domingo, 5 de outubro de 2014

Marx e Engels contra a pressão eleitoral

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Com muita frequência a esquerda socialista se depara com o assédio e a pressão eleitoral do reformismo, da socialdemocracia e demais gestores de “esquerda” do capital. Sempre que se encontram ameaçados pela concorrência da direita tradicional apelam para que a esquerda socialista esqueça as diferenças e forme uma unidade para derrotar a direita, que seria a tarefa principal. Criam um ambiente de terrorismo em torno do programa e da repressão terríveis que viriam com a vitória da direita, mencionam que não haveria nada melhor e que ao menos representam um “mal menor” em comparação com seus adversários. Uma vez eleitos governam com o programa da direita que deveria ser derrotada, muitas vezes aprofundando-o em uma escala superior a da própria, sem vacilar em empreender uma repressão superior a mesma quando a esquerda socialista, os trabalhadores e os movimentos sociais contestam e resistem às medidas do referido programa.

Quando o assédio e a pressão eleitoral não surtem efeito e são rejeitados pela esquerda socialista, esta logo é acusada de sectarismo e de facilitar o caminho para a vitória eleitoral da direita. Tal polêmica não é nova na história do movimento dos trabalhadores e já foi enfrentada pelos pais do socialismo científico.

Como é possível constatar no Manifesto Comunista, Marx e Engels defenderam, em 1848, na Alemanha, unidade com o partido democrático contra os defensores do feudalismo. Dado que os vacilos desse partido contribuíram para a derrota do movimento revolucionário, Marx e Engels fizeram um duro balanço em 1850, onde defenderam a independência política e de organização dos trabalhadores, denunciaram implacavelmente o partido democrático, rejeitaram aliança eleitoral com o mesmo e criticaram a ideia do “mal menor” apesar deste partido se encontrar na oposição.

As palavras contidas no trecho abaixo e extraídas da Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas, texto no qual os pais do socialismo científico fazem o referido balanço e formulam táticas eleitorais e políticas, são de uma atualidade impressionante:

“Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem accionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reaccionários na Representação. Surja a democracia, desde o princípio, decidida e terrorista contra a reacção, e a influência desta nas eleições será antecipadamente aniquilada.” [1]

Será que os nossos amigos reformistas, sociaisdemocratas e demais gestores de “esquerda” do capital teriam a ousadia de impingir a pecha de “sectários” aos pais do socialismo científico?

Essa trupe reclama quando questionada de suas medidas burguesas, do rebaixamento e abandono das demandas históricas dos trabalhadores e movimentos sociais e de suas alianças com setores de direita. Justificam reclamando da correlação de forças - que para eles é eternamente desfavorável - e enaltecem suas alianças como tática política inovadora e sofisticada que serviria para fazer “alguma coisa” pelo povo, embora esse “alguma coisa” não passe de programas assistenciais indicados e tolerados pelas próprias classes dominantes.

Mais uma vez não estamos diante de nenhuma novidade. Em 1879, Marx e Engels criticaram duramente a proposta de três dirigentes do Partido Social-Democrata alemão que, diante da repressão e perseguição desencadeadas contra os socialistas através de uma lei de exceção, defenderam o rebaixamento do programa do partido e alianças com setores da burguesia:

“Têm aqui vocês o programa dos três censores de Zurique. Em clareza, nada deixa a desejar. Pelo menos, para nós, que ainda conhecemos bem estas maneiras de falar todas desde 1848 para cá. São os representantes da pequena burguesia [Kleinburgertum] que se anunciam, cheios de medo de que o proletariado, compelido pela sua situação revolucionária, possa «ir demasiado longe». Em vez de oposição política decidida — mediação [Vermittlung] geral; em vez de luta contra o governo e a burguesia — a tentativa de os ganhar e de os persuadir; em vez de resistência obstinada contra os maus tratos de cima — submissão humilde e admissão de que se tinha merecido o castigo. Todos os conflitos historicamente necessários são interpretados deturpadamente como mal-entendidos e toda a discussão termina com o protesto: no principal, estamos afinal todos unidos. As pessoas que em 1848 apareceram como democratas burguesas, podem agora do mesmo modo chamar-se a si próprias sociais-democratas. Tal como, para aquelas, a república democrática, também, para estas, o derrube da ordem capitalista fica na lonjura inalcançável [e] não tem, portanto, absolutamente nenhuma significação para a prática política do presente; pode-se mediar, fazer compromissos, praticar a filantropia, quanto se quiser. É o mesmo para a luta de classes entre proletariado e burguesia. É reconhecida no papel, porque já não se pode negá-la; na prática, porém, é mascarada, apagada, amortecida. O Partido Social-Democrata não deve ser nenhum Partido operário, não deve atrair sobre si o ódio da burguesia ou, em geral, de quem quer que seja; deve, antes de tudo, fazer uma propaganda enérgica entre a burguesia; em vez de dar peso a objectivos [Ziele] que vão longe, que assustam a burguesia e que, contudo, são inalcançáveis na nossa geração, ele deve antes empregar toda a sua força e energia naquelas reformas remendonas pequeno-burguesas que conferem à velha ordem da sociedade novos apoios e que, por esse facto, poderiam talvez transformar a catástrofe final num processo gradual, parcelar e o mais possível pacífico de dissolução. São as mesmas pessoas que, sob a aparência da incansável ocupação, não só não fazem nada elas próprias, como também tentam impedir que, em geral, aconteça algo — a não ser conversa; as mesmas pessoas, cujo medo de qualquer acção, em 1848 e em 1849, entravou o movimento a cada passo e finalmente o levou à derrota; as mesmas pessoas que nunca vêem a reacção e, depois, ficam totalmente admiradas de se encontrarem finalmente num beco sem saída, onde nem resistência nem fuga são possíveis; as mesmas pessoas que querem confinar a história ao seu horizonte pequeno-burguês [Spiessburgerhorizont] e por cima das quais, de cada vez, a história transita para a ordem do dia.” [2]

A conjuntura era muito mais dura do que a que atualmente os reformistas, sociaisdemocratas e gestores de “esquerda” do capital praticam a sua política de traição e de conciliação de classes. Mesmo assim os pais do socialismo científico mantiveram firmes suas convicções:

“Se o novo órgão do Partido tomar uma atitude que corresponde às opiniões daqueles senhores, for burguês e não proletário, não nos resta senão, por muita pena que isso nos faça, declarar-nos abertamente contra e romper a solidariedade com que, até aqui, face ao estrangeiro, temos representado o Partido alemão. Esperemos, contudo, que não se chegue até ai. [...]” [idem]

Longe de sectária ou aventureira a crítica de Marx e Engels ajudou o Partido Social-Democrata a corrigir alguns equívocos e oportunismos e principalmente resistir de forma habilidosa à perseguição política, de onde saiu fortalecido como organização política, tendo aumentado o seu número de integrantes e apoiadores.


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[1] Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas. Março de 1850.

[2] Carta Circular a A. Bebel, W. Liebknecht, W. Bracke e Outros. 17-18 de Setembro de 1879.



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