Tem se
intensificado um acalorado debate em uma parcela da vanguarda
militante e intelectual no Brasil envolvendo a Teoria Monetária
Moderna (MMT, sigla em inglês) e a Auditoria Cidadã da Dívida
(ACD) com impactos políticos já verificáveis, tendo alguns
candidatos defendido suas propostas em processos eleitorais. Ambas
combatem o ajuste fiscal neoliberal.
O centro
da MMT é a defesa de outra política monetária, tendo em vista que
as injeções trilionárias de dinheiro na economia de países
centrais após a crise de 2008 não fez a inflação explodir,
conforme prevê os manuais monetaristas liberais. Os países que
emitem a própria moeda poderiam se financiar com impressão de
dinheiro, até um certo limite, e assim realizar políticas sociais e
retomar a atividade econômica.
A ACD
denuncia a existência de um “sistema da dívida” fruto das
relações entre políticos e o capital financeiro cujo objetivo
seria garantir recursos para o pagamento da dívida pública através
de reformas liberais, privatizações, legislações e medidas que
geram cortes nas áreas sociais. Esse “sistema” seria fraudulento
e por isso as dívidas públicas deveriam ser auditadas.
Tendo em
vista que estamos diante de duas propostas que se mantêm nos limites
do capitalismo como então os marxistas devem se localizar?
Precisamos
partir da conjuntura vivida e esta nos diz que estamos diante de uma
crise do capital. É o momento oportuno para buscar a superação
desse modo de produção. Como indicou Marx:
“Nesta
prosperidade geral em que as forças produtivas da sociedade burguesa
se desenvolvem tão exuberantemente quanto é possível no seio das
relações burguesas, não se pode falar de uma verdadeira revolução.
Uma tal revolução só é possível nos períodos em que ambos estes
factores, as modernas forças produtivas e as formas burguesas de
produção entrem em contradição entre si. (…) Uma nova revolução
só é possível na sequência de uma nova crise. (...)” [1]
Isso não
significa que os pais do socialismo científico eram meros defensores
do “ataque frontal”, como alegam alguns por aí. Eles achavam
necessário apoiar as lutas defensivas e por melhorias parciais
desatadas pela classe trabalhadora contra a burguesia para o acúmulo
de forças:
“Se
em seus conflitos diários com o capital cedessem covardemente
ficariam os operários, por certo, desclassificados para empreender
outros movimentos de maior envergadura.” [2]
Mas para
esse acúmulo de forças não se tornar uma condição infinita o
papel das direções políticas era fundamental. Por isso propuseram,
em várias ocasiões, medidas reformistas desde que estas carregassem
em si um potencial transitório para o modo de produção socialista,
como constata-se no Manifesto Comunista, apenas para ficar em um
exemplo. [3]
A partir
desses critérios, qual das duas propostas pode ajudar em uma
estratégia socialista?
Foi a MMT
que iniciou a polêmica com a ACD. O objetivo é evitar que as
pessoas defendam a auditoria da dívida e reverter os que defendem.
Em 2018, o candidato presidencial do PSOL, Guilherme Boulos,
assessorado pelos “mmtistas” David Deccache e José Luis
Fevereiro, não defendeu a auditoria, bandeira histórica do partido.
A MMT
acusa a ACD de ser contra a dívida pública, o que é uma inverdade
já que a ACD quer regularizá-la para evitar desvios. Tal proposta é
apresentada pela MMT como “medida de ajuste” que “criminaliza a
dívida”, a fraude já verificada na dívida é chamada de “teoria
da conspiração” e, além disso, a MMT defende as “operações
compromissadas” e nos chama a confiar na “auditoria” das
instituições corrompidas do regime. [4]
Há quem
tente dar umas pinceladas de marxismo na MMT. Porém, se a coerência
fosse mantida as caracterizações de Marx e Engels sobre a dívida
pública seriam facilmente enquadradas como “criminalização da
dívida” a serviço do ajuste neoliberal [5]. Mas as incongruências
não param por aí. Fevereiro tem a seguinte elaboração:
“(...)
Sem recuperar o crescimento econômico e retomar o emprego, não se
consolida uma nova correlação de forças entre trabalho e capital
no conflito distributivo. Sem retomar o crescimento econômico, não
se acumula força para avançar em reformas estruturais capazes de
impor derrotas efetivas á economia politica do capital.” [6]
A única
forma de “impor derrotas efetivas à economia política do
capital” é com a superação do capitalismo e isso não será
alcançado retomando o crescimento econômico, como vimos em Marx e
como nos mostra a história das revoluções. Com emprego e dinheiro
no bolso as pessoas não se lançam em lutas insurrecionais. Esta
poderia vir quando o ciclo de crescimento se esgotasse só que se
daria contra o governo de Fevereiro por ser o gestor capitalista de
plantão. E se não houvessem forças políticas anticapitalistas
organizadas e com influência de massas tal descontentamento popular
provavelmente seria canalizado pela direita.
Fica
claro que a gestão monetária da MMT é incapaz de impulsionar um
movimento anticapitalista. Não é por acaso que o banqueiro André
Lara Resende [7] e especuladores de Wall Street [8] estão aderindo a
ela. Mas mesmo nos marcos do capitalismo ela possui limitações
graves: não tem uma linha para os Estados que não emitem a própria
moeda; ignora as restrições impostas pelo capital internacional aos
países periféricos, como o Brasil (incluindo o limite de
endividamento); assim como o papel dos mesmos na dinâmica global do
capitalismo.
A ACD tem
trabalhos realizados no Equador, na Grécia e até no Brasil, sendo
que nestes dois últimos países os governos não tomaram nenhuma
providência diante dos apontamentos de fraudes constatadas. Dilma,
em 2016, e Temer, em 2017, vetaram propostas de auditoria da dívida
da União.
Ao
mostrar didaticamente a trama do capital e sua ofensiva sobre o
orçamento público e os povos, a ACD incomoda banqueiros e
especuladores que, não raramente, a caluniam e tentam
desacreditá-la, incluindo o pagamento de colunistas em jornais da
grande mídia - ela própria parte da trama.
Em um
mundo afogado no capital fictício, tendo a dívida pública como uma
das principais fontes de sustenção do rentismo garantida com o
ajuste fiscal neoliberal e um capitalismo em crise estrutural cada
vez mais profunda, a proposta da ACD é um instrumento com potencial
de mobilização para uma luta anticapitalista. Não há dúvida de
que os marxistas devem estar com ela.
Leia
também:
O “novo”
e o “velho” capitalismo (parte 2). João Ricardo Soares. Teoria &
Revolução, 29/05/2019.
Marxismo
vs. Teoria Monetária Moderna. Adam Booth. Esquerda Marxista,
02/10/2019.
A Teoria
Monetária Moderna não está ajudando. Doug Henwood. Jacobin Brasil,
25/06/2019.
_______________________________________________________________
[1] MARX, Karl. As
Lutas de Classes em França de 1848 a 1850. IV — A abolição do
sufrágio universal em 1850.
[2] MARX, Karl.
Salário, Preço e Lucro. 14 - A luta entre o capital e o trabalho e
seus resultados.
[3] MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. II - Proletários e
Comunistas.
[4] Em
duas postagens na Página “mmtista” Meu Professor de Economia
no Facebook, do dia 02/02/2020, José Luis Fevereiro fez os seguintes
comentários, em polêmica com outros leitores da página
(reproduzimos com os erros de digitação):
“Francisco
Cícero nada há a ser auditado. Todas as informações relevantes
são públicas. Igual á auditoria do BNDES. Gastou-se 48 milhões
para nada. Fake News e teorias da conspiração saem caro”
“Lise
Longo sim. Estão errados. O problema real sempre foi a taxa de juros
elevada durante décadas. Esse sempre foi o problema. O resto é
teoria da conspiração”
“Teixeira
Ffas bobagens. Operacoes compromissadas são mecanismo de fixação
da taxa basica de juros. Nada de errado com isso. política de
esquerda é ampliar gastos públicos com emissão de moeda e emissão
de dívida”
“Claudio
Siqueira não. Tudo isso é público. Não há dados ocultos.
Remunerar a sobra de caixa é a forma do banco central ficar a taxa
básica de juros sem o que a taxa cairia a perto de zero com
consequências especulativas incontroláveis. Isso é fazer política
monetária. O problema é que por décadas a nossa taxa básica foi
excessivamente alta”
[5] MARX, Karl. O
Capital. A Chamada Acumulação Original. 6. Génese do Capitalista
Industrial.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem da Direcção Central à Liga
dos Comunistas. Março de 1850.
[6] Plínio Jr e os
diagnósticos errados. José Luis Fevereiro, 07/02/2018.
[7] RESENDE, André
Lara. Consenso e Contrassenso: deficit, dívida e previdência.
[8] Modern Monetary
Theory Finds an Embrace in an Unexpected Place: Wall Street. The New
York Times, 05/04/2019.
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