A
intuição popular costuma denunciar o descaso com a educação
pública como parte de um plano de dominação: “povo burro é
mais fácil de manipular”. Nos últimos anos juntou-se ao
descaso material (cortes de verbas, baixos salários, estrutura
precária, falta de itens básicos, falta de professores, etc)
propostas “pedagógicas” que atacam a liberdade de alunos e
professores assim como tentam empurrar para a sala de aula teorias
defeituosas, anticientíficas e até conspiratórias.
O
olavismo e movimentos como o Escola sem Partido são a expressão
máxima de tais propostas e os que possuem mais visibilidade. Mas não
são os únicos. No Rio Grande do Sul o governador tucano, Eduardo
Leite, contrariou decisão do Conselho Estadual de Educação e
empurrou goela abaixo das comunidades escolares uma matriz curricular
que ao mesmo tempo em que reduziu a carga horária de disciplinas
importantes criou outra com carga horária nada desprezível para
cumprir a tarefa de estupidificação dos filhos e filhas das classes
populares, uma disciplina com o curioso nome de “Projeto de Vida”.
É
verdade que ela já estava prevista na Reforma do Ensino Médio de
Temer [1] e que já se sabia dos propósitos. Mas agora com um
documento de um importante governo estadual definindo carga horária,
conteúdos e habilidades a serem desenvolvidas fica evidente o
tamanho do estrago que se está a preparar.
Antes de
entrar na disciplina propriamente dita é preciso analisar o que tem
sido o governo Eduardo Leite em geral, e na educação em particular,
uma vez que o jovem governador vem buscando projeção nacional e se
apresenta como “gestor” que dialoga com a sociedade.
Leite foi
aliado do ex-governador José Ivo Sartori (MDB) e tem dado
continuidade aos planos neoliberais do seu antecessor como
privatizações, cortes de recursos, retirada de direitos dos
servidores, fechamento de escolas, etc [2]. Possui relações
estreitas com o especulador Jorge Paulo Lemann tendo realizado
viagens e cursos pagos pela fundação do mesmo [3][4]. Não por
acaso fechou convênios com a Fundação Lemann já no segundo mês
de seu governo: um na área de RH e outro na educação. [5][6]
Desde
então uma série de ataques vem sendo desferidos contra a educação
pública estadual: nomeação “técnica” de aliados políticos
para as Coordenadorias Regionais de Educação [7]; desvio de R$ 92
milhões de obras em escolas para rodovias a serem privatizadas;
demissão de professores contratados em plena licença de saúde;
implementação de um aplicativo de chamada virtual que cancela
arbitrariamente matrículas de alunos; fechamento de turnos, turmas e
escolas; ataque ao plano de carreira dos professores e outros
direitos na reforma administrativa; desconto de salário de greve
mesmo com os dias recuperados; imposição de uma nova matriz
curricular passando por cima das instâncias de representação;
eliminação de benefícios como o difícil acesso por decreto; etc.
A forma
de implementação de todas essas medidas tem sido o autoritarismo, o
desrespeito pela legislação vigente (muitas vezes o seu
desconhecimento), o desprezo pelas entidades representativas como o
próprio Conselho Estadual de Educação, a perversidade e a
desumanidade.
Essas são
as marcas da parceria Leite-Lemann no Rio Grande do Sul e elas
merecem a atenção de todo o país uma vez que as pretensões dessa
dupla não são segredos para ninguém: o especulador tem atuado para
comprar políticos (não por acaso foi acusado de criar uma espécie
de partido clandestino [8]), não esconde querer meter a mão na
educação pública [9] e nem que quer ver um dos seus cupinchas na
Presidência da República [10] ao passo que o governador é um jovem
prepotente e ambicioso que deseja o Palácio do Planalto. [11]
Feita
essa importante, embora resumida, caracterização do governo Leite
entraremos agora no tema da disciplina “Projeto de Vida” e
utilizaremos o documento base de 18 páginas do próprio governo
estadual para análise.
A nova
matriz curricular imposta goela abaixo não vale para as escolas
privadas, logo não haverá “Projeto de Vida” nelas. Já na rede
estadual a disciplina passa a ser ofertada a partir da 6ª série do
Ensino Fundamental. Isso mesmo, 6ª série! Já na primeira página
do documento é dito o que se espera dos estudantes:
“Dessa
forma, os estudantes são desafiados e estimulados, por meio de
práticas e vivências pedagógicas, ao desenvolvimento de habilidade
e competências inerentes ao empreendedorismo, a proatividade e a
autoconfiança, a fim de que se identifiquem e sejam bem-sucedidos em
projetos relacionados aos seus temas de interesse, resolvam problemas
criativamente ou proponham novas possibilidades à vida cotidiana,
com pensamento crítico, comunicação e colaboração tão
importantes quanto o conhecimento acadêmico.” (p.1)
Logo
veremos se esse chamado à autoajuda é compatível com conhecimento
acadêmico. Na página 2 é dito o que se espera dos professores:
“A
esse profissional cabe acolher os estudantes e suas expectativas de
aprendizagem e, ainda, inspirar e valorizar a presença e o presente
do estudante, provocando-os na descoberta dos seus sonhos e
aspirações, conduzindo-os às reflexões necessárias.
Ao
trabalhar o componente curricular Projeto de Vida, o professor deve
ter interesse e disponibilidade em aprender e abordar temas
relacionados a cultura e tecnologias digitais e empreendedorismo,
além dos temas relacionados às escolhas e carreiras dos
estudantes.” (p.2)
Seria
mais adequado pedir certificados de cursos realizados com coachs
picaretas de YouTube em vez de licenciatura afinal com todos os
defeitos que possui a formação de professores no país se tem uma
coisa que as faculdades de educação prezam é pelo conhecimento
acadêmico.
Se a
introdução já é suficiente para mostrar o quanto a disciplina é
problemática o detalhamento das habilidades a serem desenvolvidas
mostra o quanto a proposta é absurda. Elencamos algumas delas para
comprovar o que estamos falando:
“Relacionar
a sua história de vida aos seus sonhos. Saber o seu valor e refletir
sobre ele. Explorar o conceito de inteligência emocional. Perceber
as suas emoções e das pessoas. Estabelecer relações equilibradas
e construtivas. Compreender e valorizar sonhos. Idealizar projetos.”
(6º ano do Ensino Fundamental, p.3-4)
“Aprender
a fazer escolhas. Refletir para tomar decisões. Aceitar os desafios
como possibilidade de crescimento. Ser resiliente e persistente. Ter
critério ao fazer as suas escolhas. Agir com base nos valores
“honestidade e justiça”. Promover a conscientização sobre o
modo de agir que demonstra a prática desses valores. Perceber
situações práticas e consequências de atitudes empreendedoras.
Praticar atitudes que promovam a estabilidade financeira. Entender a
atitude empreendedora como algo que pode ser desenvolvido. Reconhecer
situações práticas e consequências de atitudes.” (7º ano
do Ensino Fundamental, p.5-6)
“Entender
de maneira mais aprofundada os diferentes sentimentos. Perceber-se
como alguém que vivencia emoções. Lidar com as emoções e
sentimentos. Acreditar nas iniciativas pessoais. Aprimorar a sua
capacidade criativa. Identificar habilidades para melhores escolhas.
Identificar ações protagonistas por meio de exemplos. Confiar no
próprio potencial. Entender atitude empreendedora como algo que pode
ser treinado. Planejar sua vida financeira. Lidar de forma positiva
com a vida financeira. Identificar ações empreendedoras. Explorar o
conceito de empreendedorismo. Conhecer exemplos de pessoas
empreendedoras.” (8º ano do Ensino Fundamental, p.7)
“Praticar
e desenvolver atitudes protagonistas. Relacionar atuação com
felicidade. Ponderar caminhos e conquistas a percorrer. Cultivar a
autoestima e pensamentos positivos. Aperfeiçoar-se constantemente.
Empenhar-se para buscar a melhor versão de si mesmo. Mapear e
identificar suas virtudes pessoais. Auto avaliar-se em relação às
diferentes áreas da vida. Interessar-se por boas práticas.
Atualizar-se sobre ações responsáveis e éticas.” (9º ano
do Ensino Fundamental, p.8)
“Reconhecer
as próprias qualidades, características e crenças limitantes,
compreendendo a importância do autoconhecimento para construir um
projeto de vida e ser protagonista de sua própria história.
Construir
e valorizar positivamente as diferentes personalidades, limitações
e qualidades do outro.
Refletir
sobre a importância dos padrões de seu sistema familiar na formação
da identidade e do próprio futuro.
Conhecer
e utilizar técnicas de meditação e introspecção para
desenvolvimento de consciência e concentração.
Conhecer
a teoria do mindset e seus impactos. Reconhecer a importância dos
diferentes tipos de mindset.
Aprender
conceitos sobre felicidade e a diferença entre felicidade e prazer,
identificando situações que criam experiências positivas e
dedicar-se a construir um ambiente saudável de paz, compreensão e
harmonia. Perceber a própria singularidade.
Identificar
formas de desenvolver a criatividade, bloqueios mentais e a
importância da quebra de paradigmas. Aprender sobre perfil
empreendedor e atitude empreendedora.
Aprender
a usar o tempo de maneira organizada, refletindo sobre a rotina e
ações do dia a dia.
Exercitar
a decomposição, por meio da quebra de atividades rotineiras em
diversos passos ou instruções.” (1º ano do Ensino Médio,
p.10-11)
“Conhecer
os tipos de personalidades reconhecendo seus limites e possibilidades
pessoais.
Aprofundar
o entendimento sobre o perfil de personalidade. Conhecer seus limites
e possibilidades.
Conhecer
suas preferências, interesses, habilidades e valores, percebendo a
importância da diversidade.
Ampliar
o autoconhecimento. Desenvolver a autoconfiança. Ter consciência de
suas habilidades.
Reconhecer
em si mesmo habilidades e características que podem ser
desenvolvidas.
Compreender-se
como um ser em processo de aprendizagem e em constante transformação.
Aprender
sobre os valores felicidade e solidariedade. Ser solidário e
construir formas de ser feliz.
Entender
a complexidade das escolhas. Buscar exercer um trabalho autêntico
alinhado ao “eu”.
Aprofundar
a ideia de que oportunidades podem ser criadas. Ser criativo e
inovador.
Conhecer
as influências de opiniões alheias em nossos comportamentos.
Perceber
situações que incomodam e aprender a lidar com elas.
Criar
estratégias de defesa para impedir que a ansiedade e as preocupações
prejudiquem desempenho e a relação com o mundo.” (2º ano do
Ensino Médio, p.13-15)
“Identificar
e reconhecer as afinidades pessoais. Entender a diferença entre
sonho e projeto.
Reconhecer
as afinidades. Acreditar nos seus sonhos e transformá-los em projeto
de vida.
Ser
proativo e ter atitude com relação às próprias metas.
Desenvolver
o autoconhecimento a partir da análise das diferentes áreas da
vida.
Conhecer
as tendências do mercado e das áreas profissionais e os desafios
para o futuro.
Identificar
características que já tem bem desenvolvidas para poder aprimorar
as que são importantes e ainda podem ser lapidadas.
Interpretar
as situações de maneira flexível, funcional e saudável.
Identificar
como os sentimentos, os pensamentos e as ações estão conectados e
se influenciam mutuamente. Conhecer formas de equilibrar a vida
financeira.
Reconhecer
o padrão de vida atual e fazer os ajustes necessários (economias ou
investimento).
Usar
recursos tecnológicos que favoreçam uma vida financeira
equilibrada.
Planejar
o andamento da vida financeira de modo consistente.
Conhecer
fontes de recursos que viabilizem e incentivem o empreendedorismo.
Praticar
uma atitude empreendedora. Concretizar ideias e colocar em prática
projetos e planos.
Tolerar
frustações. Aprender a lidar com limites. Entender os processos
para se manter em equilíbrio emocional.” (3º ano do Ensino
Médio, p.16-17)
Embora
demasiado o apanhado acima representa menos da metade de todo o
programa previsto. A conclusão óbvia após a leitura é de que
estamos diante de um manual de autoajuda, autoculpa e glamorização
da precarização do trabalho que nada educa em termos de
“conhecimento acadêmico” mas que tenta cumprir o papel de
adestrar uma massa empobrecida e sem grandes perspectivas no projeto
neoliberal de país colonial construído pela classe dominante.
Assim, a escola avaliza a ideologia mesquinha que “especialistas”,
políticos, empresários, especuladores e os meios de comunicação
já professam.
Vejamos,
por exemplo, a questão do empreendedorismo. Um professor estadual
que levar esse tema para a sala de aula será rapidamente
desmoralizado quando um aluno perguntar (e isso será inevitável)
porque o docente não utiliza para si o que está a indicar. Isso
pensando na concepção empresarial do termo pois como se sabe ele
tem sido utilizado de forma banal em larga escala para glamorizar
trabalhos precários. Para piorar existem concepções vulgares que
tratam tudo como empreendedorismo. Nos três casos trata-se de uma
baixeza ideológica incompatível com qualquer “conhecimento
acadêmico”.
Outro
caso é a “Educação Financeira”. Todas as contradições e
problemas inerentes à economia política do capital são
transferidos para o plano particular onde indivíduos são pobres
porque não sabem “poupar”, nem “planejar”, tampouco
“investir” um dinheiro miserável que mal cobre a alimentação.
E novamente o professor estadual passará vergonha quando algum
“Joãozinho” questioná-lo sobre as dicas dadas e a situação de
miserabilidade do docente.
Desnecessário
comentar coisas como “mindset” ou voltar-se ao “eu interior”
pois gritam sozinhos de tão absurdos. Mas necessário comentar a
lembrança que alguns podem fazer de que está contido no programa do
“Projeto de Vida” questões relativas a preconceito, uso e a
relação com as novas tecnologias, trabalho e salário, questões
sociais urgentes e até identificação de transformações sociais.
Tais
conteúdos – típicos de disciplinas como Sociologia, Filosofia e
Geografia, cuja carga horária foi reduzida – aparecem em um manual
de autoajuda, autoculpa e de glamorização da precarização porque
são acessórios a serviço dessas imbecilidades. Não por acaso são
muito diminutos na grade de conteúdos.
Por fim,
cabe lembrar uma vez mais que a referida disciplina é parte de uma
contrarreforma na educação que aprofunda ainda mais a distância
entre as classes no acesso a um ensino de qualidade legalizando uma
espécie de “educação de castas” com consequências trágicas
para o futuro dos filhos e filhas das classes populares nos âmbitos
profissional, intelectual e social.
Leia
também:
Governo
apresenta reforma curricular para ensino básico gaúcho. Andes,
06/12/2019.
http://www.adufpel.org.br/site/noticias/governo-apresenta-reforma-curricular-para-ensino-bsico-gacho
________________________________________________________________
[1] Lei
13415/2017.
[2]
Eduardo Leite é o Sartori que mergulhou na fonte da juventude. Jorge
Nogueira, 07/07/2019.
[3] Em 3
de abril de 2017, Eduardo Leite fez a seguinte publicação em seu
perfil pessoal do Facebook:
“Participei, agora à noite, de jantar da Fundação Lemann aqui na
Universidade de Columbia.
A Fundação é parceira da universidade e, através do programa
Lemann Fellows, discute questões do Brasil e apoia educação e
treinamento de jovens, com foco em capacitar líderes e promover
inovação para transformar o futuro do nosso país.
O Programa Juntos, da Comunitas, foi quem nos apresentou à Fundação
Lemann, que nos ajudou a implementar a plataforma Khan Academy nas
escolas municipais em Pelotas.
Na foto: Thomas Trebat (diretor do Columbia Global Center no Rio), o
economista André Lara Resende e o empresário Jorge Paulo Lemann.
#columbiauniversity #fundacaolemann #lemannfoundation #lemannfellows”
[4]
Eduardo Leite viajou 71 dias no primeiro ano de governo do RS.
Correio do Povo, 29/11/2019:
“No caso das viagens aos Estados Unidos, o próprio Palácio
Piratini destacou que três foram custeadas por seus organizadores. A
de julho tem entre eles a Comunitas, uma associação privada, sem
fins lucrativos, vinculada a setores empresariais. As de setembro e
novembro foram a convite da Fundação Lemann. A Lemann também é
uma organização sem fins lucrativos, criada pelo empresário Jorge
Paulo Lemann.”
[5]
Estado celebra parceria com foco em gestão de pessoas. Estado RS,
24/02/2019.
[6] ATO
DE ASSINATURA DE CONVÊNIO ENTRE O ESTADO E A FUNDAÇÃO LEMANN PARA
AÇÕES NA EDUCAÇÃO. Estado RS, 25/02/2019.
[7]
Indicações “técnicas” para as CREs incluem 20 coordenadores
filiados ou próximos de partidos da base do governo. Cpers,
13/09/2019.
[8] Ciro:
movimento Acredito, de Jorge Paulo Lemann, é “partido clandestino”
e Tabata faz “dupla militância”. Revista Forum, 13/07/2019.
[9] Como
Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, pretende mudar a
educação no país. Costurar a criação da Ambev, adquirir o Burger
King e a Heinz foram bons treinos. O desafio que Lemann se impôs
agora é consertar o ensino público brasileiro. Época Negócios,
01/01/2015.
[10] Os
candidatos de Jorge Paulo Lemann. Eles se formaram nas melhores
universidades do mundo com a ajuda do homem mais rico do Brasil e
poderiam trilhar carreiras prósperas no mundo corporativo, mas
preferiram mudar a política do País. Conheça os jovens políticos
que podem tornar real o sonho do bilionário brasileiro de ver um de
seus pupilos na Presidência da República. Istoé Dinheiro,
24/08/2018.
[11]
Eduardo Leite, a nova aposta do centro para 2022. Época, 14/02/2020.
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