fev 24, 2017
por Diego Vitello –
Coordenação Nacional da CST-PSOL
“Em cada fábrica, em
cada corporação, em cada companhia militar, em cada taberna, nos
hospitais da tropa, a cada aquartelamento, e mesmo nos campos
despovoados, progredia um trabalho molecular da ideia
revolucionária.” Leon Trotsky
Há 100 anos um
importante processo revolucionário derrubou um regime que imperou na
Rússia por quase quatro séculos (1547 – 1917). Esse processo
entrou para a história como “Revolução de Fevereiro” e
derrubou o Czar Nicolau II, que governava a Rússia desde 1894.
Fevereiro dá início a um período conturbadíssimo na Rússia, de
intensos conflitos sociais, onde Revolução e Contrarrevolução se
chocam mais abertamente durante o ano todo. O ano de 1917 é de
tempos concentrados, onde, no que diz respeito à experiência
política das classes sociais exploradas, dias valiam anos e meses
valiam décadas.
Foi também o início de
grandes mudanças no maior conflito armado que a humanidade conhecera
até então, a Primeira Guerra Mundial, com cerca de 20 milhões de
mortos entre combatentes e civis. O Império Russo jogava um papel
destacado ao lado das antigas potências, Inglaterra e França,
enfrentando a ascendente burguesia da Alemanha e seus aliados da
Áustria-Hungria e do Império Turco-Otomano. Além de mudanças, no
conflito, a relação de forças entre as classes sociais também
ganha uma nova configuração. Ao proletariado e ao campesinato russo
cabe cumprirem um papel decisivo na derrubada do regime czarista e os
seus irmãos de classe dos outros países em conflito se animavam por
defender seus próprios interesses e não mais os de seus governos e
da “sua” burguesia.
A Revolução, devido ao
desenvolvimento desigual e combinado na história, começará
exatamente no “elo mais débil da cadeia imperialista”, como
Lenin se referia ao Império Russo. A Rússia, em 1917, já
contabilizava 5,5 milhões de mortos. A crise chega com força no
exército, e as deserções em massa dos soldados são cada vez mais
comuns. Três anos após o início da guerra, a previsão política
de Lenin, de que as condições das massas iriam cair bruscamente
gerando um enorme descontentamento e mudanças bruscas na situação
política, abrindo uma situação revolucionária mundial, estava
confirmada pela história.
Alguns elementos da
Rússia antes da Revolução de Fevereiro
O país da revolução de
fevereiro tinha no início da Primeira Guerra, em 1914, cerca de 160
milhões de habitantes, sendo que 87% viviam no campo. Deste
campesinato, cerca de 80% era analfabeto. O atraso do país, que
aboliu a servidão somente em 1861, fica evidente com esses dados. Do
ponto de vista dos conflitos de classe, esse atraso gerou uma
burguesia bem mais fraca que nos principais países europeus, e ao
mesmo tempo, um proletariado relativamente novo frente ao de outros
países como Inglaterra, França e Alemanha, por exemplo.
As empresas capitalistas
e imperialistas penetravam com força na Rússia desde o final do
século XIX. Um proletariado jovem, reduzido em número, porém
concentradíssimo, ganhava seus contornos e ia se tornando um dos
atores políticos e sociais mais relevantes da sociedade russa. Em
1905, um levante proletário com uma poderosíssima onda de greves
espalhou as lutas pelo país, contagiando o campesinato pobre que
realizou diversas ocupações de terra. Esta revolta, que Lenin
batizou de “O Ensaio Geral” para 1917, gerou um importante
amadurecimento político nos trabalhadores russos que, pela primeira
vez, durante os meses de mobilização, formaram seus conselhos
(Sovietes) para tomar as decisões políticas de sua mobilização.
O proletariado ganhava
força, ano após ano. Em 1912, estima-se que haviam 3 milhões de
operários em toda Rússia, uma proporção bastante baixa no que diz
respeito ao conjunto da população. No entanto, as concentrações
operárias eram grandes e bastante restritas às duas principais
cidades do país, Petrogrado e Moscou. Essa classe operária
trabalhava em geral mais de 10 horas por dia (a Lei das 10 horas de
trabalho raramente era cumprida), e vivia em condições extremamente
repressivas nas fábricas.
O ano de 1917 também é
o quarto ano do conflito internacional e a matança prolongada a
mando dos governos imperialistas começa a gerar um descontentamento
social a cada dia maior. Deserção e falta de disciplina nas tropas,
inflação dos preços e racionamento de víveres, são também
elementos que marcam a dramática situação política russa na
guerra.
A derrubada do Czar
No final do mês de
Fevereiro (no calendário Juliano, que era utilizado pela Rússia à
época), teremos dias decisivos para a queda do império Czarista. O
dia 23 de Fevereiro, para o calendário Juliano, ocorre no mesmo dia
que o 8 de março, para o Gregoriano. Isso é importante, pois é
justamente em um “Dia Internacional das Mulheres” que começam os
momentos decisivos e o império czarista, que vinha agonizando há
meses, cai. Nas palavras de Trotsky em seu célebre livro A História
da Revolução Russa: “De fato, estabeleceu-se que a Revolução de
Fevereiro foi desencadeada por elementos da base que ultrapassaram a
oposição das suas próprias organizações e que a iniciativa foi
espontaneamente tomada por um contingente do proletariado explorado e
oprimido mais que todos os outros – as trabalhadoras do têxtil,
cujo número, deveria se pensar, devia-se contar muitas mulheres
soldados.”
O centro político da
Revolução foi Petrogrado. Capital russa à época, a cidade era
marcada por enormes concentrações operárias em fábricas com
dezenas de milhares de trabalhadores. Foi no dia 27 de fevereiro que
trabalhadores e soldados adentraram no Palácio Tauríde, em
Petrogrado, onde funcionava a Duma (Parlamento Russo). Nesse mesmo
dia se formou o governo provisório do qual falaremos mais adiante.
Dias depois, no dia 2 de março, o Czar, já sem poder nenhum, abdica
oficialmente.
A revolução de
fevereiro de 1917, a chamada “insurreição anônima”, foi um
levantamento espontâneo das massas, surpreendendo todos os
socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização,
foi nulo durante os acontecimentos, apesar de que seus militantes
desempenharam um importante trabalho individualmente nas fábricas e
nas ruas, como agitadores e organizadores.
O ressurgimento dos
sovietes e o duplo poder
Após a queda do Czar, os
conselhos de operários e camponeses começam novamente a tomar forma
pelo país, retomando a experiência do fugaz duplo poder da
Revolução de 1905. Estava instaurada uma polarização que
perduraria durante o ano de 17. De um lado estavam os sovietes,
representante direto de operários, camponeses e soldados, do outro,
o governo provisório, formado pela burguesia liberal com a
colaboração de partidos como o Menchevique e o
Socialista-Revolucionário, que ainda estavam à frente dos sovietes
também. Esta contradição inexorável irá durar poucos meses.
A situação de duplo
poder cria inevitavelmente uma instabilidade muito grande no país,
já que é impossível que classes antagônicas governem ao mesmo
tempo. Vai se gestando, desde os dias subsequentes a fevereiro, um
conflito aberto, que mostra que uma nova revolução estava latente.
O que retardou em alguns meses essa Revolução foi, sem dúvidas, a
política de conciliação de classes promovida pelos partidos dos
principais dirigentes dos sovietes: o Menchevique e o
Socialista-Revolucionário. A influência de ambos partidos na
condução dos primeiros meses dos sovietes explica também a
“demora” de uma nova revolução.
Os bolcheviques, a guerra
e fevereiro
A Revolução de
Fevereiro também é um marco para o movimento operário
internacional. Os principais partidos socialistas do mundo, porém,
estavam de costas para esse processo. Em 1914, os principais partidos
sociais-democratas, que agrupavam os socialistas de cada país,
votaram, junto com as “suas” burguesias, os créditos de guerra.
Ou seja, concretamente, mais de 90% da esquerda europeia mandava os
operários e camponeses de seu país matarem os de outros países
para defender os interesses econômicos da “sua” burguesia. Um
crime político de repercussão histórica. Em 1916 Lenin escrevia:
“É evidente a traição ao socialismo por parte daqueles que
votaram pelos créditos de guerra, entraram para os ministérios e
advogaram a ideia da defesa da pátria em 1914-1915. Só os
hipócritas podem negar este fato (…)Em que consiste a essência
econômica do defensismo durante a guerra de 1914-1915? A burguesia
de todas as grandes potências trava a guerra com o fim de partilhar
e explorar o mundo, com o fim de oprimir os povos. Um pequeno círculo
da burocracia operária, da aristocracia operária e de companheiros
de jornada pequeno-burgueses podem receber algumas migalhas dos
grandes lucros da burguesia. A causa de classe profunda do
social-chauvinismo e do oportunismo é a mesma: a aliança de uma
pequena camada de operários privilegiados com a “sua” burguesia
nacional contra as massas da classe operária, a aliança dos lacaios
da burguesia com esta última contra a classe por ela explorada.”
(LENIN, Vladimir. O oportunismo e a falência da II Internacional)
A localização política
dos bolcheviques de não apoiar a burguesia de seu país, como o
fizera a quase totalidade da esquerda europeia, os colocavam em uma
armação política correta, contra a matança imperialista e a favor
dos interesses da classe operária, que em nada ganhava com a guerra.
Isso foi, sem dúvidas, importantíssimo no desenrolar dos
acontecimentos de fevereiro. Lenin já havia alertado em 1914 que as
condições de vida das massas iriam em breve se tornar insuportáveis
e, portanto, uma situação revolucionária estava aberta com o
início da guerra, apesar da traição histórica da maioria dos
partidos sociais-democratas, mesmo que os marxistas revolucionários
de todo mundo “coubessem em um vagão de trem” em 1914.
De fato, os bolcheviques
participaram da Revolução de Fevereiro, ainda que não tinham a sua
direção política, como em outubro. Um dos elementos, sem dúvidas,
importante é que a ampla maioria da direção do partido, sobretudo
os seus quadros de direção mais experimentados, se encontravam no
exílio quando a Revolução se desencadeou. O próprio Lenin não
estava na Rússia. Isso, por óbvio, gerou uma importante limitação
na ação do partido, como mínimo. A “insurreição anônima” de
fevereiro, como foi chamada por alguns historiadores, teve também a
participação de diversas forças políticas, com um papel
importante dos operários temperados nas lutas dos anos anteriores e
na “escola de Lenin”. Nas palavras de Trotsky, mais uma vez: “A
questão posta acima: quem conduziu a Revolução de Fevereiro?
Podemos, por consequência responder com clareza desejada: operários
conscientes e endurecidos que, sobretudo, tinham sido formados na
escola do partido de Lenin. Mas, devemos acrescentar que, esta
direção, se ela foi suficiente para segurar a vitória da
insurreição, não esteve em posição de colocar, desde do início,
a liderança da revolução entre as mãos da vanguarda proletária.”
(TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
Surge o primeiro governo
de conciliação de classes de história
A Revolução, fruto
fundamentalmente da mobilização operária e popular, conquista um
regime com uma série de liberdades democráticas inéditas para a
Rússia. Porém, isso é somente nos seus inícios, logo o regime
voltará a impor duras restrições às liberdades democráticas.
Logo após a queda do
antigo regime, a débil burguesia russa rapidamente busca montar um
governo que assuma o controle do país após a queda do Czar. Um
governo que possa, sobretudo, parar e desviar o processo
revolucionário em curso, do qual a revolução de fevereiro era
apenas o começo. Nas palavras de Trotsky: “A burguesia russa,
nascendo demasiado tarde, odiava mortalmente a revolução. Mas, ao
seu ódio faltava-lhe força. Ela devia ficar na expectativa e
manobrar. Não tendo possibilidade de derrubar e de sufocar a
revolução, a burguesia contava tomá-la por via de extinção.”
(TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa).
Devido à enorme
mobilização popular que tinha desencadeado a Revolução, a
burguesia chega a acordos com partidos pretensamente “de esquerda”
para formar um governo. O governo surgido após a Revolução de
Fevereiro é o primeiro governo de Frente-Popular da história, ou
seja, pela primeira vez partidos operários governam um país em
comum com a burguesia. Obviamente, o resultado dessa política é
uma traição aos interesses da classe operária como os meses
subsequentes irão demonstrar. Mas isso, é tema para os próximos
textos que faremos abordando os principais acontecimentos na Rússia
de 1917.
Extraído de:
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