mercado – que pode se
desenvolver dentro da sociedade feudal, a burguesia pode utilizar seu
crescente domínio econômico para construir sua posição ideológica
dentro da estrutura do feudalismo, antes de tomar o poder. Por outro
lado, a classe trabalhadora pode chegar a ser economicamente
dominante somente através do controle coletivo dos meios de
produção, o que requer a tomada, por meio das armas, do poder
político. Somente então os trabalhadores controlarão a imprensa,
as universidades etc., enquanto que os capitalistas foram capazes de
comprá-los muito antes de chegarem a ser politicamente dominantes.
Gramsci tinha, necessariamente, que se mostrar ambíguo neste ponto.
Mas, hoje essa ambiguidade oferece uma desculpa para supostos
intelectuais que pretendem praticar a luta de classes através da uma
“prática teórica”, “uma luta pela hegemonia intelectual”,
quando de fato, não fazem mais que avançar em suas próprias
carreiras acadêmicas.
Além disso, Gramsci não
podia escrever abertamente sobre a insurreição armada. Esta lacuna
nos Cadernos do Cárcere deu a seus supostos seguidores a
possibilidade de ignorar a dura realidade do poder estatal que
mantinha Gramsci sob suas garras.”
[3] Vide Vol I
(http://migre.me/s20jj), Vol II, (http://migre.me/s20iR), Vol III
(http://migre.me/s20jM) e Vol IV (http://migre.me/s20k2).
[4] Apenas de má-fé se
poderia situar Gramsci tão longe do terreno do marxismo! “Se é
verdade que nenhum tipo de Estado pode deixar de atravessar uma fase
de primitivismo econômico-corporativa, daí se deduz que o conteúdo
da hegemonia política o novo grupo social que fundou o novo tipo de
Estado deve ser predominantemente de ordem econômica: se trata de
reorganizar a estrutura e as relações reais entre os homens e o
mundo econômico ou da produção. Os elementos de superestruturas
não podem ser senão escassos e seu caráter de previsão e de luta,
mas com elementos “de plano”, todavia escasso; o plano cultura
será, sobretudo, negativo, de crítica do passado.[…] Isso é
precisamente o que não e verificar no período das Comunas;
inclusive a cultura, que permanece como função da Igreja, é
precisa de caráter antieconómico (da economia capitalista
nascente), não está orientada a dar a hegemonia à nova classe,
senão inclusive impedir que esta a conquista; o Humanismo e o
Renascimento, pelo mesmo, são reacionários, porque marcam a derrota
da nova classe, a negação do mundo econômico que lhe é próprio,
etc” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
[5] Valeria lembrar
também que mesmo a ideia de contra-hegemonia é erroneamente
atribuída a Gramsci: “A partir do aparecimento da obra de Raymond
Williams, Marxism and Literature (1977), entra em circulação, na
literatura sobre o pensamento de Gramsci, o conceito de
“contra-hegemonia”. Para Williams, o conceito de hegemonia era
insuficiente para compreender a complexidade da hegemonia. Entendendo
que a hegemonia «não existe apenas passivamente como forma de
dominação», mas encontra «resistências continuadas», considerou
necessário acrescentar o conceito de «contrahegemonia» e de
«hegemonia alternativa» (WILLIAMS, 1977, p. 116)
Extraído de:
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