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Alan Gagno - estudante de medicina da UFF (integrante do DABT)
Militante do Vamos à Luta
Uma das principais bandeiras levantadas durante as manifestações de junho que se alastraram pelo país foi a bandeira da saúde pública. Escutávamos com frequência palavras de ordem como “Da Copa, da Copa, da Copa eu abro mão... Eu quero mais dinheiro pra saúde e educação!”. Parecia incrível ver o país do futebol “abrindo mão” da Copa do Mundo de 2014 e exigindo melhorias em áreas básicas e historicamente negligenciadas como educação e saúde.
Em resposta aos anseios populares, o governo Dilma Rouseff (PT/PMDB) lançou, no dia 8 de julho de 2013, a Medida Provisória 621, a qual institui o Programa Mais Médicos. Na MP, estão contidas propostas como aumento do já longo curso de medicina para 8 anos, ampliação de vagas para o curso de medicina bem como criação de novas escolas médicas e a vinda temporária de médicos estrangeiros para suprirem áreas de demanda no interior do Brasil.
Contexto atual do SUS: subfinanciamento e sucateamento
De fato, há uma carência de médicos em áreas de interior e periferia do país, além de uma má distribuição dos médicos, que se concentram predominantemente nos grandes centros urbanos em detrimento de outras áreas. Esse é um problema crônico a ser enfrentado para que se amplie o acesso ao SUS, porém não da maneira como o governo apresentou, apontando o médico como o principal fator de solução para a crise estrutural da saúde e se desvinculando da responsabilidade de 10 anos de governo petista sem promover mudanças reais no quadro da saúde pública.
O investimento anual em saúde gira em torno de 4% do valor total do PIB, sendo que desses 4% mais da metade (54%) são destinados a subsidiar a iniciativa privada – que só atende a 25% da população -, e o ínfimo valor restante é que se destina de fato ao SUS público. Nota-se aí um grave problema de financiamento do SUS, com uma quantia que não dá para cobrir os gastos necessários para que se ofereça à população uma saúde de qualidade. Além disso, vale lembrar que aproximadamente 45% do PIB é destinado a pagar juros e amortizações da dívida interna e externa, alimentando banqueiros e especuladores da dívida em vez de ampliar os gastos em áreas sociais. Por isso, é necessário suspender imediatamente o pagamento da dívida para que ela possa ser submetida a uma auditoria. Do contrário, não será possível avançar no entrave do subfinanciamento da saúde.
Nesse contexto, o que se vê são unidades de saúde, em sua grande maioria, sucateadas, sem o mínimo necessário para a realização de um digno atendimento aos pacientes. Filas de espera enormes, demora na marcação de consultas e procedimentos, precária estrutura ambulatorial e de internação, falta de materiais básicos são alguns exemplos do que a população que utiliza o SUS enfrenta rotineiramente em busca de acesso aos serviços de saúde.
Dessa forma, a MP 621 surge como uma maquiagem no caos em que se encontra o SUS. É chamada de “medida emergencial”, mesmo após uma década de governo com cortes anuais em gastos sociais e incentivo a modelos privatizantes de saúde, tais como as Organizações Sociais (OSs) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Ampliação do curso de medicina como serviço civil obrigatório, aumento do quadro de vagas para medicina e abertura de novas escolas médicas
A proposta de se ampliar o curso de medicina para oito anos, criando um segundo ciclo que mascara um serviço civil obrigatório, é mais uma medida na contramão do que é idealizado para uma formação de médica de qualidade e voltada para os interesses da população. Inserir um segundo ciclo de dois anos a mais, no qual o estudante deve atuar no SUS praticamente como um médico, mesmo sem ter diploma, é precarizar ainda mais as relações e trabalho. Cria-se um “semi-médico”, que não tem salário, mas uma bolsa que não garante direitos trabalhistas nem vínculo.
O governo se utiliza da desculpa que está se baseando no sistema inglês de formação médica, no entanto deturpa completamente o que é feito na Inglaterra ao propor da maneira como o faz no Brasil. Ainda é predominante, aqui, o modelo de medicina biologicista, hospitalocêntrico e medicalizador, ao contrário da Inglaterra, que tem forte enfoque na atenção básica e na formação generalista. Aumentar o curso sem se preocupar em modificar a formação nas escolas médicas, com um ensino que seja socialmente referenciado, pautado na determinação social do processo saúde-doença e com foco na atenção básica, é irresponsável e não gera melhorias à saúde da população.
Além disso, ainda há o problema da preceptoria desses “semi-médicos”. Hoje já se vê um problema grave de preceptoria nos internatos e residências médicas, muitas vezes o estudante ou profissional em formação ficando desassistidos em suas atividades diárias.
Em relação à ampliação de vagas e à abertura de novas escolas médicas, surge a preocupação com a intensificação do processo de mercantilização do ensino protagonizado pelo governo do PT, que já é visto por meio de programas como o REUNI, que aumenta o número de vagas nas universidades sem garantir qualidade adequada, precarizando o ensino, e o PROUNI, que destina verba para a criação de bolsas em instituições privadas de ensino em vez de se investir em instituições públicas, contribuindo para o processo de privatização do ensino.
Outro problema é a concentração das escolas médicas nos grandes centros urbanos, com poucas unidades situadas no interior e periferias do país. A chance da pessoa que se formou num determinado centro urbano permanecer lá é grande, haja vista as maiores oportunidades de emprego oferecidas, bem como a possibilidade de se estender para atividades de docência, pesquisa entre outras coisas.
A abertura de vagas e criação de novas escolas deve perpassar, sim, pelo rol de políticas públicas reestrurantes da saúde. Mas que sejam instituições públicas, sérias e comprometidas com o interesse coletivo. É necessário, para ampliar vagas, que se amplie o investimento nas instituições públicas para garantir uma formação de qualidade. E, além disso, como já dito anteriormente, é preciso atentar para o ideal que se quer passar ao longo da formação médica, que não deve ser o ideal preconizado pelo complexo médico-industrial, grande defensor do modelo centrado nos grandes complexos hospitalares e na medicalização. É isso o que gera lucro para os empresários da saúde e mantém a lógica de mercado nessa área. Para garantir formação integral e voltada às demandas sociais, deve haver uma formação generalista, centrada na atenção básica em saúde.
Interiorização
É notável a necessidade de se promover a interiorização não só de médicos, mas de todos os profissionais de saúde pelo país. Realmente, há muitas cidades ainda que não contam sequer com uma unidade e/ou um profissional de saúde. Entretanto, não é incentivando formas de precarização do trabalho que iremos avançar nesse processo.
A maneira proposta pelo programa contribui ainda mais para a precarização das relações de trabalho no SUS. O pagamento será por meio de uma bolsa, que não se constitui enquanto salário, portanto não assegura direitos trabalhistas que foram conquistados pela classe trabalhadora com muita luta, como 13º salário, FGTS, férias remuneradas, adicionais de insalubridade e estabilidade. Além disso, a contratação é em caráter temporário, por 3 anos, e via EBSERH. Ignorando toda a discussão de inconstitucionalidade e de caráter privatista da empresa nas universidades e passando por cima do Conselho Nacional de Saúde, o governo do PT se mostra mais uma vez na contramão do interesse público, estimulando, a partir da MP 621, que as contratações se deem pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.
Ou seja, em vez de promover contratações por meio de concursos públicos, Regime Jurídico Único (RJU), com a criação de um plano de cargos, carreiras e salários para os profissionais da saúde, com estabilidade e garantia dos direitos trabalhistas, o governo Dilma opta por intensificar a precarização do trabalho desses profissionais. Dessa forma, colabora com os interesses de mercado em detrimento dos interesses sociais.
Vinda de médicos estrangeiros
Quanto à vinda de médicos estrangeiros, não se pode transferir a responsabilização do Programa Mais Médicos para os profissionais que estão vindo de outros países. Nos últimos dias, temos visto manifestações xenofóbicas e de caráter corporativista por parte de alguns grupos médicos, o que causou revolta e vergonha à população e aos setores que de fato estão lutando por melhorias na saúde pública do país. Não podemos confundir os atores. Os trabalhadores estrangeiros não são responsáveis pela política do governo brasileiro, apenas foram contratados e vieram exercer suas atividades no país.
Entendemos que a vinda desses profissionais não irá solucionar as questões apontadas ao longo do texto, além de julgarmos necessário que fosse feita alguma avaliação desses médicos antes de inciarem seu trabalho, mas isso não justifica atitudes como as presenciadas nos últimos dias durante o desembarque de médicos estrangeiros no Brasil.
A luta continua!
Há vinte e cinco anos atrás, surgia a proposta de criação do Sistema Único de Saúde, um sistema que fosse voltado às reais necessidades de saúde da população, baseado em princípios como a universalidade, equidade e integralidade, e que fosse capaz de garantir acesso universal e irrestrito a todas as regiões do país. Apesar da luta permanente dos movimentos sociais, setores da saúde e grupos políticos, o descompromisso dos governos desde então não permitiram que o SUS avançasse e se efetivasse por inteiro. Enquanto o setores privados mantiverem seu poder e influência na saúde, a possibilidade de um sistema universalmente público, gratuito e de qualidade estará altamente comprometida e fadada ao fracasso.
Medidas de caráter imediatista e eleitoreiro como o Programa Mais Médicos e o PROVAB, que fracassou como política de governo, são apenas formas de desviar o foco dos principais problemas do SUS.
A saída é continuarmos na luta pelo SUS que queremos, lutando pelo aumento do financiamento, por estímulos reais para a área da atenção básica, por uma carreira de estado para profissionais de saúde, por uma formação médica referenciada nas demandas sociais, pelo fim das privatizações da saúde, pelo fim dos subsídios do Estado à medicina privada, entre muitos outros exemplos de lutas a serem travadas.
Nesse sentido, é muito importante buscarmos participar dos Fóruns Municipais e Estaduais de Saúde, estar atento à Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, participar das discussões promovidas por movimentos sociais, Centros/Diretórios Acadêmicos (CAs/DAs), Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs), partidos políticos engajados na luta da saúde e executivas nacionais de curso como a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM).
Defender o SUS é dever de todos e todas. Vamos à luta!
Extraído de:
http://vamosalutanacional.blogspot.com.br/2013/08/programa-mais-medicos.html
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