Primeiras reflexões sobre as grandes manifestações de massas no País
Introdução
O conjunto das lutas sociais que estão ocorrendo no mundo e, portanto,
também as manifestações de junho no Brasil, guardadas os
devidos ritmos, proporções e intensidades, possuem uma
relação direta com a crise sistêmica global que vem
castigando o capitalismo há mais de seis anos. A crise roubou do sistema
imperialista grande parte da capacidade de hegemonizar plenamente a ordem
mundial como ocorria no passado, ao mesmo tempo em que abriu fissuras na
estrutura de dominação, possibilitando a emergência de um
conjunto de fenômenos novos nas esferas econômica, social e
política da conjuntura internacional.
Mesmo que todos ainda não percebam plenamente, a crise abalou a velha
ordem e o sistema capitalista não consegue reagir como outrora à
crise econômica, até porque esta crise traz um conjunto problemas
novos que as velhas fórmulas keynesianas não conseguem resolver.
Após a Segunda Guerra, os capitalistas aprenderam administrar as crises
cíclicas, mas não possuem condições nem
instrumentos para resolver as crises sistêmicas porque estas reproduzem
em bases ampliadas todas as contradições do capitalismo, posto
que representam o esgotamento de um longo ciclo de acumulação.
Por isso são mais profundas e devastadoras e questionam todos os
fundamentos da ordem anterior e só terminam com mudanças de fundo
na velha ordem.
Quando ocorrem fissuras profundas na ordem dominante, as massas abrem
espaço para sua intervenção e fenômenos pouco
imagináveis em um determinado momento se tornam realidade logo depois.
Poucos vislumbrariam que velhas ditaduras como as da Tunísia, do Egito
e do Yemen cairiam como um castelo de cartas. Esses levantes só
ocorreram sem um banho de sangue porque a ordem imperialista estava trincada
pela crise. Da mesma forma, poucos observadores brasileiros, inclusive os de
esquerda, poderiam imaginar que iriam ocorrer as grandes
manifestações de massas em mais de 600 cidades do País,
reunindo milhões de pessoas, especialmente jovens.
Além disso, está agora mais claro para os trabalhadores,
especialmente na Europa e nos Estados Unidos, o papel do Estado e sua
aliança explícita com as finanças internacionais e o
grande capital, como demonstraram as injeções trilionárias
de dólares e euros para salvar o sistema financeiro, enquanto os
trabalhadores perdiam suas casas nos Estados Unidos e se tornavam alvos de
políticas socialmente predatórias na Europa, como o corte nos
gastos públicos, nas pensões, nos salários e nas verbas
sociais em geral, ações inimagináveis em tempos de
calmaria. O objetivo das classes dominantes, com essas medidas, é tentar
salvar o capital e colocar na conta dos trabalhadores todo o ônus da
crise.
Nessa conjuntura de desagregação da hegemonia imperialista
norte-americana, deve-se registrar que as mobilizações dos
trabalhadores na Europa e em praticamente todos os continentes, as greves
gerais contra a política de ajuste ortodoxo, as
manifestações da juventude do Occupy Wall Street, os levantes
populares no Norte da África e as mobilizações na
América Latina e atualmente no Brasil compõem um novo quadro da
luta de classes, no qual os trabalhadores e a população
começam a despertar para a luta.
Muito embora ainda sem um objetivo anticapitalista definido, essas jornadas de
luta aumentam a consciência dos trabalhadores e os preparam para novas
jornadas, como foi o caso da greve internacional dos trabalhadores, que
envolveu 25 países europeus no final do ano passado. Mesmo levando em
conta que as insurreições populares no Norte da África
não conseguiram derrubar a ordem capitalista nesses países e
foram seqüestradas por setores das classes dominantes; mesmo
ressaltando-se que as greves ainda não colocaram em xeque a ordem
capitalista de forma mais organizada, o importante a ressaltar é que a
luta de classe mudou de patamar no mundo.
Estamos vivendo um período de mobilizações, greves e
levantes populares de caráter global em função da crise, a
grande maioria bastante defensiva e com elevado grau de espontaneidade. Estas
lutas ainda não ganharam um caráter unitário, não
possuem um programa classista e nem estão sob a orientação
de uma organização revolucionária, mas nesse momento de
crise mundial tudo pode acontecer. Até agora a burguesia tem estado na
ofensiva, sob o guarda chuva do Estado, enquanto os trabalhadores resistem a
partir de condições objetivas de cada região. Mas em
conjuntura dessa ordem, como diriam os clássicos do marxismo, os anos se
realizam em dias, os meses em horas, uma vez que a pedagogia da luta concreta
generalizada ensina mais que as lutas específicas em longos anos de
calmaria.
Num mundo globalizado, em que as informações circulam à
velocidade da luz, os levantes, mobilizações e greves e um
determinado País, numa conjuntura de crise mundial, funcionam
pedagogicamente. Mesmo com a brutal manipulação que os meios de
comunicações realizam diariamente, são incapazes de
esconder as grandes manifestações que estão ocorrendo em
várias partes do mundo. Para uma população que acumulou
descontentamento e frustrações ao longo dos 30 anos do
período neoliberal, o exemplo dos levantes em um determinado País
influencia a psicologia das massas a se manifestar também em outras
regiões – as pessoas vão perdendo o medo e despertando
energias para ações coletivas.
Nessa conjuntura é que se inscrevem as lutas populares de junho no
Brasil. Ao contrário do que comumente é divulgado pela
mídia, fazendo eco aos interesses da velha ordem, essa história
de que o povo brasileiro é pacífico, ordeiro, avesso às
lutas, levantes ou revoluções, é apenas um mito repetido
pelas classes dominantes para anestesiar a população. As
manifestações de junho podem ser consideradas o início de
uma extraordinária jornada de lutas do povo brasileiro contra o
domínio do capital. Estamos apenas no começo de uma longa
trajetória de lutas, de um ascenso das lutas sociais, cujo desdobramento
ainda não é possível vislumbrar, mas com certeza, ao final
dessa jornada, o Brasil será um País bem diferente daquele
anterior às mobilizações.
Um fim de um ciclo e o começo de outro
As manifestações de junho refletem o fim de um longo ciclo que se
iniciara em 1978 com as greves do ABC, processo no qual a classe
operária entrou em cena num confronto aberto com ditadura e o capital e
cujas lutas foram determinantes para derrocada do governo militar e a conquista
da democracia. Esse ciclo forjou um conjunto de organizações
sociais e políticas que se criaram e se consolidaram no bojo das lutas
sociais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Partido dos
Trabalhadores (PT) e, posteriormente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), além de outras entidades e organizações de
menor dimensão nacional.
Essas organizações, criadas a partir das lutas dos trabalhadores,
desempenharam nos seus primeiros anos de existência um papel fundamental
na luta social e política do País, incorporando dezenas de
milhares de ativistas sociais à batalha da luta de classes.
Desenvolveram um conjunto de lutas anticapitalistas e contra a ditadura, mas
não conseguiram forjar um programa classista nem uma ideologia
proletária. Seus dirigentes, honestos combatentes forjados na luta,
também não conseguiram ultrapassar o terreno do reformismo. Nunca
chegaram a formular uma perspectiva socialista para a sociedade brasileira.
Terminaram sucumbindo às primeiras benesses oferecidas pelos inimigos de
classe.
Aos poucos, todas essas organizações foram se amoldando ao
sistema, à medida em que o Partido dos Trabalhadores conquistava
espaços na institucionalidade. Esse foi um processo lento, gradual, mas
permanente, que começou com a conquista de governos municipais,
estaduais e cujo desfecho foi a eleição de Luis Inácio
Lula da Silva à presidência da República. Quando Lula
assumiu o poder essas organizações já estavam adaptadas
ideologicamente à ordem capitalista, com um discurso muito diverso dos
primeiros tempos
[1]
. A partir daí, tornaram-se organizações
chapa branca
[NR]
, sem nenhuma independência perante o governo e sua coalizão
conservadora, inclusive os principais dirigentes sindicais daquela safra de
lutas se acomodaram nas estruturas governamentais e outros se transformaram em
burocratas nas diversas instâncias governamentais e o próprio
presidente da CUT se tornou ministro do Trabalho de Lula.
Outro aspecto dessa trajetória, também muito negativo, deve ser
ressaltado para compreendermos vários elementos da conjuntura atual. O
Partido dos Trabalhadores e a Central Única dos Trabalhadores exerceram
hegemonia sobre os movimentos sociais ao longo dos últimos 30 anos. Esse
foi um período de intensa deseducação política,
especialmente a partir do momento em que essas organizações foram
se adaptando aos parâmetros da ordem, uma vez que o PT e a CUT trouxeram
para o interior dos movimentos sociais uma série de vícios
pós-modernos em termos ideológicos e organizativos, além
de uma enorme frustração da militância a partir das
denúncias de corrupção. Mas esse processo se tornou mais
claro no governo Lula. A partir daí, uma política que era feita
meio envergonhadamente se tornou uma prática corriqueira orientada a
partir do Palácio do Planalto.
Foram dez anos de cooptação aberta do movimento sindical e dos
movimentos sociais (CUT, UNE, UBES), mediante cargos no governo e vultosas
verbas para sindicatos, centrais sindicais e entidades sociais, em troca da paz
social e apoio ao governo; despolitização da sociedade,
apassivamento dos trabalhadores, institucionalização da luta de
classes e corrupção nos vários escalões
governamentais, cujo desfecho pode ser sintetizado naquilo que ficou conhecido
como "mensalão", que ceifou da cena política os
principais dirigentes do PT, quase todos antigos líderes sindicais.
Enquanto buscava-se institucionalizar a luta de classe, uma poderosa
máquina de propaganda anunciava ao Brasil e ao mundo um país do
conto de fadas. Alardeava-se a incorporação de dezenas de
milhões de brasileiros à classe média, um aumento
extraordinário do emprego e da renda, além do
bolsa família
que aliviava a pobreza de mais de 40 milhões de miseráveis.
Difundia-se que o Brasil estava galgando os degraus do primeiro mundo,
participava dos BRICs, era respeitado no cenário internacional e
até emprestava dinheiro ao Fundo Monetário Internacional, quando
no passado era um devedor contumaz.
Na vida real, podia-se fazer outra leitura do Brasil: o grande capital
financeiro e industrial nunca teve tantos lucros quanto nos
anos de governo do PT, fato que era divulgado até pelo presidente,
quando este se queixava, bastante magoado, que setores das classes dominantes
não o toleravam; nunca os grandes grupos econômicos estiveram
tão fortalecidos e beneficiados por fusões e
aquisições seladas por financiamentos bilionários a juros
próximo a zero do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) do presidente-operário; nunca o agronegócio foi
tão beneficiado pela política econômica e ganhou tanto
dinheiro e benesses quanto nesses dez anos, enquanto a reforma agrária
ficava para as calendas e os líderes camponeses, religiosos e
indígenas eram assassinados pelos latifundiários e fazendeiros.
Enquanto isso, nas grandes metrópoles brasileiras a
população e, especialmente, os trabalhadores e a juventude,
enfrentavam uma realidade bem diferente. A mobilidade urbana representada por
um transporte caótico, infernizava a vida da população. Os
trabalhadores eram obrigados a perder cerca de quatro horas em ônibus
precários e metrôs superlotados para ir e vir do trabalho; a
saúde pública também precária e indigna levava as
pessoas a ficar horas e dias em filas intermináveis nos postos de
saúde e os doentes jogados em macas no chão dos hospitais
públicos; a falta de moradia obrigava cerca de 25 milhões de
pessoas a viver em favelas e habitações precárias, sem
infraestrutura e saneamento, muitas regiões com esgotos a céu
aberto, sem água encanada e coleta de lixo. Além disso, nas
periferias das grandes cidades a população e, principalmente, a
juventude, eram obrigados a conviver permanentemente com a violência da
polícia e dos marginais, além dos assassinatos cotidianos de
jovens pobres, pardos e pretos.
Mesmo os milhões de empregos criados no governo Lula não tinham a
dimensão que a publicidade costumava apresentar. Por exemplo: "Do
total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na
primeira década do século XXI, 94,8% foram (contratados, EC) com
rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal
[2]
... enquanto na faixa de cinco salários mínimos mensais a queda
total atingiu 4,3 milhões de ocupações".
[3]
Portanto, mesmo naquilo que o governo considerava seu maior êxito, a
realidade se apresentava com outro rosto.
Ou seja, a verdadeira realidade brasileira era sentida de outra forma nas ruas
e nas casas de cada brasileiro, independentemente do marketing, da
manipulação dos meios de comunicação e da
política governamental. Mais dia menos dia esse caldeirão social
prenhe de indignação teria que emergir dos subterrâneos da
insatisfação popular para a ação social nas ruas,
até porque os capitalistas e seus aliados da social-democracia
retardatária brasileira não conseguiram descobrir uma
fórmula que extinguisse a luta de classes. Se a realidade fosse aquela
que o governo difundia diariamente, a juventude e os trabalhadores não
teriam se manifestado com a fúria que demonstraram nas ruas de todo o
País.
Portanto, as manifestações de junho iniciam um novo ciclo de
lutas sociais e políticas no Brasil. Podemos dizer que agora as massas
estão completando sua experiência com o governo do PT e buscam
novas alternativas para resolver seus problemas concretos. Com as
manifestações, uma nova geração inteira se integra
de forma ativa à luta de classes nas ruas de todo o País, das
pequenas cidades do interior às grandes metrópoles, com sua
linguagem própria, seus métodos de luta, sua fúria contra
os símbolos do capitalismo, num ensaio geral que tem um grande potencial
de mudanças.
Natureza e característica do movimento
Realmente, após mais de duas décadas de refluxo do movimento
social no Brasil
[4]
, a população entrou na cena social e política com uma
indignação extraordinária, mais uma vez quebrando o velho
mito divulgado pelas classes dominantes de que o povo brasileiro é
ordeiro e pacífico e que exorciza suas mágoas e
frustrações no carnaval, no futebol e no samba.
Para os menos atentos aos fenômenos históricos e sociais, a
retomada das lutas sociais em praticamente todas as regiões do
País teria sido uma grande surpresa. No entanto, se observarmos mais
atentamente a conjuntura brasileira poderemos verificar que a revolta social de
junho de 2013 já vinha emitindo vários sinais há algum
tempo.
Em artigo que publicamos em
resistir.info
e posteriormente editado como capítulo de livro, advertíamos que
a luta de classe tinha mudado de patamar no mundo em função da
crise sistêmica global. "Um fenômeno novo vem ocorrendo nesta
conjuntura, que é a emergência das lutas sociais em praticamente
todas as regiões do planeta. Ainda embrionárias, com certo grau
de espontaneísmo, sem uma vanguarda com capacidade de construir um
projeto alternativo ao capital, as lutas de massas mudaram de patamar".
[5]
Como a crise envolve todo o sistema capitalista e como o Brasil é parte
integrante desse processo, não poderia estar blindado diante dos
problemas globais. Dessa forma, era só uma questão de tempo, mais
dia menos dia a crise social aqui também chegaria – e com os mesmos
elementos de surpresa e ousadia que acontecera em outras regiões do
planeta.
Um bom parâmetro para captarmos os sinais da efervescência social
no País pode ser medido pelo movimento grevista. Se analisarmos as
greves dos últimos três anos, veremos que em 2010 o número
de greves no País atingiu 446 categorias profissionais, com 44.910 horas
paradas; em 2011, esse número aumentou para 554 greves e 63.331 horas
não trabalhadas; e em 2012 saltou bruscamente para 879 greves (300 das
quais no setor industrial), com 88.858 horas de braços cruzados,
incluindo metalúrgicos, setor de transporte, bancários,
professores, funcionários públicos e outras categorias
[6]
. Deve-se levar em conta ainda as lutas recentes, espontâneas e
radicalizadas realizadas pelos operários da construção
civil nos canteiros de obras da Usina de Jirau, Santo Antônio, Belo Monte
e várias cidades brasileiras, todas com um grau de fúria dos
trabalhadores muito expressivo, com quebra-quebra de instalações,
queima de ônibus, prisões, mortes e brutal repressão contra
os operários da construção (Tabela 1).
Balanço das greves e das horas paradas no Brasil 1983-2012
Ano
|
Número de greves
|
Quantidade de horas paradas
|
1983
|
250
|
7461
|
1984
|
408
|
12084
|
1985
|
621
|
29948
|
1986
|
1014
|
44453
|
1987
|
996
|
58958
|
1988
|
877
|
51137
|
1989
|
1962
|
127279
|
1990
|
1773
|
117027
|
1991
|
1041
|
67756
|
1992
|
556
|
37902
|
1993
|
644
|
39321
|
1994
|
1035
|
477749
|
1995
|
1058
|
48102
|
1996
|
1228
|
58792
|
1997
|
631
|
22564
|
1998
|
531
|
20383
|
1999
|
506
|
18236
|
2000
|
525
|
25838
|
2001
|
416
|
20784
|
2002
|
298
|
18521
|
2003
|
340
|
15805
|
2004
|
302
|
23851
|
2005
|
299
|
19738
|
2006
|
320
|
24703
|
2007
|
316
|
30632
|
2008
|
411
|
24681
|
2009
|
518
|
34730
|
2010
|
446
|
44910
|
2011
|
554
|
63331
|
2012
|
873
|
86858
|
Fonte Dieese: Balanço das greves de 2012. Elaboração do
autor.
O povo pobre dos bairros e os sem teto também vinham realizando
ocupações de terrenos vazios e prédios abandonados em
várias metrópoles, episódios que envolveram muita luta e
também violenta repressão por parte das forças policiais
nos momentos de desocupação dos terrenos e prédios. Pode
ser considerada emblemática a luta da comunidade do bairro de
Pinheirinho, no interior de São Paulo, cujos milhares de habitantes que
viviam há vários anos na região, foram desalojados
à bala pela polícia estadual, resultando em uma morte e centenas
de feridos e presos, o que desencadeou um vasto movimento nacional de
solidariedade contra a repressão.
A esses sinais da conjuntura deveremos juntar o descaso das autoridades em
relação aos transportes públicos, um serviço
caótico e precário que transformou as grandes cidades num inferno
dantesco nas horas de rush; a indignidade da saúde pública, da
infraestrutura e do saneamento nas periferias e o déficit de oito
milhões de moradias. Tudo isso somado torna-se fácil encontrar a
explicação para a fúria dos manifestantes de junho.
É significativo ainda o fato de que o ódio das pessoas estivesse
voltado exatamente contra os símbolos do capitalismo no País,
como os bancos, as empresas, as assembléias legislativas, os
palácios municipais, estaduais, o Congresso Nacional e até o
Palácio do Itamarati, em Brasília.
É evidente que as depredações contaram também com a
ação de provocadores, policiais infiltrados, marginais e lumpens
em geral, mas se não existisse um caldo de cultura anterior, esses atos
seriam isolados e não tomariam a dimensão que tomaram. Essas
cenas são próprias dos períodos iniciais das revoltas
populares, especialmente quando se realizam com elevado grau de espontaneidade
e não possuem uma direção que oriente a
indignação para pautas políticas ou para o desmonte do
sistema.
Vale ressaltar ainda que as manifestações de junho no Brasil
seguiram o mesmo padrão histórico das revoltas populares em todo
o mundo. O aumento das passagens de ônibus foi apenas a senha, a
faísca que incendiou o paiol da rebeldia que estava latente e que
queimava no interior da sociedade. De uma manifestação inicial
contra o aumento de vinte centavos de Real no preço das passagens dos
ônibus em São Paulo, que em tempos normais reunia não mais
que mil pessoas, rapidamente as ruas foram tomadas por milhões de
manifestantes, com uma pauta ainda difusa, mas que na maioria dos casos
incluíam os temas que realmente atormentam o dia a dia da
população.
A primeira manifestação em São Paulo, organizada pelo
Movimento Passe Livre,
com a presença de várias forças de esquerda, reuniu cerca
de cinco mil pessoas
[7]
. Na terceira já eram mais de dez mil manifestantes e foram realizados
vários enfrentamentos com a polícia. Na quarta, com cerca de 20
mil pessoas na rua, o governo de São Paulo resolveu acabar com o
movimento, mediante uma violenta repressão, que envolveu milhares de
policiais, carros blindados, gás lacrimogêneo, balas de borracha,
cavalaria contra a população e centenas de prisões e
feridos, inclusive cerca de duas dezenas de jornalistas. A repressão
gerou indignação na população, uma vez que a
televisão e as redes sociais passaram a divulgar os episódios,
ficando claro não apenas a brutalidade da polícia, mas
também despertando uma cadeia de solidariedade ao movimento em
vários setores da população.
A repressão foi tão grande e gerou tanta indignação
que o governo de São Paulo e a polícia resolveram recuar e
permitir a grande manifestação da quinta feira, dia 17 de junho,
quando cerca de 250 mil pessoas ocuparam as ruas de São Paulo, um
milhão no Rio de Janeiro e centenas de milhares em outras
regiões, transformando-se assim num movimento nacional envolvendo
milhões de pessoas. Dois dias depois os governos municipal e estadual
cederam e cancelram os aumentos dos ônibus. Se a
reivindicação inicial era o aumento do preço da passagem,
logo depois outras pauta entraram em cena, como a saúde, a
educação, a corrupção, os gastos com a copa do
mundo e uma infinidade de temas que estavam represados e que agora podiam
chagar à superfície livremente em manifestações
coletivas pelas ruas do País (Infográfico das
manifestações).
Infográfico dos atos contra o aumento da tarifa em São Paulo
Recepção das manifestações por parte da mídia
Fonte: O Movimento Passe Livre e as mobilizações de rua no Brasil
Como todos os movimentos espontâneos da população, esse
não fugiu à regra. Suas pautas políticas eram inicialmente
difusas e não havia uma liderança com a qual o governo pudesse
negociar. No início, a maioria dos manifestantes era constituída
de jovens das camadas médias urbanas, mas com o aumento do movimento
essa composição social se modificou substancialmente, pois nas
grandes manifestações que se seguiram a grande maioria já
era constituída de jovens oriundos da periferia, filho de trabalhadores
e assalariados precarizados da Grande São Paulo e das várias
regiões do País. Como também ocorre no início das
lutas espontâneas, essa massa enorme que tomou as ruas do País
não tinha muita clareza dos objetivos pelos os quais saía
às ruas, mas sua fúria indicava um profundo sentimento de
indignação com a situação do País, suas
condições de vida nas periferias das cidades e grande
indignação contra a corrupção generalizada nos
vários escalões governamentais.
Vale ressaltar ainda que as três décadas de
deseducação política orientadas pelo PT e suas
organizações sociais estimularam o apassivamento e a
despolitização da população e, principalmente, da
juventude, o que se refletiu nas pautas e palavras de ordem de muitos momentos
das manifestações. Não se poderia exigir dessa juventude
palavras de ordem semelhantes às dos experientes militantes
políticos, nem comportamentos típicos das
manifestações onde a esquerda predominava. Trata-se de uma
juventude que estava debutando para a luta social e política. Os
problemas que ocorreram durante as manifestações, como
hostilidade às bandeiras vermelhas e às forças de
esquerda, foram estimulads pela grande mídia, mas também tem como
responsável o Partido dos Trabalhadores e suas
organizações sociais, que não cumpriram seu programa de
mudanças, procuraram de todas as formas institucionalizar a luta de
classes e colocar para debaixo do tapete as contradições sociais.
A esquerda revolucionária, que esteve ao longo desses tempos em
oposição ao governo Lula-Dilma, pagou alto preço ao ser
confundida com o PT. Para aquela massa com pouca clareza política, todos
os partidos eram iguais. Todos tinham a bandeira vermelha, que também
era a bandeira do PT. Tudo era farinha do mesmo saco. Realmente, não se
poderia exigir daqueles jovens recém-chegados à cena
política que soubessem diferenciar entre os revolucionários, que
ao longo dos anos estiveram contra a ditadura e na oposição ao
governo, e o partido de Lula e Dilma que assumiu o governo e descumpriu todas
as promessas de mudar o País. No fundo, aquela massa clamava
subjetivamente por um verdadeiro partido de esquerda, com
condições de realizar um diálogo aberto, sem preconceito e
com propostas que fosse ao encontro de suas verdadeiras
reivindicações; um partido que tivesse capacidade para construir
uma nova ordem econômica e social para o País.
Não se pode deixar de levar em conta também o papel da
mídia tradicional nos eventos de junho. Inicialmente, os manifestantes
foram tratados de forma padronizada, como ocorria em todas as
manifestações. A ordem era a criminalização da luta
social. Por isso, os manifestantes foram chamados nos meios de
comunicação de vândalos, baderneiros, marginais, que
queriam sabotar a ordem e o progresso do País. Num segundo momento,
quando as manifestações ganharam o caráter de massas, as
televisões mudaram de posição e passaram a legitimar os
manifestantes e condenar apenas uma minoria como baderneiros. No entanto,
passaram a estimular, subrepticiamente, os manifestantes a rejeitar as
bandeiras vermelhas e os partidos políticos de esquerda, insinuando que
eram oportunistas que queriam se aproveitar daquele movimento para o qual
não teriam contribuído
[8]
Além disso, estimulavam os manifestantes a pintar o rosto de
verde-amarelo, numa lembrança às grandes
manifestações do impeachment de Collor, levar a bandeira
brasileira e usar camisetas verde-amarelo e cantar slogans que própria
TV inventou para os jogos da seleção brasileira, como
"sou brasileiro, com muito orgulho...".
Assim, a mídia tradicional buscava sorrateiramente vincular seus
objetivos e de seus patrocinadores à
consciência possível
dos manifestantes despolitizados nos anos de hegemonia do PT e, dessa forma,
evitar que a esquerda passasse a comandar as manifestações.
Afinal, quem poderia estar contra os símbolos nacionais? Quem poderia
ser contra os jovens pintarem o rosto de verde-amarelo, se isso representava um
momento histórico das manifestações contra a
corrupção?
Agora, a luta de classe manifestava-se mais abertamente em dois terrenos: nos
meios de comunicação e nas ruas. Ressalte-se que até a
Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp)
entrou abertamente na disputa, pois nos dias das manifestações
seu imponente prédio na avenida Paulista estava todo vestido
digitalmente com as cores verde-amarelo, de forma a mostrar que a luta era de
todos, inclusive da burguesia. Tentaram transformar a
reivindicações populares em pautas morais como a luta contra a
corrupção, de forma a desviar a atenção dos
verdadeiros problemas do País. Na verdade, a pauta contra a
corrupção é uma hipocrisia dos setores burgueses e
conservadores, pois são os empresários os principais corruptores
do País, na luta surda para ganhar as licitações
governamentais.
Para completar o serviço, pequenos grupos fascistas e nazistas, aliados
a lumpens, foram mobilizados para representar a tropa de choque das classes
dominantes nas ruas. Esses grupos, enquanto estimulavam a massa a gritar
"sem partido", "sem as bandeiras", avançavam contra
as forças de esquerda com paus e barras de ferro buscando intimidar e
tirar a esquerda das ruas. Foram momentos difíceis para esquerda, que
tinha as ruas como sua propriedade. Mas esses episódios merecem
também uma reflexão, pois quem imaginava que a direita não
possuía condições de disputar as ruas, agora deve ficar
mais atento e não subestimar o inimigo.
O papel das redes sociais e o contraponto à mídia tradicional
Merece destaque o papel que as redes sociais cumpriram nesse processo. Em
termos gerais, se constituíram numa ferramenta contra-hegemônica
em relação aos meios de comunicação tradicionais.
Isso porque a maioria da juventude brasileira já nasceu plugada à
internet, faz parte de uma geração da era digital, possui uma
linguagem associada a esses novos meios de informação e faz a
maioria de suas comunicações utilizando as redes sociais. Para se
ter uma idéia da dimensão e poder das redes sociais no Brasil,
é importante ressaltar que cerca de 77,7 milhões de brasileiros
com mais de 10 anos são usuários da internet, ressaltando-se que
entre a juventude mais de 70% dos jovens acessam normalmente a internet,
segundo os dados da PNAD de 2011. A mesma pesquisa indica que 115,4
milhões de pessoas com mais de 10 anos possuem telefone celular
[9]
.
Se levarmos em consideração que o acesso às redes sociais
pode ser realizado tanto por computador, tablets ou telefones celulares
poderemos aferir mais plenamente o papel das redes sociais na
comunicação entre os jovens e a importância que esses meios
de comunicação tiveram na convocação da juventude
para ir às ruas nas várias cidades do País. Além
disso, deve-se também levar em conta que, apesar da influência e
manipulação dos meios de comunicação tradicionais
junto ao conjunto da população brasileira, essa hegemonia
está sendo cada vez mais contestada pelas novas mídias, uma vez
que cada pessoa pode filmar, fotografar e postar,
on line,
nas redes sociais. Pelas novas mídias, as pessoas podem comparar as
informações da TV e divulgar a contraversão para milhares
de internautas, de forma a que possam tirar conclusões diferentes das
veiculadas pela mídia tradicional. Muitas informações
manipuladas e veiculadas pela televisão, por exemplo, foram
imediatamente desmentidas e desmoralizadas pelas redes sociais.
Evidentemente que as redes sociais não têm a mesma
penetração, nem a dimensão popular e manipulatória
do rádio, dos jornais e da televisão, pois esses meios de
comunicação são financiados pelo grande capital e contam
com milhares de profissionais organizados nas redações e
diariamente orientados para veicular informações de acordo com os
interesses dos proprietários da mídia, no Brasil um
oligopólio dominado por nove famílias. Esse oligopólio, a
exemplo do que acontece no mundo, funciona como o partido político dos
setores mais reacionários da sociedade. Mesmo com esse imenso poderio,
as redes sociais ampliam a cada dia sua influência, especialmente entre
os jovens, o que tem transformado esses veículos num contraponto
à mídia do capital.
Dessa forma, as redes sociais tiveram um papel fundamental na
convocação das manifestações. Isso explica em parte
o fato de que um movimento modesto, como o
Passe Livre
de São Paulo, que antes das grandes mobilizações
realizava pequenas manifestações, de uma hora para outra consegue
mobilizar centenas de milhares de jovens em São Paulo e influenciar
outros tanto milhões a se manifestarem pelo Brasil a fora. No dia da
maior manifestação, a que reuniu cerca de 250 mil pessoas em
São Paulo, o site do movimento contabiliza a cada minuto um aumento do
número de adesões à manifestação, como se
estivesse funcionando como uma central de mobilizações –
só que virtual.
Essa geração que foi às ruas mobilizadas pelas redes
sociais nasceu num mundo dominado pelas tecnologias da
informação, um ambiente digital onde a relação
indivíduo-computador-celular e redes sociais (facebook, twiter, You
Tube) são as principais ferramentas de informações e, ao
mesmo tempo, o ambiente virtual que consolida e amplia relações
pessoais, dá identidade a grupos e pautas de debate e agora serviu de
canal para agregar um descontentamento que vinha se gestando durante
vários anos na sociedade brasileira, marcada nesse período pelo
caos urbano no transporte, pela saúde e habitação
precárias, baixos salários e trabalho precarizado,
repressão policial nas periferias, além da falta de perspectivas
sociais e econômicas para toda uma geração.
Portanto, trata-se de um imenso contingente da população formado
a partir de informação e comunicação fora dos
padrões tradicionais, como os jornais, o rádio e a
televisão. Assim, as novas formas de comunicação, aliadas
ao descontentamento latente da juventude e da população em geral,
tornaram-se caldo de cultura que possibilitaram uma mobilização
inédita na história das lutas sociais do País. A partir de
agora, quem quiser qualquer diálogo com esse contingente da juventude
terá não apenas que expressar politicamente os seus anseios e
reivindicações, mas também aprender a se comunicar
através de novos signos e ferramentas das redes sociais.
Entretanto, ser um contraponto ao oligopólio das
comunicações não significa que a mídia tradicional
tenha perdido a capacidade de influenciar e manipular a sociedade. Os meios de
comunicação tradicionais, especialmente a TV, o mais importante
entre esses órgãos, são ainda a principal fonte de
informação da grande maioria da população, com a
vantagem de que, aliada a informação que veiculam diariamente nos
telejornais, ainda formam opinião através das novelas, dos
programas de auditório e dos outros tipos de programa. Através
deste grande aparato, ainda tem possibilidade de consolidar o senso comum,
formar opiniões em função da repetição
massacrante dos temas sociais e políticos de interesse das classes
dominantes e influir na formulação de políticas
governamentais.
É preciso entender os acontecimentos de junho
As manifestações de junho merecem uma profunda reflexão
autocrítica por parte de todos aqueles que se consideram de esquerda.
Uma reflexão sem preconceito, sem dogma, sem fórmulas prontas. Os
levantes populares de junho condensaram um conjunto fenômenos novos, como
novas formas de organização, novos métodos de fazer
política, nova forma de comunicação entre as pessoas,
novos atores sociais. Estes fenômenos devem ser analisados com
atenção para que se possa entender o significado dessa jornada
inicial de lutas e
linkar
a essas novas demandas uma estratégia transformadora que se adeque aos
anseios das ruas.
Primeiro,
as lutas espontâneas não possuem donos. Como em toda
manifestação, só pode ser condutor aquele que construiu ou
ajudou construir movimento ou ainda que é reconhecido pelo movimento.
Essas manifestações não foram construídas por
ninguém, nem mesmo pelo
Passe Livre,
organização que ficou mais conhecida no início do
movimento. Os levantes de junho foram resultado de um acúmulo de
problemas sociais, econômicos e políticos que vinham se gestando
por longos anos no interior da sociedade e que explodiram com fúria e
indignação em junho. Por coincidência começou quando
o
Passe Livre
conclamou a todos para se manifestarem contra o aumento das passagens de
ônibus. Mas poderia ter sido outro motivo qualquer, como o corte de
árvores no Parque Gize, na Turquia, ou a imolação de um
vendedor ambulante na Tunísia. As revoltas espontâneas não
obedecem a um manual ou figurino pré-estabelecido, nem pedem
licença para entrar na cena política.
Segundo,
a esquerda revolucionária, em processo de reconstrução
após a queda da União Soviética, não soube tirar as
conclusões necessárias da crise sistêmica global, do novo
patamar da luta de classes aberto com a crise, nem conseguiu vincular os
problemas da conjuntura internacional com a situação nacional.
Subjetivamente, estava influenciada pelos números do crescimento
econômico, do aumento do emprego e da renda, além do fato de que a
própria conjuntura de hegemonia do PT e de suas
organizações sociais não lhes permitiu um crescimento
suficiente para influenciar o curso dos acontecimentos.
Terceiro,
não eram fascistas todos os que gritavam "sem bandeiras" ou
"sem partidos". Tratava-se de uma massa enfurecida e influenciada
pelos meios de comunicação contra os partidos em geral e o PT em
particular, cujo governo não resolveu os principais problemas da
população, apesar de a população ter depositado
imensa esperança de que com esse governo os problemas da
população seriam resolvidos. Como o PT, no imaginário
popular faz parte da esquerda. Como também sua bandeira é
vermelha e como se envolveu na corrupção, toda a esquerda foi
confundida com o PT. A
consciência possível
daquela massa indignada com anos de desleixo do governo em
relação às suas necessidades, com os problemas
econômicos e a corrupção generalizada no governo não
poderia diferenciar a esquerda que não se rendeu da esquerda que se
vendeu.
Quarto,
todos compreendemos o quanto a ditadura militar utilizou os símbolos
nacionais para justificar um regime terrorista. Mas não se pode
atualmente confundir os símbolos nacionais com a ditadura. Portanto, os
milhões de jovens que pintaram o rosto de verde-amarelo não eram
reacionários nem fascistas. Foram em algum momento manipulados
habilmente pela mídia e por setores fascistas e de direita, mas estes
jovens estavam exercendo a rebeldia à sua maneira, buscavam uma
identidade em função de sua falta de perspectiva, que não
pôde ser construída pela esquerda. O importante é que a
esquerda não pode deixar a bandeira do patriotismo e da soberania
nacional nas mãos da direita. Isso é tudo que eles querem, uma
vez que as reivindicações expostas nas
manifestações não podem ser resolvidas pelos setores de
direita, afinal foi a direita e, especialmente, os neoliberais, que implantaram
as principais medidas antinacionais e antipopulares dos últimos 20 anos,
continuadas em seus eixos básicos pelo governo do PT.
Quinto,
as manifestações demonstraram uma enorme crise de
representatividade no País. O aparato institucional, constituído
pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, não é
reconhecido pela maioria da população como sua
representação. Isso é compreensível em
função da enorme corrupção que permeia esses
poderes, da falta de resposta às reivindicações populares
e da truculência com que o Estado e suas forças policiais tratam a
população mais pobre. Os partidos políticos, em sua grande
maioria, também estão inteiramente desmoralizados tanto pela
corrupção como pelas negociatas, pelas promessas não
cumpridas e pela sem cerimônia com que tratam do dinheiro público
e as reivindicações populares. No imaginário popular, ser
parlamentar, membro do Executivo ou dirigente partidário se assemelha a
agentes da ladroagem, do enriquecimento fácil. Portanto, há uma
necessidade urgente de uma reforma geral das instituições de
forma a torná-las aderentes às reivindicações
populares, o que não pode ser feito a partir dessas
instituições.
Sexto,
com as manifestações de junho a juventude e grande parte da
população perdeu o medo, deixou de lado a passividade e
começou a aprender que a população nas ruas tem uma
força de gigantesca. Isso pode ser constatado se observarmos o desespero
e perplexidade das classes dominantes e seus representantes políticos
diante das manifestações. A prórpria presidente da
República teve que vir a público responder à voz das ruas
propondo um pacto, que não interessava às classes populares e que
não tinha condições de impor à sua base aliada.
Mesmo assim, o Congresso Nacional também teve que colocar em pauta a
toque de caixa uma série de medidas que estavam engavetas há
muitos anos, como a lei do passe livre, medidas contra a
corrupção, entre outras. Em termos práticos, o movimento
de junho já conseguiu uma vitória concreta, pois reverteu o
aumento das passagens de ônibus, além de obrigar o sonolento
Congresso a votar algumas medidas pressionado pelas ruas. Como se sabe, uma
vitória é uma vitória. Quando há uma conquista
popular obtida a partir das ruas, a população eleva a moral, sai
fortalecida e percebe a força que tem. Esse processo acumula para novas
lutas.
Sétimo,
ainda falta um elemento essencial para compor um quadro de ofensiva popular,
que é a entrada em cena da classe operária. É
compreensível que as mobilizações tenham começado
pela juventude, pois esta tem mais mobilidade, está menos sujeita
às imposições do capital. Mas a crise também
colocará em movimento os trabalhadores do chão das
fábricas, apesar das instituições que os representam
estarem quase todas funcionando como bombeiros da luta de classe. Como as
massas em geral estão completando sua experiência com o governo do
PT, o próprio PT e, especialmente, a CUT, em algum momento
próximo romperão as amarras do sindicalismo oficial e
entrarão na cena política para desequilibar o jogo a favor dos
interesses populares.
Essas instituições estão brincando com fogo ao chamar
à mobilizações dos trabalhadores. De um lado, imaginam
que, ao conclamar às manifestações, podem recuperar o
prestígio que perderam com a imobilidade dos últimos anos e mesmo
se apresentar como protagonistas das lutas populares. Mas de outro, podem
perder o controle do movimento, uma vez que a insatisfação
é generalizada e estas instituições não
estão dispostas a ir até às últimas
consequências. Poderão se desmoralizar diante dos trabalhadores.
Portanto, é fundamental a participação das forças
classistas nesse processo, com suas bandeiras de lutas, de forma separar o joio
do trigo e construir uma nova correlação de forças entre
os trabalhadores, com a construção de novos instrumentos de luta
contra o capital.
As lições dessa jornada e as perspectivas
Como elemento mais de fundo da conjuntura após as
manifestações de junho, pode-se dizer que chegou à
superfície uma contradição antagônica entre o modelo
econômico, social e político construído a partir dos anos
80, aprofundado no período FHC e continuado em sua essência pelo
governo Lula-Dilma e os anseios da população brasileira. Se esta
contradição era latente ao longo desses anos, agora tomou a forma
contestatória de grandes manifestações de massas nas ruas
em busca de um novo projeto. Mesmo ainda difuso, sem pautas unificadas, o grito
das ruas representa o esgotamento de uma formar de governar, de uma forma de
fazer política e dirigir a economia. Despida do apassivamento, das
manipulações midiáticas e do medo de colocar suas
reivindicações nas ruas, a luta da população e dos
trabalhadores também mudou de patamar no Brasil.
Ao longo da história, as elites brasileiras sempre buscaram se antecipar
às mudanças para que nada pudesse mudar. Sempre buscaram cooptar
os agentes mudancistas, de forma a que os movimentos não ganhassem
autonomia e passassem a contestar a própria ordem conservadora. Quando
essa tática não funcionava, apelavam para a repressão
pura e simples. Os últimos pactos das elites, costurado no
período da democratização com Tancredo-Sarney,
radicalizado no período neoliberal e repactuado com a
Carta aos Brasileiros
que orientou o governo Lula e agora Dilma, está sendo questionado de
uma forma que não se via desde os tempos das lutas pelas reformas de
base na década de 60.
O novo ciclo de lutas que se abriu com as manifestações de junho
vai continuar sua trajetória, porque um processo de lutas como o que
está acontecendo, animado por um lastro de carências em
praticamente todas as áreas,
só se esgota diante de três possibilidades: se for derrotado, se
for cooptado ou se obtiver uma vitória.
A história já nos ensinou a esse respeito. Na década de
60 o ciclo de lutas sociais se esgotou com a derrota deste movimento, mediante
o golpe militar de 1964. O ciclo que se iniciou com as greves de São
Bernardo foi cooptado e domesticado pelo PT e o governo Lula. Portanto, esse
novo ciclo ainda vai durar um período bastante expressivo porque
dificilmente as autoridades governamentais terão condições
de satisfazer as necessidades dos manifestantes, em função de
seus acordos políticos e econômicos.
Um ciclo de lutas sociais também não ocorre de maneira linear,
num crescente até a vitória ou a derrota. A história
também tem ensinado que as lutas sociais emergem à
superfície com vigor num primeiro momento, podem arrefecer num momento
posterior, apresenta-se um período de calmaria, e podem voltar novamente
com maior força até que as questões que o movimento
colocou sejam resolvidas ou que o movimento seja derrotado. "É por
isso que humanidade só levanta os problemas que é capaz de
resolver"
[10]
. As lutas recentes no Egito demonstram claramente isso: inicia-se um grande
movimento de massas, derrota-se o ditador e logo depois é eleito um
governo conservador que implementa medidas inteiramente contrária
à vontade das ruas. Quando menos se espera (no caso um ano depois das
primeiras manifestações), as massas voltam novamente às
ruas com muito mais força e derrotam o governo.
Acreditamos que, após o ensaio geral de junho, haverá um
período de calmaria tensa, onde as massas irão avaliar se suas
reivindicações serão atendidas. Como o sistema
político e econômico brasileiro não tem interesse em
atender essas reivindicações, porque seria necessário
romper com o modelo econômico e sua base aliada, teremos uma segunda onda
da crise, mais ampla, radical e mais violenta que a primeira, só que com
uma diferença essencial – agora a população já
perdeu o medo de sair às ruas e, ao mesmo tempo, aprendeu que as
manifestações de massa têm condições de
dobrar os governantes, como foi o caso da anulação do aumento da
passagem de ônibus.
Que fazer a partir de agora
Caso se queira intervir na realidade a partir das manifestações
de junho não se pode deixar de levar em conta que a crise mundial vai
continuar, com consquências cada vez mais graves para o sistema
capitalista. E quanto mais a crise se agravar, mais difícil se torna sua
gestão e mais dramático o panorama econômico internacional,
com repercussões em todos os países ligados à economia
líder. Como o Brasil é parte do sistema capitalista, não
está blindado diante da crise, pois a recessão mundial afeta as
exportações, as finanças, as bolsas de valores e a
produção interna.
Essa conjuntura deixa pouca margem de manobra para o governo, que terá
duas opções: ou rompe com o sistema de alianças nacionais
e internacionais, que constitui a sua razão de ser enquanto projeto
econômico e político, o que é impensável na
conjuntura atual, ou aprofunda sua opção pelo grande capital e o
agronegócio, como vem realizando a partir da política de
privatização disfarçada e concessões aos grandes
fazendeiros, afastando cada vez da possibilidade de atender às
reivindicações populares. Dessa forma, não terá
outra saída que o aumento da repressão contra as
manifestações populares, sob o pretexto de
imposição da lei e da ordem do estado de direito
democrático.
Para as forças de esquerda, a história está se mostrando
generosa e proporcionando uma segunda oportunidade nessa conjuntura. Como
não tiveram condições de captar a
insatisfação popular nas lutas de junho, agora poderão
avaliar criticamente essa debilidade e reorientar sua ação para a
segunda onda de manifestações que virá, porque o governo e
sua base política não irá atender as
reivindicações populares. Como as manifestações
fizeram chegar à superfície a insatisfação popular,
esse processo vai continuar, até mesmo porque já aprenderam que
a força das ruas gera conquistas reais. Esse período de calmaria
tensa, possivelmente não terá a forma das
manifestações de junho, poderão ser realizadas
reagionalmente de acordo com os problemas concretos de cada localidade. Mas em
algum momento voltarão com mais força que a primeira vez.
Ainda há tempo para mudar a tática visando galvanizar o
sentimento das ruas e contribuir para educação política
das massas, no sentido da construção de pautas políticas
unitárias que possam contribuir para a mudança de
correlação de forças no interior da sociedade e
avançar para um processo profundo de transformações
sociais. A esquerda não deve temer o futuro nem o povo nas ruas,
independentemente da forma como as manifestações forem
realizadas. É hora de incrementar o trabalho de base: todos os
militantes estudam, trabalham ou moram em alguma região.
Portanto, é hora de conversar com os colegas nas escolas e
universidades, com os companheiros nos locais de trabalho e com os amigos nos
bairros e associações de moradores. Organizar as pessoas onde for
possivel, até mesmo os indiferentes, se necessário. Explicar a
possibilidade de conquista a partir das mobilizações de massas
nas ruas. Desmistificar a hipocrisia da direita, que quer transformar o
conjunto das reivindicações num problema moral, como a luta
contra a corrução, de forma a mudar o eixo dos problemas e
manipular a opinião pública. É hora do trabalho de base
real onde for possível.
Em outros termos, é necessário construir em marcha forçada
as condições subjetivas para que as massas possam avançar
em suas reivindicações com autonomia, para que adote um programa
unitário
[11]
e se disponham a ir além da institucionalidade. É verdade que a
esquerda revolucionária é muito pequena para dar conta das
imensas tarefas do processo de transformações, mas deve-se
lembrar também que em tempos de convulsão social as massas
realizam um aprendizado acelerado, constroem rapidamente suas
organizações, como ocorreu no período do ascenso a partir
de 1978. O importante neste momento é compreender o rumo do processo
social, se conectar aos sentimentos mais profundos das massas e ter capacidade
de sintetizar em poucas palavras de ordem esse sentimento.
Portanto, é fundamental colocar os trabalhadores como protagonistas
desse novo ciclo e por na ordem do dia a construção da greve
geral como momento especial de mudança da correlação de
força em favor dos trabalhadores e das reivindicações
populares, processo a partir do qual poderá se abrir imensas janelas de
oportunidas para as transformações sociais no Brasil.
Notas
[1] Para quem quiser conhecer melhor o processo de degeneração
dessas instituições, e especialmente do PT, consultar:
A tragédia da social-democracia retardatária brasileira
. Costa, Edmilson. Resistir.info.
[2] 1,5 salários mínimos corresponde a US$ 500, uma
remuneração miserável para uma família brasileira.
[3] Pochmann, Marcio. Nova classe média. O Trabalho na base da
pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
[4] A última grande manifestação de massa no País
ocorreu em 1992, com o impeachment de Collor. No entanto, essa luta não
tinha o mesmo caráter que as lutas atuais. As
manifestações de 1992 visavam apenas tirar do poder um dirigente
corrupto, enquanto as manifestações que se abriram em junho
contêm uma pauta muito diferente daquela de 1992.
[5] Costa, Edmilson.
A terceira onda da crise: o capitalismo no olho do furacão –
desarticulação monetáio-financeira, depressão prolongada e lutas sociais
. In A reflexão marxista
sobre os impasses do mundo atual. Organizado por Milton Pinheiro. São
Paulo: Outras Expressões, 2013.
[6] Dieese. Balanço das greves em 2012. Estudos e Pesquisas, Maio de
2013.
[7] As primeiras manifestações do Movimento Passe Livre
não foram realizadas em São Paulo, mas em Porto Alegre, em
março e abril de 2013. O Movimento Passe Livre é
constituído por jovens estudantes de tendência levemente
anarquista, tem estrutura descentralizada e não está filiado a
nenhum partido político. Como eles próprios se definem,
são apartidários, mas trabalham em conjunto com os partidos
políticos de esquerda.
[8] Essa insinuação constituía-se uma enorme falsidade,
pois as forças de esquerda sempre estiveram participando ativamente das
lutas sociais, inclusive suas sedes serviam de ponto de encontro para as
reuniões dos movimentos sociais
[9] IBGE – PNAD, 2013. Comunicado para a imprensa.
[10] Karl Marx. Contribuição à crítica da economia
política. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[11] Por exemplo, algumas palavras de ordem síntese, que expressem a
insatisfação popular. Só a revolução pode
mudar o Brasil. Refundar o Brasil: queremos mudar tudo. Por uma
Assembléia Constituinte Popular. Tornar públicos todos os
serviços essenciais, como educação, saúde,
transporte, água, esgoto, luz e telefone. Moradia e trabalho para todos.
Cadeia para os corruptos. Estatizar o sistema financeiro e realizar a
moratória da dívida pública. Acabar com o monopólio
e democratizar as comunicações. Aumento geral dos salários
e das aposentadorias. Estas são algumas palavras de ordem síntese
que podem serviur para a agitção e propganda e que podem
politizar as reivindicações populares.
[NR] Organizações "chapa branca":
organizações oficialistas.
[*]
Doutorado em economia pela Universidade Estadual de Campinas, com
pós-doutorado no
Instituto de Filosofia Ciências e Letras da mesma
instituição. É autor, entre outros de
A globalização e o capitalismo contemporâneo
(expressão Popular, 2009), um dos editores da revista
Novos Temas
e diretor do Instituto Caio Prado Junior.
Extraído de: http://resistir.info/brasil/jornada_lutas_30jul13.html | |
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