domingo, 16 de fevereiro de 2020

Guedes, liberais e contradições

.




Às vezes não é necessário acessar teorias divergentes para demonstrar os equívocos e contradições de medidas e ações defendidas por certos políticos, militantes, correntes, movimentos e partidos. Há casos em que basta acessar os medalhões que dizem seguir e se inspirar.

O plano econômico de Paulo Guedes é apoiado pela maioria dos liberais brasileiros. Alguns deles, para se esquivar da estupidez de Bolsonaro, dividem o governo em dois níveis: a racionalidade e sabedoria dos integrantes da pasta econômica, incluindo o próprio Guedes, e a irracionalidade e estupidez de integrantes de outras pastas.

Alguns poucos exemplos bastariam para demonstrar que Guedes é parte do todo bolsonarista: quando prometeu entregar, com o ajuste neoliberal, um Estado rousseauniano [1]; quando avalizou o AI-5 [2]; quando sugeriu que domésticas não deveriam ir à Disney [3]; quando sua Reforma da Previdência considerou “ricos” pessoas com salário de R$ 2.231,00 [4]; quando chamou servidores públicos de “parasitas” [5]; etc.

Mas queremos ir mais fundo e para isso vamos comparar o pensamento do economista Ludwig von Mises (1881-1973), festejado nos círculos liberais, com duas medidas do governo em evidência na atualidade: a PEC do Pacto Federativo e a Reforma Administrativa.

Mises era um liberal austríaco defensor do Estado mínimo que rechaçou propostas anarcocapitalistas [6]. Defendia a retirada do Estado da economia mas sabia que a economia de mercado necessitava do mesmo [7]. Por isso teve de abordar a forma de funcionamento do aparato estatal e traçou a sua diferença com a iniciativa privada.

Nos negócios com objetivo de lucro, a liberdade de ação dos gerentes e subgerentes é limitada por considerações de lucro e perda. A motivação pelo lucro é a diretriz necessária e suficiente para submetê-los aos desejos dos consumidores. Não há necessidade de limitar sua liberdade de ação por instruções detalhadas e minuciosas. Se forem eficientes, essa ingerência seria no mínimo supérflua, senão perniciosa por lhes atar as mãos. Se forem ineficientes, ela não contribuiria para melhorar o seu desempenho. Tal ingerência somente lhes proporcionaria a desculpa pouco convincente de que seu fracasso foi causado por regulamentos inadequados. A única instrução necessária é evidente em si mesma e nem precisa ser explicada: procure obter lucro.

Na administração pública, na condução dos negócios do governo, as coisas são diferentes. Neste campo, a liberdade de ação dos governantes e de seus auxiliares não é limitada por considerações de lucro e perda. Se seu chefe supremo – seja ele o povo soberano ou um déspota soberano – deixar-lhes as mãos livres, estará renunciando à sua própria soberania. Esses governantes se converteriam em agentes que não precisariam prestar contas a ninguém e seu poder suplantaria o do povo ou o do déspota. Fariam o que quisessem e não o que seu chefe esperava que fizessem. Para evitar esse resultado e para submetê-los à vontade do chefe, é necessário dar-lhes instruções detalhadas de como devem proceder em cada caso. Ficam assim obrigados a cuidar de suas tarefas, obedecendo estritamente a essas regras e regulamentos. Sua liberdade para ajustar seus atos ao que lhes parece à solução mais apropriada de um problema concreto é limitada por essas normas. São burocratas, isto é, pessoas que em qualquer circunstância devem observar um conjunto de regras inflexíveis.” [8]

Contraste-se as palavras de Mises acima com a proposta da PEC do Pacto Federativo de acabar com os mínimos constitucionais, como em saúde e educação, e deixar a cargo dos gestores públicos decidirem onde alocarão tais recursos, o que vem sendo exaltado como “liberdade orçamentária”.

Renunciando à soberania ao deixar os governantes com as mãos livres? Que nada! Para Guedes “Os políticos têm de controlar 100% do orçamento” [9]. Mas ele não está só: o Instituto que leva o nome do liberal austríaco reproduziu publicação do Money Report que celebra que “Quem ganha: União, estados e municípios, que teriam liberdade para definir as prioridades dos seus orçamentos” ao passo que “Quem perde: Defensores da indexação, que temem um aumento da desigualdade social com o fim de gastos obrigatórios.” [10]

Em primeiro lugar, chama a atenção que os perdedores são os “defensores da indexação”, ou seja, a esquerda, e não a população. Parece que a prioridade para parte da direita brasileira é provocar a esquerda e não melhorar a vida do povo. Em segundo lugar, fica parecendo que nossos pobres governantes, que já cortam e desviam recursos dos serviços básicos (às vezes para o próprio bolso), só não cumprem com os investimentos mínimos previstos em lei por culpa de uma burocracia malvada e inflexível.

A supressão e o afrouxamento da legislação estatal se tornou um fetiche tamanho para alguns liberais que eles só enxergam a desregulamentação em si e a comemoram, mesmo que seja dos políticos que, menos regulados terão de fato mais liberdade, e mais tranquilidade, para desviar e embolsar o dinheiro público.

A gerência burocrática, diferentemente da gerência que visa ao lucro, é o método usado na condução de assuntos administrativos, cujos efeitos não têm valor em dinheiro no mercado. A boa performance no cumprimento dos deveres confiados a um departamento de polícia é da maior importância para preservação da cooperação social e beneficia todos os membros da sociedade. Mas não tem preço no mercado; não pode ser vendida nem comprada. Assim sendo, não pode confrontar o resultado obtido com as despesas incorridas. É benéfica, resulta em ganhos, mas esses ganhos não podem ser expressos em termos monetários, como o são os lucros. Os métodos de cálculo econômico e, especialmente, a contabilidade de partidas dobradas não lhes são aplicáveis. O sucesso ou o fracasso das atividades de um departamento de polícia não podem ser apurados pelos procedimentos aritméticos utilizados pelas atividades com fins lucrativos. Nenhum contador pode informar se um departamento de polícia ou uma de suas subdivisões é rentável ou não.

(…) Não resta a menor dúvida de que os serviços prestados pelo departamento de polícia da cidade de nova York poderiam ser consideravelmente melhorados se sua dotação orçamentária fosse triplicada. Mas a questão está em saber se esse melhoramento seria suficiente para justificar ou a diminuição dos serviços prestados por outro departamento – por exemplo, os do departamento de higiene pública – ou a restrição do consumo dos contribuintes. Esta questão não pode ser respondida pela contabilidade do departamento de polícia. Este só tem condições de informar sobre as despesas incorridas; não tem como fornecer nenhuma informação acerca dos resultados obtidos, uma vez que esses resultados não podem ser expressos em termos monetários. (...)” [11]

Novamente compare-se essas citações de Mises com todo o discurso feito em relação à Reforma Administrativa proposta para o serviço público brasileiro cujas analogias com a iniciativa privada abundam.

Três dias após Paulo Guedes pedir desculpas por ter chamado os servidores públicos de “parasitas” [12] Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil cujo pai serviu à ditadura civil-militar, saiu em solidariedade ao “arrependido” Ministro da Economia que seria vítima, tal qual o “investigador Eliot Nessem em sua missão para parar Al Capone”, de “intocáveis” e “sabotadores” “burocratas, usualmente de economistas e juristas que exercem o poder há décadas e que podem emperrar avanços.” [13]

Artigo de Leandro Vieira publicado no Instituto Mises Brasil critica a “cultura do funcionalismo público” [14], que seria o fato de muitas pessoas preterirem a iniciativa privada por concursos públicos “buscando vagas em trabalhos que não acrescentam nada ao avanço da nação.” “Assim se destrói um país”, sentencia.

Nem parece que Vieira fez mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que foi professor da Escola de Administração da mesma instituição, títulos que ele parece ostentar com orgulho.

Do jeito que resmunga dá a impressão de vivermos em um dos países nórdicos que possuem muito mais servidores públicos, no percentual da força de trabalho empregada, do que o Brasil. Na Suécia, aliás, há uma lei que dá ao funcionário, inclusive privado, licença de 6 meses para empreender [15]. Mas como nenhum liberal brasileiro apologista do “empreendedorismo” defende algo parecido por aqui resta queixar-se da qualidade dos “empreendedores” do país, como faz Vieira:

Por aqui, empreender passou a ser uma saída para os menos preparados, para os mais necessitados, para aqueles que não têm condições de arrumar um emprego decente ou de passar em um concurso público.”

Por fim ele faz um chamado individual a “resistir fortemente à tentação de nos juntarmos a ele [o Estado]”. Se depender de Guedes a resistência vai se tornar desnecessária, muitas “pessoas com preparo e talento” qualificarão as esquinas com quentinhas e os aplicativos com pedaladas enquanto os amigos e parentes dos políticos com “as mãos livres” aportarão no que sobrar de aparato estatal.

A obsessão ajustadora de nossos liberais comemora qualquer redução do Estado e trata os servidores públicos como inimigos, ignorando as consequências. Uns fazem isso por lucros, outros por pura tolice ideológica. Em um país onde 90% da pesquisa é realizada em instituições públicas atacar seus profissionais não trará desenvolvimento algum. E recorremos a um trio de professores universitários “austríacos” para demonstrar como funciona esse setor:

“(...) Nas públicas, apesar da predominância das teorias econômicas intervencionistas, ainda existe liberdade acadêmica: podemos dominar o conhecimento de teorias rivais, passar em concursos públicos, participar dos debates e propor nossas ideias. No sistema atual, poderíamos apenas dar (muitas) aulas em faculdades privadas, sem fazer pesquisa.” [16]

Eles ainda informam que Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Friedrich von Wieser e o próprio Ludwig von Mises ocuparam cargos públicos sendo que Menger recebia “um salário bem elevado” na Universidade de Viena.

Chega a ser constrangedor que nós, sendo marxistas, tenhamos que apontar, com bibliografia liberal, as contradições de Paulo Guedes e dos apoiadores de suas medidas de ajuste que reivindicam o liberalismo econômico. Mas isso só mostra o tamanho da estupidez deles.



* Em tempo: Como toda a capitulação tem limite enquanto redigíamos essas linhas Hélio Beltrão e outros “austríacos” criticavam a defesa de Guedes da desvalorização do Real.



____________________________________________________


[1] 'Dá para esperar 4 anos de um liberal-democrata após 30 de centro-esquerda?', diz Guedes. Paulo Guedes, entrevista à Folha de São Paulo, 03/11/2019.

[2] 'Não se assustem se alguém pedir o AI-5', diz Guedes. Folha de São Paulo, 25/11/2019.

[3] Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada’. O Globo, 12/02/2020.

[4] PEC 06/2019 – Reforma da Previdência, p.53-54.

[5] Guedes chama funcionários públicos de “parasitas”. IstoÉ Dinheiro, 07/02/2020.

[6] Von Mises, Ludwig. Liberalismo – Segundo a Tradição Clássica, Capítulo 1 – Os Fundamentos da Política Econômica Liberal - 7. Estado e Governo, p.63-66. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

[7] Von Mises, Ludwig. Intervencionismo, uma Análise Econômica – Introdução – 4. O estado capitalista e o estado socialista, p.27. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

[8] Von Mises. Ação Humana – Capítulo XV: O mercado, p.370-371. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

[9] “Os políticos têm de controlar 100% do orçamento”. Paulo Guedes, entrevista ao Estadão, 10/03/2019.

[10] No pós-Previdência, pacto federativo será prioridade. Money Report, publicado no Instituto Mises Brasil em 09/09/2019.

[11] Idem [8], p.369-370.

[12] Paulo Guedes pede desculpas por chamar servidores de ''parasitas''. Correio Braziliense, 10/02/2020.

[13] Os Intocáveis. Hélio Beltrão. Instituto Millenium, 13/02/2020.

[14] O duplo ônus da cultura do funcionalismo público. Leandro Vieira. Instituto Mises Brasil, 11/02/2020.

[15] A surpreendente lei da Suécia que dá 6 meses de folga do trabalho para empreender. UOL, 27/03/2019.

[16] Por que austríacos lecionam em universidades públicas. Antony Mueller, Fabio Barbieri e Ubiratan Jorge Iorio. Instituto Mises Brasil, 18/10/2012.





.