Às vezes
não é necessário acessar teorias divergentes para demonstrar os
equívocos e contradições de medidas e ações defendidas por
certos políticos, militantes, correntes, movimentos e partidos. Há
casos em que basta acessar os medalhões que dizem seguir e se
inspirar.
O plano
econômico de Paulo Guedes é apoiado pela maioria dos liberais
brasileiros. Alguns deles, para se esquivar da estupidez de
Bolsonaro, dividem o governo em dois níveis: a racionalidade e
sabedoria dos integrantes da pasta econômica, incluindo o próprio
Guedes, e a irracionalidade e estupidez de integrantes de outras
pastas.
Alguns
poucos exemplos bastariam para demonstrar que Guedes é parte do todo
bolsonarista: quando prometeu entregar, com o ajuste neoliberal, um
Estado rousseauniano [1]; quando avalizou o AI-5 [2]; quando sugeriu
que domésticas não deveriam ir à Disney [3]; quando sua Reforma da
Previdência considerou “ricos” pessoas com salário de R$
2.231,00 [4]; quando chamou servidores públicos de “parasitas”
[5]; etc.
Mas
queremos ir mais fundo e para isso vamos comparar o pensamento do
economista Ludwig von Mises (1881-1973), festejado nos círculos
liberais, com duas medidas do governo em evidência na atualidade: a
PEC do Pacto Federativo e a Reforma Administrativa.
Mises era
um liberal austríaco defensor do Estado mínimo que rechaçou
propostas anarcocapitalistas [6]. Defendia a retirada do Estado da
economia mas sabia que a economia de mercado necessitava do mesmo
[7]. Por isso teve de abordar a forma de funcionamento do aparato
estatal e traçou a sua diferença com a iniciativa privada.
“Nos
negócios com objetivo de lucro, a liberdade de ação dos
gerentes e subgerentes é limitada por considerações de lucro e
perda. A motivação pelo lucro é a diretriz necessária e
suficiente para submetê-los aos desejos dos consumidores. Não há
necessidade de limitar sua liberdade de ação por instruções
detalhadas e minuciosas. Se forem eficientes, essa ingerência
seria no mínimo supérflua, senão perniciosa por lhes atar as mãos.
Se forem ineficientes, ela não contribuiria para melhorar o seu
desempenho. Tal ingerência somente lhes proporcionaria a desculpa
pouco convincente de que seu fracasso foi causado por regulamentos
inadequados. A única instrução necessária é evidente em si mesma
e nem precisa ser explicada: procure obter lucro.
Na
administração pública, na condução dos negócios do governo, as
coisas são diferentes. Neste campo, a liberdade de ação dos
governantes e de seus auxiliares não é limitada por considerações
de lucro e perda. Se seu chefe supremo – seja ele o povo soberano
ou um déspota soberano – deixar-lhes as mãos livres, estará
renunciando à sua própria soberania. Esses governantes se
converteriam em agentes que não precisariam prestar contas a ninguém
e seu poder suplantaria o do povo ou o do déspota. Fariam o que
quisessem e não o que seu chefe esperava que fizessem. Para
evitar esse resultado e para submetê-los à vontade do chefe, é
necessário dar-lhes instruções detalhadas de como devem
proceder em cada caso. Ficam assim obrigados a cuidar de suas
tarefas, obedecendo estritamente a essas regras e regulamentos. Sua
liberdade para ajustar seus atos ao que lhes parece à solução mais
apropriada de um problema concreto é limitada por essas normas. São
burocratas, isto é, pessoas que em qualquer circunstância devem
observar um conjunto de regras inflexíveis.” [8]
Contraste-se
as palavras de Mises acima com a proposta da PEC do Pacto Federativo
de acabar com os mínimos constitucionais, como em saúde e educação,
e deixar a cargo dos gestores públicos decidirem onde alocarão tais
recursos, o que vem sendo exaltado como “liberdade orçamentária”.
Renunciando
à soberania ao deixar os governantes com as mãos livres? Que nada!
Para Guedes “Os políticos têm de controlar 100% do orçamento”
[9]. Mas ele não está só: o Instituto que leva o nome do liberal
austríaco reproduziu publicação do Money Report que celebra que
“Quem ganha: União, estados e municípios, que teriam liberdade
para definir as prioridades dos seus orçamentos” ao passo que
“Quem perde: Defensores da indexação, que temem um aumento da
desigualdade social com o fim de gastos obrigatórios.” [10]
Em
primeiro lugar, chama a atenção que os perdedores são os
“defensores da indexação”, ou seja, a esquerda, e não a
população. Parece que a prioridade para parte da direita brasileira
é provocar a esquerda e não melhorar a vida do povo. Em segundo
lugar, fica parecendo que nossos pobres governantes, que já cortam e
desviam recursos dos serviços básicos (às vezes para o próprio
bolso), só não cumprem com os investimentos mínimos previstos em
lei por culpa de uma burocracia malvada e inflexível.
A
supressão e o afrouxamento da legislação estatal se tornou um
fetiche tamanho para alguns liberais que eles só enxergam a
desregulamentação em si e a comemoram, mesmo que seja dos políticos
que, menos regulados terão de fato mais liberdade, e mais
tranquilidade, para desviar e embolsar o dinheiro público.
“A
gerência burocrática, diferentemente da gerência que visa ao
lucro, é o método usado na condução de assuntos administrativos,
cujos efeitos não têm valor em dinheiro no mercado. A boa
performance no cumprimento dos deveres confiados a um departamento de
polícia é da maior importância para preservação da cooperação
social e beneficia todos os membros da sociedade. Mas não tem preço
no mercado; não pode ser vendida nem comprada. Assim sendo, não
pode confrontar o resultado obtido com as despesas
incorridas. É benéfica, resulta em ganhos, mas esses ganhos
não podem ser expressos em termos monetários, como o são os
lucros. Os métodos de cálculo econômico e, especialmente, a
contabilidade de partidas dobradas não lhes são aplicáveis.
O sucesso ou o fracasso das atividades de um departamento de polícia
não podem ser apurados pelos procedimentos aritméticos utilizados
pelas atividades com fins lucrativos. Nenhum contador pode
informar se um departamento de polícia ou uma de suas subdivisões
é rentável ou não.
(…)
Não resta a menor dúvida de que os serviços prestados pelo
departamento de polícia da cidade de nova York poderiam ser
consideravelmente melhorados se sua dotação orçamentária fosse
triplicada. Mas a questão está em saber se esse
melhoramento seria suficiente para justificar ou a diminuição
dos serviços prestados por outro departamento – por exemplo, os
do departamento de higiene pública – ou a restrição do
consumo dos contribuintes. Esta questão não pode ser respondida
pela contabilidade do departamento de polícia. Este só tem
condições de informar sobre as despesas incorridas; não tem como
fornecer nenhuma informação acerca dos resultados obtidos, uma
vez que esses resultados não podem ser expressos em termos
monetários. (...)” [11]
Novamente
compare-se essas citações de Mises com todo o discurso feito em
relação à Reforma Administrativa proposta para o serviço público
brasileiro cujas analogias com a iniciativa privada abundam.
Três
dias após Paulo Guedes pedir desculpas por ter chamado os servidores
públicos de “parasitas” [12] Hélio Beltrão, presidente do
Instituto Mises Brasil cujo pai serviu à ditadura civil-militar,
saiu em solidariedade ao “arrependido” Ministro da Economia que
seria vítima, tal qual o “investigador Eliot Nessem em sua
missão para parar Al Capone”, de “intocáveis” e
“sabotadores” “burocratas, usualmente de economistas e
juristas que exercem o poder há décadas e que podem emperrar
avanços.” [13]
Artigo de
Leandro Vieira publicado no Instituto Mises Brasil critica a “cultura
do funcionalismo público” [14], que seria o fato de muitas
pessoas preterirem a iniciativa privada por concursos públicos
“buscando vagas em trabalhos que não acrescentam nada ao avanço
da nação.” “Assim se destrói um país”,
sentencia.
Nem
parece que Vieira fez mestrado na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e que foi professor da Escola de Administração da mesma
instituição, títulos que ele parece ostentar com orgulho.
Do jeito
que resmunga dá a impressão de vivermos em um dos países nórdicos
que possuem muito mais servidores públicos, no percentual da força
de trabalho empregada, do que o Brasil. Na Suécia, aliás, há uma
lei que dá ao funcionário, inclusive privado, licença de 6 meses
para empreender [15]. Mas como nenhum liberal brasileiro apologista
do “empreendedorismo” defende algo parecido por aqui resta
queixar-se da qualidade dos “empreendedores” do país, como faz
Vieira:
“Por
aqui, empreender passou a ser uma saída para os menos preparados,
para os mais necessitados, para aqueles que não têm condições de
arrumar um emprego decente ou de passar em um concurso público.”
Por fim
ele faz um chamado individual a “resistir fortemente à tentação
de nos juntarmos a ele [o Estado]”. Se depender de Guedes a
resistência vai se tornar desnecessária, muitas “pessoas com
preparo e talento” qualificarão as esquinas com quentinhas e
os aplicativos com pedaladas enquanto os amigos e parentes dos
políticos com “as mãos livres” aportarão no que sobrar de
aparato estatal.
A
obsessão ajustadora de nossos liberais comemora qualquer redução
do Estado e trata os servidores públicos como inimigos, ignorando as
consequências. Uns fazem isso por lucros, outros por pura tolice
ideológica. Em um país onde 90% da pesquisa é realizada em
instituições públicas atacar seus profissionais não trará
desenvolvimento algum. E recorremos a um trio de professores
universitários “austríacos” para demonstrar como funciona esse
setor:
“(...)
Nas públicas, apesar da predominância das teorias econômicas
intervencionistas, ainda existe liberdade acadêmica: podemos dominar
o conhecimento de teorias rivais, passar em concursos públicos,
participar dos debates e propor nossas ideias. No sistema atual,
poderíamos apenas dar (muitas) aulas em faculdades privadas, sem
fazer pesquisa.” [16]
Eles
ainda informam que Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Friedrich von
Wieser e o próprio Ludwig von Mises ocuparam cargos públicos sendo
que Menger recebia “um salário bem elevado” na
Universidade de Viena.
Chega a
ser constrangedor que nós, sendo marxistas, tenhamos que apontar,
com bibliografia liberal, as contradições de Paulo Guedes e dos
apoiadores de suas medidas de ajuste que reivindicam o liberalismo
econômico. Mas isso só mostra o tamanho da estupidez deles.
* Em
tempo: Como toda a capitulação tem limite enquanto redigíamos
essas linhas Hélio Beltrão e outros “austríacos” criticavam a
defesa de Guedes da desvalorização do Real.
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[1] 'Dá
para esperar 4 anos de um liberal-democrata após 30 de
centro-esquerda?', diz Guedes. Paulo Guedes, entrevista à Folha de
São Paulo, 03/11/2019.
[2] 'Não
se assustem se alguém pedir o AI-5', diz Guedes. Folha de São
Paulo, 25/11/2019.
[3]
Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava
indo para Disney, uma festa danada’. O Globo, 12/02/2020.
[4] PEC
06/2019 – Reforma da Previdência, p.53-54.
[5]
Guedes chama funcionários públicos de “parasitas”. IstoÉ
Dinheiro, 07/02/2020.
[6] Von
Mises, Ludwig. Liberalismo – Segundo a Tradição Clássica,
Capítulo 1 – Os Fundamentos da Política Econômica Liberal - 7.
Estado e Governo, p.63-66. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises
Brasil, 2010.
[7] Von
Mises, Ludwig. Intervencionismo, uma Análise Econômica –
Introdução – 4. O estado capitalista e o estado socialista, p.27.
São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
[8] Von
Mises. Ação Humana – Capítulo XV: O mercado, p.370-371. São
Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
[9] “Os
políticos têm de controlar 100% do orçamento”. Paulo
Guedes, entrevista ao Estadão, 10/03/2019.
[10] No
pós-Previdência, pacto federativo será prioridade. Money Report,
publicado no Instituto Mises Brasil em 09/09/2019.
[11] Idem
[8], p.369-370.
[12]
Paulo Guedes pede desculpas por chamar servidores de ''parasitas''.
Correio Braziliense, 10/02/2020.
[13] Os
Intocáveis. Hélio Beltrão. Instituto Millenium, 13/02/2020.
[14] O
duplo ônus da cultura do funcionalismo público. Leandro Vieira.
Instituto Mises Brasil, 11/02/2020.
[15] A
surpreendente lei da Suécia que dá 6 meses de folga do trabalho
para empreender. UOL, 27/03/2019.
[16] Por
que austríacos lecionam em universidades públicas. Antony Mueller,
Fabio Barbieri e Ubiratan Jorge Iorio. Instituto Mises Brasil,
18/10/2012.
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