terça-feira, 28 de abril de 2020

Projeto de Vida: a estupidificação das classes populares

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A intuição popular costuma denunciar o descaso com a educação pública como parte de um plano de dominação: “povo burro é mais fácil de manipular”. Nos últimos anos juntou-se ao descaso material (cortes de verbas, baixos salários, estrutura precária, falta de itens básicos, falta de professores, etc) propostas “pedagógicas” que atacam a liberdade de alunos e professores assim como tentam empurrar para a sala de aula teorias defeituosas, anticientíficas e até conspiratórias.

O olavismo e movimentos como o Escola sem Partido são a expressão máxima de tais propostas e os que possuem mais visibilidade. Mas não são os únicos. No Rio Grande do Sul o governador tucano, Eduardo Leite, contrariou decisão do Conselho Estadual de Educação e empurrou goela abaixo das comunidades escolares uma matriz curricular que ao mesmo tempo em que reduziu a carga horária de disciplinas importantes criou outra com carga horária nada desprezível para cumprir a tarefa de estupidificação dos filhos e filhas das classes populares, uma disciplina com o curioso nome de “Projeto de Vida”.

É verdade que ela já estava prevista na Reforma do Ensino Médio de Temer [1] e que já se sabia dos propósitos. Mas agora com um documento de um importante governo estadual definindo carga horária, conteúdos e habilidades a serem desenvolvidas fica evidente o tamanho do estrago que se está a preparar.

Antes de entrar na disciplina propriamente dita é preciso analisar o que tem sido o governo Eduardo Leite em geral, e na educação em particular, uma vez que o jovem governador vem buscando projeção nacional e se apresenta como “gestor” que dialoga com a sociedade.

Leite foi aliado do ex-governador José Ivo Sartori (MDB) e tem dado continuidade aos planos neoliberais do seu antecessor como privatizações, cortes de recursos, retirada de direitos dos servidores, fechamento de escolas, etc [2]. Possui relações estreitas com o especulador Jorge Paulo Lemann tendo realizado viagens e cursos pagos pela fundação do mesmo [3][4]. Não por acaso fechou convênios com a Fundação Lemann já no segundo mês de seu governo: um na área de RH e outro na educação. [5][6]

Desde então uma série de ataques vem sendo desferidos contra a educação pública estadual: nomeação “técnica” de aliados políticos para as Coordenadorias Regionais de Educação [7]; desvio de R$ 92 milhões de obras em escolas para rodovias a serem privatizadas; demissão de professores contratados em plena licença de saúde; implementação de um aplicativo de chamada virtual que cancela arbitrariamente matrículas de alunos; fechamento de turnos, turmas e escolas; ataque ao plano de carreira dos professores e outros direitos na reforma administrativa; desconto de salário de greve mesmo com os dias recuperados; imposição de uma nova matriz curricular passando por cima das instâncias de representação; eliminação de benefícios como o difícil acesso por decreto; etc.

A forma de implementação de todas essas medidas tem sido o autoritarismo, o desrespeito pela legislação vigente (muitas vezes o seu desconhecimento), o desprezo pelas entidades representativas como o próprio Conselho Estadual de Educação, a perversidade e a desumanidade.

Essas são as marcas da parceria Leite-Lemann no Rio Grande do Sul e elas merecem a atenção de todo o país uma vez que as pretensões dessa dupla não são segredos para ninguém: o especulador tem atuado para comprar políticos (não por acaso foi acusado de criar uma espécie de partido clandestino [8]), não esconde querer meter a mão na educação pública [9] e nem que quer ver um dos seus cupinchas na Presidência da República [10] ao passo que o governador é um jovem prepotente e ambicioso que deseja o Palácio do Planalto. [11]

Feita essa importante, embora resumida, caracterização do governo Leite entraremos agora no tema da disciplina “Projeto de Vida” e utilizaremos o documento base de 18 páginas do próprio governo estadual para análise.

A nova matriz curricular imposta goela abaixo não vale para as escolas privadas, logo não haverá “Projeto de Vida” nelas. Já na rede estadual a disciplina passa a ser ofertada a partir da 6ª série do Ensino Fundamental. Isso mesmo, 6ª série! Já na primeira página do documento é dito o que se espera dos estudantes:

Dessa forma, os estudantes são desafiados e estimulados, por meio de práticas e vivências pedagógicas, ao desenvolvimento de habilidade e competências inerentes ao empreendedorismo, a proatividade e a autoconfiança, a fim de que se identifiquem e sejam bem-sucedidos em projetos relacionados aos seus temas de interesse, resolvam problemas criativamente ou proponham novas possibilidades à vida cotidiana, com pensamento crítico, comunicação e colaboração tão importantes quanto o conhecimento acadêmico.” (p.1)

Logo veremos se esse chamado à autoajuda é compatível com conhecimento acadêmico. Na página 2 é dito o que se espera dos professores:

A esse profissional cabe acolher os estudantes e suas expectativas de aprendizagem e, ainda, inspirar e valorizar a presença e o presente do estudante, provocando-os na descoberta dos seus sonhos e aspirações, conduzindo-os às reflexões necessárias.
Ao trabalhar o componente curricular Projeto de Vida, o professor deve ter interesse e disponibilidade em aprender e abordar temas relacionados a cultura e tecnologias digitais e empreendedorismo, além dos temas relacionados às escolhas e carreiras dos estudantes.” (p.2)

Seria mais adequado pedir certificados de cursos realizados com coachs picaretas de YouTube em vez de licenciatura afinal com todos os defeitos que possui a formação de professores no país se tem uma coisa que as faculdades de educação prezam é pelo conhecimento acadêmico.

Se a introdução já é suficiente para mostrar o quanto a disciplina é problemática o detalhamento das habilidades a serem desenvolvidas mostra o quanto a proposta é absurda. Elencamos algumas delas para comprovar o que estamos falando:


Relacionar a sua história de vida aos seus sonhos. Saber o seu valor e refletir sobre ele. Explorar o conceito de inteligência emocional. Perceber as suas emoções e das pessoas. Estabelecer relações equilibradas e construtivas. Compreender e valorizar sonhos. Idealizar projetos.” (6º ano do Ensino Fundamental, p.3-4)

Aprender a fazer escolhas. Refletir para tomar decisões. Aceitar os desafios como possibilidade de crescimento. Ser resiliente e persistente. Ter critério ao fazer as suas escolhas. Agir com base nos valores “honestidade e justiça”. Promover a conscientização sobre o modo de agir que demonstra a prática desses valores. Perceber situações práticas e consequências de atitudes empreendedoras. Praticar atitudes que promovam a estabilidade financeira. Entender a atitude empreendedora como algo que pode ser desenvolvido. Reconhecer situações práticas e consequências de atitudes.” (7º ano do Ensino Fundamental, p.5-6)

Entender de maneira mais aprofundada os diferentes sentimentos. Perceber-se como alguém que vivencia emoções. Lidar com as emoções e sentimentos. Acreditar nas iniciativas pessoais. Aprimorar a sua capacidade criativa. Identificar habilidades para melhores escolhas. Identificar ações protagonistas por meio de exemplos. Confiar no próprio potencial. Entender atitude empreendedora como algo que pode ser treinado. Planejar sua vida financeira. Lidar de forma positiva com a vida financeira. Identificar ações empreendedoras. Explorar o conceito de empreendedorismo. Conhecer exemplos de pessoas empreendedoras.” (8º ano do Ensino Fundamental, p.7)

Praticar e desenvolver atitudes protagonistas. Relacionar atuação com felicidade. Ponderar caminhos e conquistas a percorrer. Cultivar a autoestima e pensamentos positivos. Aperfeiçoar-se constantemente. Empenhar-se para buscar a melhor versão de si mesmo. Mapear e identificar suas virtudes pessoais. Auto avaliar-se em relação às diferentes áreas da vida. Interessar-se por boas práticas. Atualizar-se sobre ações responsáveis e éticas.” (9º ano do Ensino Fundamental, p.8)

Reconhecer as próprias qualidades, características e crenças limitantes, compreendendo a importância do autoconhecimento para construir um projeto de vida e ser protagonista de sua própria história.
Construir e valorizar positivamente as diferentes personalidades, limitações e qualidades do outro.
Refletir sobre a importância dos padrões de seu sistema familiar na formação da identidade e do próprio futuro.
Conhecer e utilizar técnicas de meditação e introspecção para desenvolvimento de consciência e concentração.
Conhecer a teoria do mindset e seus impactos. Reconhecer a importância dos diferentes tipos de mindset.
Aprender conceitos sobre felicidade e a diferença entre felicidade e prazer, identificando situações que criam experiências positivas e dedicar-se a construir um ambiente saudável de paz, compreensão e harmonia. Perceber a própria singularidade.
Identificar formas de desenvolver a criatividade, bloqueios mentais e a importância da quebra de paradigmas. Aprender sobre perfil empreendedor e atitude empreendedora.
Aprender a usar o tempo de maneira organizada, refletindo sobre a rotina e ações do dia a dia.
Exercitar a decomposição, por meio da quebra de atividades rotineiras em diversos passos ou instruções.” (1º ano do Ensino Médio, p.10-11)

Conhecer os tipos de personalidades reconhecendo seus limites e possibilidades pessoais.
Aprofundar o entendimento sobre o perfil de personalidade. Conhecer seus limites e possibilidades.
Conhecer suas preferências, interesses, habilidades e valores, percebendo a importância da diversidade.
Ampliar o autoconhecimento. Desenvolver a autoconfiança. Ter consciência de suas habilidades.
Reconhecer em si mesmo habilidades e características que podem ser desenvolvidas.
Compreender-se como um ser em processo de aprendizagem e em constante transformação.
Aprender sobre os valores felicidade e solidariedade. Ser solidário e construir formas de ser feliz.
Entender a complexidade das escolhas. Buscar exercer um trabalho autêntico alinhado ao “eu”.
Aprofundar a ideia de que oportunidades podem ser criadas. Ser criativo e inovador.
Conhecer as influências de opiniões alheias em nossos comportamentos.
Perceber situações que incomodam e aprender a lidar com elas.
Criar estratégias de defesa para impedir que a ansiedade e as preocupações prejudiquem desempenho e a relação com o mundo.” (2º ano do Ensino Médio, p.13-15)

Identificar e reconhecer as afinidades pessoais. Entender a diferença entre sonho e projeto.
Reconhecer as afinidades. Acreditar nos seus sonhos e transformá-los em projeto de vida.
Ser proativo e ter atitude com relação às próprias metas.
Desenvolver o autoconhecimento a partir da análise das diferentes áreas da vida.
Conhecer as tendências do mercado e das áreas profissionais e os desafios para o futuro.
Identificar características que já tem bem desenvolvidas para poder aprimorar as que são importantes e ainda podem ser lapidadas.
Interpretar as situações de maneira flexível, funcional e saudável.
Identificar como os sentimentos, os pensamentos e as ações estão conectados e se influenciam mutuamente. Conhecer formas de equilibrar a vida financeira.
Reconhecer o padrão de vida atual e fazer os ajustes necessários (economias ou investimento).
Usar recursos tecnológicos que favoreçam uma vida financeira equilibrada.
Planejar o andamento da vida financeira de modo consistente.
Conhecer fontes de recursos que viabilizem e incentivem o empreendedorismo.
Praticar uma atitude empreendedora. Concretizar ideias e colocar em prática projetos e planos.
Tolerar frustações. Aprender a lidar com limites. Entender os processos para se manter em equilíbrio emocional.” (3º ano do Ensino Médio, p.16-17)


Embora demasiado o apanhado acima representa menos da metade de todo o programa previsto. A conclusão óbvia após a leitura é de que estamos diante de um manual de autoajuda, autoculpa e glamorização da precarização do trabalho que nada educa em termos de “conhecimento acadêmico” mas que tenta cumprir o papel de adestrar uma massa empobrecida e sem grandes perspectivas no projeto neoliberal de país colonial construído pela classe dominante. Assim, a escola avaliza a ideologia mesquinha que “especialistas”, políticos, empresários, especuladores e os meios de comunicação já professam.

Vejamos, por exemplo, a questão do empreendedorismo. Um professor estadual que levar esse tema para a sala de aula será rapidamente desmoralizado quando um aluno perguntar (e isso será inevitável) porque o docente não utiliza para si o que está a indicar. Isso pensando na concepção empresarial do termo pois como se sabe ele tem sido utilizado de forma banal em larga escala para glamorizar trabalhos precários. Para piorar existem concepções vulgares que tratam tudo como empreendedorismo. Nos três casos trata-se de uma baixeza ideológica incompatível com qualquer “conhecimento acadêmico”.

Outro caso é a “Educação Financeira”. Todas as contradições e problemas inerentes à economia política do capital são transferidos para o plano particular onde indivíduos são pobres porque não sabem “poupar”, nem “planejar”, tampouco “investir” um dinheiro miserável que mal cobre a alimentação. E novamente o professor estadual passará vergonha quando algum “Joãozinho” questioná-lo sobre as dicas dadas e a situação de miserabilidade do docente.

Desnecessário comentar coisas como “mindset” ou voltar-se ao “eu interior” pois gritam sozinhos de tão absurdos. Mas necessário comentar a lembrança que alguns podem fazer de que está contido no programa do “Projeto de Vida” questões relativas a preconceito, uso e a relação com as novas tecnologias, trabalho e salário, questões sociais urgentes e até identificação de transformações sociais.

Tais conteúdos – típicos de disciplinas como Sociologia, Filosofia e Geografia, cuja carga horária foi reduzida – aparecem em um manual de autoajuda, autoculpa e de glamorização da precarização porque são acessórios a serviço dessas imbecilidades. Não por acaso são muito diminutos na grade de conteúdos.

Por fim, cabe lembrar uma vez mais que a referida disciplina é parte de uma contrarreforma na educação que aprofunda ainda mais a distância entre as classes no acesso a um ensino de qualidade legalizando uma espécie de “educação de castas” com consequências trágicas para o futuro dos filhos e filhas das classes populares nos âmbitos profissional, intelectual e social.


Leia também:
Governo apresenta reforma curricular para ensino básico gaúcho. Andes, 06/12/2019.

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[1] Lei 13415/2017.

[2] Eduardo Leite é o Sartori que mergulhou na fonte da juventude. Jorge Nogueira, 07/07/2019.

[3] Em 3 de abril de 2017, Eduardo Leite fez a seguinte publicação em seu perfil pessoal do Facebook:

“Participei, agora à noite, de jantar da Fundação Lemann aqui na Universidade de Columbia.

A Fundação é parceira da universidade e, através do programa Lemann Fellows, discute questões do Brasil e apoia educação e treinamento de jovens, com foco em capacitar líderes e promover inovação para transformar o futuro do nosso país.

O Programa Juntos, da Comunitas, foi quem nos apresentou à Fundação Lemann, que nos ajudou a implementar a plataforma Khan Academy nas escolas municipais em Pelotas.

Na foto: Thomas Trebat (diretor do Columbia Global Center no Rio), o economista André Lara Resende e o empresário Jorge Paulo Lemann.
#columbiauniversity #fundacaolemann #lemannfoundation #lemannfellows”


[4] Eduardo Leite viajou 71 dias no primeiro ano de governo do RS. Correio do Povo, 29/11/2019:

“No caso das viagens aos Estados Unidos, o próprio Palácio Piratini destacou que três foram custeadas por seus organizadores. A de julho tem entre eles a Comunitas, uma associação privada, sem fins lucrativos, vinculada a setores empresariais. As de setembro e novembro foram a convite da Fundação Lemann. A Lemann também é uma organização sem fins lucrativos, criada pelo empresário Jorge Paulo Lemann.”


[5] Estado celebra parceria com foco em gestão de pessoas. Estado RS, 24/02/2019.

[6] ATO DE ASSINATURA DE CONVÊNIO ENTRE O ESTADO E A FUNDAÇÃO LEMANN PARA AÇÕES NA EDUCAÇÃO. Estado RS, 25/02/2019.

[7] Indicações “técnicas” para as CREs incluem 20 coordenadores filiados ou próximos de partidos da base do governo. Cpers, 13/09/2019.

[8] Ciro: movimento Acredito, de Jorge Paulo Lemann, é “partido clandestino” e Tabata faz “dupla militância”. Revista Forum, 13/07/2019.

[9] Como Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, pretende mudar a educação no país. Costurar a criação da Ambev, adquirir o Burger King e a Heinz foram bons treinos. O desafio que Lemann se impôs agora é consertar o ensino público brasileiro. Época Negócios, 01/01/2015.

[10] Os candidatos de Jorge Paulo Lemann. Eles se formaram nas melhores universidades do mundo com a ajuda do homem mais rico do Brasil e poderiam trilhar carreiras prósperas no mundo corporativo, mas preferiram mudar a política do País. Conheça os jovens políticos que podem tornar real o sonho do bilionário brasileiro de ver um de seus pupilos na Presidência da República. Istoé Dinheiro, 24/08/2018.

[11] Eduardo Leite, a nova aposta do centro para 2022. Época, 14/02/2020.





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