domingo, 16 de novembro de 2014

Congresso conservador e reforma política

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Para abordar o assunto do título acima, inicio reproduzindo o trecho abaixo, extraído de artigo que produzi em 2012:

"A grande contribuição do materialismo histórico e dialético foi demonstrar que as instituições de uma sociedade, assim como alguns outros aspectos da mesma, devem ser analisadas a partir do seu contexto sócio-histórico tendo em vista a base real na qual estão assentadas. Elas são criadas pelos homens de um determinado período para atender a um determinado objetivo.

As instituições políticas da democracia moderna foram erigidas pela burguesia para legitimar e legalizar o seu modelo de sociedade. Mas a democracia criada por ela rejeitava a participação política das classes populares e, quando pressionada pelas lutas das mesmas, se viu obrigada a ceder alguns direitos, a burguesia não vacilou em descaracterizar a participação do andar de baixo e manter a essência de classe do seu regime político, criando regras e mecanismos para garantir que os reais representados dessa democracia fossem seus próprios pares." [1]

A caracterização do materialismo histórico e dialético é confirmada pelos próprios ideólogos e políticos burgueses envolvidos na construção da democracia moderna. O franco-suíço Benjamin Constant alertava que a concessão dos direitos políticos para as classes populares serviriam para que estas invadissem a propriedade dos ricos. Tal invasão não se tratava de um ato de ocupação física de um território ou espaço mas de direitos e conquistas sociais. “Na Inglaterra, atualmente, se as eleições fossem abertas a todas as classes do povo, a propriedade fundiária não seria mais segura. Logo seria introduzida uma lei agrária”, dizia, abertamente, James Madison, um dos “Pais Fundadores” dos Estados Unidos. Na Inglaterra John Stuart Mill chamava a atenção para o fato de que as classes populares constituiriam a maioria dos votantes e que isso implicaria no “perigo” de uma “legislação de classe”. O próprio Mill indicou um artifício eleitoral para combater esse perigo: o voto plural, que atribuía pesos distintos aos votos de acordo com a classe social do indivíduo. (Mais detalhes sobre a construção do modelo político moderno no artigo "O desgaste da democracia representativa moderna" [2])

Assim, quando se vê obrigada a abrir o regime político para as classes populares, a burguesia cria mecanismos e regras eleitorais para reduzir o efeito “perigoso” do voto da mesma e garantir a sua dominação. Em 1891 Engels já observava que nos Estados Unidos haviam "dois grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam." [3] A inclusão das classes populares na política ocorre de forma controlada. No Brasil não foi diferente e não é por acaso que muitos chamem o processo que levou a redemocratização de “transição conservadora”.

A primeira evidência que os fatos históricos apontam é que a democracia que vivemos é uma democracia burguesa. Logo, não se pode ter receio de chamá-la pelo o que ela realmente é.

A segunda evidência é que as instituições políticas dessa democracia burguesa existem para garantir o processo de acumulação e reprodução do capital e o seu sistema social. Nesse sentido, os parlamentos burgueses são, por natureza, instituições conservadoras.

Embora as lutas da classe trabalhadora tenham arrancado conquistas econômicas, sociais e políticas - abrindo brechas nos parlamentos burgueses - estes, por sua vez, não perderam a sua essência de classe. Quando o chanceler Otto von Bismarck anunciou uma série de direitos para os trabalhadores alemães no final do século XIX, foi na tática do “entregar os anéis para não perder os dedos”. Quando o economista John Maynard Keynes sugeriu ao presidente estadunidense, Woodrow Wilson, um plano de assistência estatal foi com medo da expansão das revoluções populares, como a Russa de 1917, afinal como disse o próprio: "a guerra de classes me encontrará do lado da burguesia educada." [4]

Nos momentos em que o capital exige maiores taxas de lucros ou encontra-se em crise as brechas abertas vão sendo fechadas, os anéis recolhidos e os parlamentos burgueses tratam de lembrar a quem servem, para que existem, em suma, qual o seu real papel social. Não é por acaso que a crise de representação tem sido mais intensa onde a crise financeira é mais aguda.

Portanto, falar em Congresso conservador é redundância. No caso do Brasil nenhuma reforma social foi aprovada por tal instituição, nem mesmo nos últimos 12 anos, apesar de alguns considerarem os governos petistas reformistas. Os difusores da “onda conservadora”, supostamente comprovada pela eleição legislativa de 2014, até se esquecem que o PT se opos a Constituinte de 1988 por, apesar de garantir alguns direitos decorrentes das lutas populares, não se comprometer com temas que só podiam avançar contrariando os interesses das classes dominantes, como a reforma agrária [5], ou seja, a essência de classe do regime era mantida.

As particularidades e as diferentes formas não têm impedido o sangramento, em praça pública, das instituições políticas da democracia burguesa, cuja hemorragia da falta de credibilidade não se tem conseguido estancar. O voto em lista na Espanha não impediu que a juventude indignada ocupasse as praças do país para denunciar a sua falsa democracia e pedir por uma democracia “real”. O financiamento público na Itália não tornou seus políticos mais zelosos dos interesses das classes populares. [6]

Como se pode perceber os remendos são inócuos no que tange a mudar a essência de classe da democracia burguesa. Agarrá-los como panacéia não é apenas desonesto, mas reacionário. É surgir como bote salva vidas da democracia burguesa, é querer girar a roda da História para trás pois é extremamente progressivo que as massas cada vez mais percebam a farsa do regime político em que vivem. Curiosamente é aqui que muitos pretensos progressistas têm se mostrado os mais abnegados surfistas de uma “onda conservadora”.

Alguns surfistas não são nada ingênuos, são experientes e muito hábeis nas manobras. E diante do fracasso da coalizão do PT com as oligarquias, anteriormente apontada como tática sofisticada pela governabilidade, buscam desviar o foco na tentativa de ocultar a responsabilidade dos dirigentes petistas por suas opções e ações que desmoralizaram membros do seu próprio partido, que desmobilizaram setores organizados da classe trabalhadora e que elevou o ceticismo e o desgaste do sistema político.

Em 12 anos de governo o PT só agitou a reforma política nos momentos em que enfrentou crises políticas agudas que o ameaçavam. Foi assim em 2005 quando do estouro do escândalo do mensalão: enquanto Lula defendia tal reforma em rede nacional o seu partido emitia nota reivindicando-a já para o ano seguinte. Como se sabe não foi o que aconteceu. Em 2013, após as jornadas de junho, Dilma volta a falar de reforma política mas o próprio bloco dirigente do PT promoveu a troca do deputado federal Henrique Fontana por Cândido Vaccarezza na coordenação do grupo de trabalho da Câmara dos Deputados encarregada da referida reforma. E o que já era ruim com Fontana se tornou péssimo com Vaccarezza. [7]

Atualmente a agitação da reforma política vem acompanhada da agitação da “onda conservadora” e até “fascista”. Mais uma vez estamos diante de uma manobra que visa ocultar a responsabilidade do PT, já que a própria presidente Dilma firmou um acordo com o PMDB que garante que se tal reforma sair será nos termos que agrada aos parlamentares que não desejam grandes mudanças. Fica claro que o próprio PT atua para sabotar a reforma política e isso ocorre porque muitos conservadores não são apenas aliados do Planalto mas se encontram no interior do próprio partido como atesta a sua presença nas bancadas empresarial, religiosa e ruralista. [8]

Tal manobra também visa arrastar setores de esquerda críticos ao governo para ampliar sua base social para uma governabilidade que vai atacar ainda mais os direitos dos trabalhadores e a soberania nacional. Os que acreditam poder disputar tal reforma pela esquerda nada mais fazem do que inflar a farsa governista. Como observou Duarte Pereira:

“Tomo a liberdade de compartilhar uma preocupação. As denúncias exageradas de ameaças de golpes militares e de avanço fascista no Brasil, com base em manifestações minoritárias, postagens de internet e arreganhos de generais de pijama, têm-me parecido um alarmismo exacerbado com três propósitos.

Primeiro: desviar a atenção das concessões ainda maiores ao grande capital transnacional e nacional e aos partidos conservadores que estão sendo preparadas pelo novo governo Dilma.

Segundo: obscurecer as responsabilidades do PT e dos governos Lula e Dilma – com sua inflexão social-liberal e neodesenvolvimentista de caráter capitalista, suas alianças espúrias e seus seguidos escândalos de corrupção ativa e passiva – pela divisão e debilitamento das correntes da esquerda socialista e do centro democrático e pela reemergência e revigoramento das correntes conservadoras e fascistas.

Terceiro: confundir ainda mais os setores oposicionistas de esquerda e de centro-esquerda que recuaram da oposição ao governo Dilma no segundo turno da eleição presidencial, preferindo apoiar sua reeleição em vez de anular o voto em sinal de protesto e insatisfação com as duas candidaturas restantes – e no fundamental equivalentes.” [9]

Assim, na mesma semana em que setores de esquerda que fazem oposição ao governo participavam de uma marcha governista em São Paulo a favor da reforma política já deformada pela própria Dilma e contra o “golpismo” [10], avançava no Senado Federal proposta de lei que visa “regulamentar” o direito de greve dos servidores públicos com medidas que a inviabilizam [11]. A Comissão Mista de Regulamentação de Dispositivos Constitucionais que aprovou o parecer antigreve é comandada pelos governistas Romero Jucá (PMDB-RR) e Cândido Vaccarezza (PT-SP), como reconheceu a própria Central Única dos Trabalhadores (CUT). [12]

Importante salientar que Constituintes se chamam quando se buscam mudanças profundas em vários setores da sociedade e não apenas para modificar parte dela, como desejam alguns com a reforma política. Esta deveria ser complementar a outras mudanças. Exagera ingenua ou malandramente quem diz que a reforma política é a “mãe de todas as reformas”. Ou a Kátia Abreu passará a defender a reforma agrária, Sandro Mabel a ampliação dos direitos trabalhistas e Jereissati a reestatização de empresas privatizadas, só porque passaram a receber financiamento público nas suas campanhas?

Há o risco, nada desprezível, de que uma constituinte exclusiva para reforma política termine por retroagir ainda mais o sistema político. Não são poucos os que desejam fechar o regime em torno de poucos partidos comprometidos com a ordem, inclusive dentro do PT, e a imposição de uma cláusula de barreira poderia se firmar.

Ainda que se possa defender medidas mais progressistas para uma reforma política, o que não é o caso dos governistas, as reais mudanças não poderão ser alcançadas pelos parlamentos burgueses mas somente nas ruas através da organização social desde baixo. Um governante ou um partido que se elegesse comprometido com as pautas das classes populares só poderia implementá-las com a organização e mobilização das mesmas pois as classes dominantes não abdicariam de seus interesses pacificamente. Não se trata de simples discurso, foi o caminho trilhado pela pequena, mas corajosa, cidade espanhola de Marinaleda, única que não afundou com a crise financeira que assola o país. [13]

E por falar em crise financeira, esta se aprofunda. E, sob o silêncio cúmplice dos difusores da “onda conserbadora”, o governo petista pratica um nada progressista ajuste com aumento de preços, privatizações que incluem até hospitais universitários, cortes do seguro-desemprego e auxílio-doença, além de buscar um homem de confinaça do mercado para o Ministério da Fazenda e alguns conservadores para outros ministérios.

Torna-se de fundamental importância organizar a classe trabalhadora, a juventude, demais excluídos e lutadores sociais para resistir aos ataques em curso e aos que virão, além de discutir e formular alternativas para suas demandas e uma organização da política que as contemple. Disposição de luta o povo brasileiro já demonstrou que tem.

Que os governistas busquem desviar essa disposição de luta para uma reforma política reacionária é mais do que compreensível, é esperado. Surpreendente é ver setores de esquerda que se dizem críticos ao governo surfando de forma irresponsável nessa verdadeira “onda conservadora”.


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[1] Democracia e golpismo (30/06/2012):

[2] O desgaste da democracia representativa moderna (09/09/2010):

[3] ENGELS, Friedrich. Introdução à Edição de 1891 de "A Guerra Civil em França" de Karl Marx.

[4] MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008. p.65.

[5] Assim, Paulo Paim, na época deputado, justificou a posição do PT:

"O PT não pode votar a favor de um texto que é contra a reforma agrária, dá cinco anos para o presidente Sarney e mantém íntegra a estrutura militar. O PT assina a Carta porque reconhece os avanços, principalmente nos direitos dos trabalhadores"

O PT e a Constituição. História Sindical.

25 anos depois, Lula, em mais uma da série “rasgando as velhas bandeiras”, atacou a posição do PT na constituinte e chegou a afirmar que o país se tornaria “ingovernável” se as propostas do seu partido fossem incorporadas:

“No dia da instalação da Constituinte, entreguei ao Ulysses Guimarães um projeto de Constituição, elaborado pelo Fábio Konder Comparato, e um projeto de regulamento interno (da Câmara). Tínhamos 16 deputados, mas éramos desaforados como se tivéssemos 500. O PMDB, que tinha a maioria dos parlamentares, dos governadores e tinha o presidente da República, não tinha um regimento pronto. Se o nosso fosse aprovado, o país seria certamente ingovernável. Éramos muito duros na queda e muito exigentes.”

Lula: Constituição 'petista' tornaria o país ingovernável. (01/10/2013):

[6] “A descoberta de ampla rede de corrupção envolvendo as lideranças dos principais partidos do país, grandes empresários e contatos com o crime organizado (episódio conhecido como Tangentopoli) provocou a reformulação do sistema partidário. A legislação italiana, segundo o consultor, já contava com uma tradição de confusão e ineficácia. Em 1997, a lei que dispunha sobre o financiamento público de campanha (de 1974) foi substituída por um modelo de "financiamento voluntário dos partidos políticos". Em 1999 surge uma nova legislação disciplinando as contribuições voluntárias e o reembolso público de gastos de campanha. Propostas de alteração das regras de financiamento de campanha, segundo o consultor, continuavam sendo discutidas no final de 2003.” (Conheça o financiamento de campanha em alguns países. Senado Federal. 20/09/2010. Disponível em:

[7] O mensalão e a amnésia do governismo (23/12/2013):

[8] O PT conservador. (12/10/2014):

Levantamento preliminar do DIAP identifica 139 deputados na bancada ruralista. (13/10/2014):

[9] A “onda fascista”. Duarte Pereira. Correio da Cidadania, 05/11/2014.

[10] Ato em São Paulo reúne 20 mil pessoas em defesa das reformas e contra golpismo. (14/11/2014):

[11] Comissão aprova relatório sobre direito de greve do servidor público (11/11/2014):

[12] Comissão mista da Câmara e Senado aprova também parecer pela flexibilização do conceito de trabalho escravo. (12/11/2014):

[13] A curiosa Marinaleda (03/07/2013):


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